Conrado Hübner Mendes
A crise política brasileira tem lá seu apelo subliterário. Não se pode negar que os diálogos vazados ou interceptados, de parte a parte, e as tantas reviravoltas na trama rendem a história pastosa e inverossímil que só um roteirista de série televisiva poderia oferecer. Poucos diálogos foram tão indicativos da ruína pública do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto aquele travado entre o ex-ministro Romero Jucá e um empresário. Jucá dizia em 2015 ter conversado com ministros do STF e que a solução contra o avanço da Lava Jato, àquela altura, seria “um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. Ficou por isso mesmo. No redemoinho da autocorrosão institucional por que passam as instituições de controle, os diálogos vão se apagando da memória sem maior consequência.
A Constituição brasileira de 1988 também apostou que, “com o Supremo”, as turbulências democráticas seriam reconduzidas ao trilho constitucional. A aposta não tinha o cinismo de Jucá, mas o otimismo de uma refundação política. Ulysses Guimarães prometia a “Constituição do homem, pelo homem e para o homem. A Constituição da mudança e não do statu quo , a Constituição do amanhã, com cheiro de amanhã e não com cheiro de mofo”. Não percebia que o STF, naquele dia, já entrava na nova ordem constitucional com cheiro de mofo. Os ministros da época, que a ditadura deixou de herança à democracia, agiram durante a Constituinte para que o STF apenas acumulasse novos poderes e competências, não para que concentrasse sua energia no crucial e fosse redimensionado. Não foi pensando em eficiência e funcionalidade que nasceu aquele STF. Nasceu mofado, e bem mais pesado. Mesmo assim, esperava-se que fosse um lastro dinâmico da democracia. Um ator acima de qualquer suspeita, que orientasse a política constitucional com inteligência e autonomia.
Esse mastodonte do “pode tudo ao mesmo tempo agora”, nas décadas seguintes, acumulou ainda mais competências (por meio das Emendas Constitucionais número 3, de 1993, e número 45, de 2004, e também de inovações jurisprudenciais e procedimentais). Trocou “destruição criativa”, que poderia reformar e racionalizar seu modus operandi , por “criatividade destrutiva”, que afeta cada vez mais a reputação da Corte.
“ALGUNS MINISTROS, PARA COMPLETAR, AINDA EMBARCARAM NA LIBERTINAGEM ÉTICA”
A hipertrofia de casos tentou ser administrada pela divisão de trabalho interno e multiplicação de sua capacidade de trabalho por 11. Cada ministro foi dotado de imenso poder monocrático e de obstrução. Não foi só uma preocupação em dar conta da imensidão de demandas, como gostam de dizer (“dar conta” da quantidade, de fato, o STF nunca deu). Foi um movimento de concentração de poder no ministro individual, em prejuízo da Corte. Perdeu o plenário, ganharam os 11 gabinetes. Construiu-se um tribunal de solistas, fragmentado, sem coordenação. Um tribunal mais suscetível à captura externa. Decide o que quiser, quando quiser, conforme a vontade de cada ministro e as condições de temperatura e pressão. Anomalia única no mundo.
Todo esse quadro já foi bem diagnosticado. É sabido também que o STF permanece surdo às críticas honestas e empiricamente demonstradas que a ele se dirigem. Foram críticas de estudiosos preocupados com o desempenho da Corte, que não deixam de reconhecer algumas decisões importantes tomadas nesse caminho. Enquanto se ignoravam as críticas dos parceiros, o mais perigoso adversário do tribunal ascendeu ao poder, sem nenhuma vontade construtiva, mas “desconstrutiva”. Quando Bolsonaro disse “vamos desconstruir muita coisa”, o STF fazia parte do pacote.
Do ciclo eleitoral de 2014 para cá, o STF enredou-se em muitas “histórias mal contadas”. Quer dizer, em decisões contraditórias e mal explicadas que tinham muito em jogo para passar despercebidas.
