Guilherme Amado
Há dias em que Adriana Villas Bôas não consegue sair da cama, tamanha a
dor nos ossos e nas articulações. Às vezes, fica sem enxergar. A filha
do ex-comandante do Exército e hoje assessor de Jair Bolsonaro no
Palácio do Planalto, Eduardo Villas Bôas, tem há 14 anos a doença rara
espondilite anquilosante. O general Villas Bôas carrega outra patologia
rara: a esclerose lateral amiotrófica. Desde 2016, ele vem perdendo os
movimentos e tem dificuldade para falar. Ainda assim, Villas Bôas não se
calou recentemente, na defesa da regulamentação do uso medicinal da
Cannabis
, criticada por Bolsonaro e pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. Os
dois veem no trabalho da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) a porta de entrada para a liberação da maconha. Em uma conversa
há duas semanas, Villas Bôas foi sucinto ao explicar por que abriu sua
cabeça para entender a importância do tema: “Foi por causa de minha
filha”.Aos 34 anos, Adriana Villas Bôas é uma engajada ativista dos portadores de doenças raras. Formada em Direito e estudante de psicologia, ela nunca usou o canabidiol (CBD), um dos principais componentes da Cannabis , por não ter dinheiro — o custo mensal de alguns medicamentos importados gira em torno de R$ 3 mil — e pela burocracia. Atualmente, é necessário requerer a autorização de importação à Anvisa e comprar no exterior. São até seis meses para o medicamento chegar. “Não teria nenhum problema em experimentar. Eu não diria não. Meu pai também pensa como eu. Com o tanto de remédio que eu tomo, já era para meus rins terem parado. Por dentro, meu corpo deve ter 90 anos. Ser contra isso é a maior hipocrisia que existe”, defendeu Adriana, entre um gole e outro de café coado.
“‘Quando você pega uma mãe que dá canabidiol para seu filho e a trata como uma maconheira, isso é ofensivo, isso é grave’, cobrou, chorando, a filha do general Villas Bôas. Mas o governo de que seu pai faz parte pensa diferente”Em entrevista recente, Osmar Terra afirmou que estudava a maneira pela qual inviabilizaria a regulamentação, preferencialmente tentando convencer a própria Anvisa a abandonar a ideia. Um pouco antes, numa declaração da qual depois recuou, falou em fechar a agência — criada por lei.
Em abril, a Organização Mundial da Saúde recomendou à Organização das Nações Unidas que a classificação da Cannabis seja abrandada em tratados internacionais sobre drogas. No Brasil, é o próprio paciente, munido de uma prescrição médica, que solicita a importação à Anvisa. A análise é feita caso a caso. O número de pedidos tem explodido. A média atual é de cerca de 16 por dia. Desde 2015, quando a importação foi permitida, já foram feitos mais de 10 mil pedidos. Naquele ano, houve 900 solicitações de CDB. Em 2019, até junho, o contingente já passava de 2.500. É um recorde.
Na prática, qualquer laboratório pode solicitar o registro de um medicamento à base de canabidiol, como qualquer outra droga controlada. Contudo, a burocracia é grande e leva anos. Só há um remédio à base de canabidiol autorizado a ser vendido no Brasil, o Mevatyl, produzido no exterior. Conhecido em outros países como Sativex, o remédio é indicado para tratar a esclerose múltipla. O registro foi dado em 2017. Além do canabidiol, o Mevatyl leva em sua composição o temido tetraidrocanabidiol. É o THC, composto que tem propriedades psicoativas.
Em junho, a Anvisa abriu duas consultas públicas sobre o cultivo da Cannabis e o registro de medicamentos com base na planta. Trata-se de um passo importante para que a diretoria colegiada da agência regulamente o assunto. As consultas, que já receberam 900 contribuições da sociedade civil, vão até 19 de agosto.
Na reunião em que se decidiu abrir as consultas, os diretores da Anvisa assistiram a uma apresentação sobre o tema. O quinto slide mostrado trazia um alerta, com a conclusão do estudo regulatório: “A manutenção da situação atual poderá levar ao agravamento das consequências apresentadas, tais como: a judicialização, o aumento da demanda para autorização excepcional de importação de produtos e a dificuldade de acesso a produtos registrados”.
Conforme mostrou o jornalista Denis Russo Burgierman, que estreou no site de ÉPOCA uma coluna sobre a indústria da Cannabis , as propostas da Anvisa são duras. A de cultivo prevê que o local de plantação não pode ter qualquer identificação externa e deve ser acessado por meio de portas duplas de segurança e biometria. “A Anvisa quer fazer uma caixa-forte, um cofre, para plantar Cannabis em um país tropical. Mas tudo bem, é melhor do que nada”, afirmou José Bacellar, CEO da empresa farmacêutica canadense Verdemed, que prevê investir US$ 80 milhões até 2022 no mercado brasileiro. Um argumento usado por quem considerou que a Anvisa pesou a mão nas restrições lembra a experiência da paraibana Abrace Esperança, única associação que conseguiu na Justiça o direito de plantar Cannabis para fins medicinais e distribuição coletiva entre pacientes e que não tem relatos de problemas com segurança, como assaltos. Há quem diga que as imposições são barreiras à entrada no mercado.
Osmar Terra defende como alternativa para o cultivo a liberação do canabidiol sintético, ou seja, a produção do composto apenas em laboratórios, sem a planta da Cannabis . Dessa maneira, não haveria a possibilidade de uso da maconha, a droga. O problema é que a produção sintética ainda é novidade nos estudos e testes científicos. Pesquisas constataram uma sinergia, batizada de “efeito entourage”, entre o óleo de Cannabis natural e receptores e enzimas no corpo humano. Ainda não se sabe qual é a conjugação de princípios do canabidiol que causa o efeito positivo.
As multinacionais que estão no Brasil poderiam passar a produzir o canabidiol sintético, se não tiverem escolha. Mas seus olhos brilham mesmo pela regulamentação proposta pela Anvisa: produção a partir da planta, que abre um leque de inúmeros medicamentos. E muito dinheiro.
A consultoria americana New Frontier, em parceria com a brasileira The Green Hub, estima que o mercado medicinal da Cannabis movimentaria R$ 4,4 bilhões no Brasil três anos depois de ser aberto. E não é só. O Brasil seria líder na América Latina. Teria receitas de US$ 2,4 bilhões, superando o México, com US$ 2 bilhões, e o Chile, com US$ 1,5 bilhão.
Alheios aos números ou ao preconceito, os pacientes têm pressa. “Se seu filho pequeno tem dezenas de ataques epiléticos ao dia e você dá gotinhas de CBD e as crises passam, o que você faz? Quem tem de ser escutado é o paciente, é quem está com dor”, cobrou Adriana Villas Bôas. Ela fez uma sugestão a Jair Bolsonaro: “Se Bolsonaro se sentasse com meu pai, ele abriria a cabeça e conversaria”.
Com Eduardo Barretto e Naomi Matsui