“COM O ACIRRAMENTO DO ANTAGONISMO POLÍTICO BRASILEIRO, DO QUAL O STF, ANTES DE SER VÍTIMA, É COAUTOR, AS DECISÕES, CONTRADECISÕES E NÃO DECISÕES DO TRIBUNAL PASSARAM A CUSTAR MUITO MAIS CARO”
E, ao ter recebido os casos da grande corrupção e os submetido à dieta arbitrária de seus procedimentos, o STF entrou no epicentro da crise não só como gestor, mas como alvo.
A pauta bolsonarista
Em julho de 2019, completados seis meses do novo governo, acumulou-se na mesa (e nas gavetas) do STF a “pauta bolsonarista”. Essa pauta se define menos por complexidade jurídica fora do comum e mais por sua alta octanagem política diante de um governo que opera por ataque a instituições e à legalidade. O governo Bolsonaro conhece os limites institucionais do STF e a fragilidade de sua autoridade. Já no primeiro semestre, adotou a estratégia da “Blitzkrieg desconstituinte”, a produção numerosa de atos de inconstitucionalidade evidente. Tão numerosa que inunda e sufoca a energia institucional do STF e de outros órgãos de controle.
A pauta bolsonarista reúne três tipos de agenda: 1) os casos de direitos e liberdades públicas que tocam na veia conservadora do bolsonarismo; 2) os casos da Lava Jato, que tocam na veia messiânica da “nova era”; 3) os casos que analisam atos do governo Bolsonaro. Ainda que as agendas 1 e 2 não tenham sido produzidas no contexto do novo governo, as tensões que despertam são turbinadas pelo bolsonarismo e cumprem papel central na política do “pânico e circo”, na gritaria pública e na chuva de notícias falsas nas redes. Cada caso dentro das três agendas merecerá análise específica em texto futuro, mas vale agrupá-los, de forma não exaustiva, para ter a dimensão do conjuntoE
1) DIREITOS E LIBERDADE
No campo das liberdades, neste semestre o STF considerou crime a homofobia e recebeu em troca a promessa bolsonara de um ministro “terrivelmente evangélico”. Em diferentes estágios de julgamento, estão pendentes temas como: descriminalização do aborto para grávidas com vírus zika e para grávidas em geral; uso de banheiro público por transexuais de acordo com identidade de gênero; direito de homossexuais de doarem sangue; dever de escolas combaterem o bullying contra estudantes LGBT; cumprimento de pena em presídios femininos por mulheres transexuais e travestis; restrições à liberdade pedagógica; descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.
2) LAVA JATO E “NOVA ERA”
Na rubrica da Lava Jato, pendem os mais explosivos casos na história do STF: as múltiplas ações que podem resultar na libertação do ex-presidente Lula; o julgamento da suspeição de Sergio Moro; acusação contra Flávio Bolsonaro; criação de uma fundação anticorrupção pela Lava Jato; inquérito para apuração de notícias falsas contra o STF. Entre muitos outros.
3) MEDIDAS DO GOVERNO BOLSONARO
A única medida já julgada pelo STF foi a extinção dos conselhos de participação na Administração Pública Federal, que impôs uma primeira derrota ao governo. Ao mesmo tempo, o julgamento do decreto liberatório das armas representa a grande refugada do semestre. Ao revogar o decreto que estava para ser julgado e, em poucas horas, reeditá-lo com conteúdo praticamente idêntico ao anterior, o presidente cometeu fraude à separação de Poderes. O presidente do STF aceitou a manobra, tirou de pauta e ficou em silêncio. Em diferentes estágios de julgamento, estão pendentes os casos sobre: competência para demarcação de terras indígenas; extinção do Ministério do Trabalho; contingenciamento de recursos de universidades federais; reedição da medida provisória sobre o Código Florestal; liberação de emendas parlamentares para votação favorável à reforma da Previdência.
“A PAUTA BOLSONARISTA DEVERÁ CONTINUAR A CRESCER. FAZ PARTE DA BLITZKRIEG”
Em breve, o STF deverá receber o questionamento da indicação do filho do presidente para a embaixada dos EUA; a reconfiguração das questões do Censo; a extinção do Mecanismo de Combate à Tortura; a interpelação de Bolsonaro pelo presidente da OAB por ter se referido aos mortos pela ditadura; e a ação criminal, contra Bolsonaro, dos acusados no mesmo episódio de assassinato durante a ditadura.
O manejo da pauta bolsonarista
Como reagir à Blitzkrieg que inunda e sufoca? O presidente do STF, que tem o monopólio da pauta de julgamento, escolhe o caso que entra, o que não entra e o que sai depois de entrar, sem maiores satisfações. Toffoli anunciou, como grande inovação de sua gestão, a publicidade semestral da pauta. Divulgou a pauta do primeiro semestre de 2019 em dezembro de 2018. Chegamos ao final do semestre, e o que se pode dizer?
Toffoli declarou: “Desafio a apresentarem uma Suprema Corte no mundo que tenha no primeiro semestre julgado tantos feitos”. Eu também desafio. Mas o ponto nunca foi a quantidade. Como mostraram Felipe Recondo e Luís Gomes Esteves, a eficiência e a transparência propagandeadas escondem mais problemas. A começar pelos casos que estavam na pauta semestral e saíram sem maiores motivações. Não foram poucos e não foram desimportantes: por exemplo, o já longevo caso sobre porte de drogas e o da prisão após decisão em segunda instância. Segundo Recondo e Esteves, o semestre do plenário tinha em pauta 295 casos, dos quais 126 foram apreciados, 60 com julgamento definitivo. No dia em que estava em pauta o porte de drogas, discutia-se se cartórios civis poderiam ser remunerados. Quando estava em pauta o tema da prisão após decisão em segunda instância, discutia-se a lei das estatais. Os casos na fila não foram para a sessão seguinte, simplesmente sumiram da pauta. Uma questão de prioridades. Na pauta do segundo semestre, lemos uma lista que, à luz da experiência, sabemos ser apenas uma carta de intenções que poderá ser solenemente ignorada.
Por que o STF está sob ataque?
Luís Roberto Barroso, em palestra recente, contou que tem se perguntado “por que o STF está sob ataque?”. Respondeu que há uma percepção “em grande parte da sociedade brasileira de que o STF é um obstáculo na luta contra a corrupção”. Ensaiou também hipótese mais abrangente: “Uma Corte que repetidas vezes toma decisões com as quais a sociedade não concorda e que não entende, aí se tem um problema”. Acho que estava pensando em corrupção de novo. O tema é uma de suas obsessões atuais. Não só sua, mas de muita gente. Parece haver algo promissor nisso. À luz desse tema, porém, faz grandes generalizações sobre os desejos éticos dessa entidade abstrata e homogênea chamada “sociedade brasileira”.
“O APELO À CRUZADA REDENTORA DE COMBATE À CORRUPÇÃO PARA JUSTIFICAR HETERODOXIAS JURÍDICAS, NO LUGAR DE DEBATER OBJETIVAMENTE, CASO A CASO, INTERPRETAÇÃO DA LEI E CONDUTAS DO STF, É UM CAMINHO CHEIO DE PERIGOS”
Primeiro, porque supõe que aqueles que discordam são aliados da corrupção. Ou pelo menos lança a desconfiança. A partir dessa disfarçada presunção de superioridade moral, despreza a divergência dentro e fora da Corte e lança sobre o interlocutor o dever de provar que não é corrupto. Segundo, porque é autocomplacente e reducionista: a razão do descrédito do STF se resumiria ao fato de não embarcar, em peso, na filosofia jurídica da Lava Jato. Depois da Vaza Jato, esse discurso perdeu músculo. O apelo ao combate à corrupção serve como uma sirene censora para inibir quem levanta dúvidas, pondera e pede mais análise. Cria um embate entre retórica e argumento, entre a política da exclamação e a da interrogação. E induz uma perversa assimetria moral entre os que conversam. Nesse tipo de conversa, o vencedor vem predefinido.
Mas Barroso tem razão ao apontar um problema quando a sociedade “não concorda e não entende” a Corte. O problema, entretanto, não está ligado ao fato de que pessoas discordam da decisão no caso y ou no caso z. A incompreensão mais relevante está no “conjunto da obra”, individual e institucional, mais do que nas oscilações em casos específicos da Lava Jato (que apenas jogaram luz na ingovernabilidade do tribunal). O comportamento da Corte “faz parecer” que há algo estranho ocorrendo nas entrelinhas, concordemos ou não com a decisão. O “fazer parecer” é fundamental. É a isso, e não a hipóteses impressionistas sobre o que pensa a “sociedade brasileira”, que deveríamos dar mais atenção. Nem seria pertinente fazer uma pesquisa de opinião popular. Para esse fim, o Ibope pouco importa. Que a população está indignada com a corrupção, já sabemos. Você e eu também estamos.
“ASSISTIMOS NESTE SEMESTRE ÀS MAIS SISTEMÁTICAS AGRESSÕES AO STF NOS ÚLTIMOS 30 ANOS. O ATAQUE TAMBÉM SE DIRIGE AO EDIFÍCIO INSTITUCIONAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. SÃO INÉDITAS EM VOLUME, QUANTIDADE E MALIGNIDADE”
Cobrar do tribunal refinamento jurídico, coragem política e presteza decisória é o dever cívico de sempre. Mas sem inocência ou autoengano.
“NÃO HÁ, NA HISTÓRIA RECENTE DO STF, NADA QUE NOS AUTORIZE O OTIMISMO. A FRUSTRAÇÃO COM A TIBIEZA DA CORTE É TÃO CERTA QUANTO O PLANO DE BOLSONARO DE SUJEITÁ-LA AO PROJETO, EM SUAS PALAVRAS, DE ‘DESCONSTRUÇÃO’”
Não fosse trágico o bastante, o Executivo bolsonarista ainda tem a sorte de contar com a dupla Toffux na presidência da Corte.
A dupla Toffux forjou em coautoria esta invenção tão brasileira: a negociação de constitucionalidade. O governo encomenda uma interpretação constitucional sob medida ou uma obstrução processual qualquer. A Corte entrega e recebe em contrapartida algum regalo. Foi assim com o auxílio-moradia, foi assim com as investigações sobre Flávio Bolsonaro (que se beneficiou em janeiro de uma decisão de Fux e em julho de uma decisão de Toffoli, ambas coincidentemente no recesso, ambas ilegais). A dupla Toffux tem a vocação da sobrevivência. Individual, não institucional.
Cortes constitucionais, como o STF, precisam pairar acima da guerra partidária e do choque de interesses para realizar o interesse geral na democracia. Ou, na tradução jurídica, proteger a Constituição. Seus ministros não são eleitos. Esse é seu grande trunfo, e seu grande ônus. A história política oferece exemplos de como instituições pensadas para desempenhar papel semelhante, mas compostas por meio da eleição de seus membros, foram diluídas no conflito partidário que o mecanismo eleitoral desperta. A legitimidade eleitoral serve para certas funções, não para outras. Instituições não eleitas, mais do que as eleitas, têm uma responsabilidade especial de “demonstrar suas qualidades”, como afirma o filósofo Pierre Rosanvallon. Ele observa como o recente declínio da confiança da sociedade americana em sua Suprema Corte, por exemplo, tem menos a ver com o fato de ela ser, supostamente, uma “instituição aristocrática” e mais com a percepção de que se tornou menos objetiva, mais partidária, mais irracional.
O trunfo de não ser eleito vem sendo renunciado por ministros do STF. A renúncia, combinada com a pauta bolsonarista, é um dos caminhos certos de corrosão democrática. Ministros não observam, afinal, o ônus que vem junto daquele trunfo. Um bom Supremo não depende apenas de uma arquitetura bem planejada na prancheta do constituinte, mas de bons ministros. Importa quem eles são e como se comportam dentro e fora da Praça dos Três Poderes. Importam os espaços que frequentam, as pessoas que frequentam e os protocolos que se dispõem a cumprir ou a quebrar. Disso depende a estatura do tribunal e a relevância que terá no resgate de uma ordem constitucional que não seja só fachada. Pois, de fachada, ela já tem muito.
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