May 12, 2019

Os fatídicos 80 tiros



Ilona Szabó e Melina Risso

Como explicar que militares bem treinados em uma patrulha rotineira em área militar, submetidos a uma rígida cadeia de comando e controle, cometam um erro brutal e atirem 80 vezes por trás de um carro de uma família que não apresenta nenhuma ameaça ou agressão? Ficamos perplexas e horrorizadas com a notícia. Por que e como isso aconteceu? Quem tomou a decisão de atirar e de quebrar todas as regras de engajamento e abordagem que deveriam ser claras para esses recrutas? Sim, as regras de abordagem e uso da força são claras por aqui e mundo afora: na dúvida, não atire contra civis. Precisamos exigir que as investigações sejam minuciosas e transparentes. As lições desse trágico episódio precisam ser usadas para que isso nunca mais se repita.

Não temos informações sobre as motivações da ação que levou ao assassinato do músico Evaldo e que feriu outras duas pessoas. Só sabemos, até o momento, que os militares “confundiram” seu carro com o de bandidos. Essa explicação não basta. Sem agressão ou ameaça, mesmo que bandidos fossem, nem militares nem policiais deveriam atirar.
Algumas hipóteses precisam ser apuradas: os militares que faziam o patrulhamento simplesmente resolveram transgredir as regras e atirar? Receberam ordens superiores de que o procedimento padrão havia mudado? Se sim, quem deu a ordem, com que justificativa e amparado em que marco legal? Qualquer uma dessas alternativas é extremamente grave.
Vivemos um momento paradoxal de nossa história em que governantes foram eleitos com bandeiras e propostas que incentivam o uso excessivo da força por agentes da lei e até mesmo por cidadãos. Discurso e práticas totalmente contrários à Constituição e aos valores democráticos que dizem subscrever. E a consequência desse tipo de postura não é apenas simbólica. É razoável assumir que a retórica agressiva pode influenciar ações violentas. Políticos têm responsabilidade pela ação truculenta das tropas nas ruas. Isso precisa ficar claro para todo mundo. Não adianta incitar e depois dizer que quem decide é o policial ou o soldado. É injusto, negligente e omisso. Os que estão na ponta são incentivados a descumprir a lei e a colocar sua profissão e vida em risco.
O caso do músico Evaldo não foi o primeiro em que houve abuso de regras de conduta e sinais de execução nesses cem dias dos novos governos. Há os casos do Fallet, no Rio de Janeiro, onde 15 pessoas foram mortas possivelmente depois de rendidas, e o caso de Guararema, no estado de São Paulo, onde 11 suspeitos de um assalto a banco foram mortos pela polícia. Esses casos precisam ser investigados e ter consequências tanto para os envolvidos diretamente no fato como na cadeia de comando e controle. A lei e os limites estabelecidos por ela devem ser os parâmetros para a atuação das forças de segurança, e isso vale para todos os cidadãos.
Somos um dos países onde os policiais mais morrem, em especial fora de serviço. Mas também é aqui no Brasil onde os índices de violência policial são altíssimos. E a maioria absoluta das mortes ocasionadas por policiais e militares não chega a ser investigada ou julgada. Os ministérios públicos estaduais precisam assumir sua tarefa constitucional de fiscalizar o trabalho da polícia e de denunciar os autores de execuções. A impunidade reina nos crimes de homicídio no Brasil, e o Estado precisa dar o exemplo e começar a coibir as ilegalidades que estão sob seu controle.
Forças de segurança legítimas são a base para governos legítimos. E para que a sociedade possa confiar na polícia e respeitá-la, tão necessária em uma democracia, ela precisa ser exemplar e cumprir a lei. E vocês, governantes, não se iludam, pois também pagarão a conta do bangue-bangue, das injustiças e ilegalidades. A sociedade está com medo. Alguns podem até apoiá-los e achar que polícias podem descumprir a lei seguindo determinações e ordens dos superiores. Mas a maioria não concorda e começa a despertar. Não há atalhos para a segurança pública. Há soluções e já as conhecemos. A prevenção, a inteligência e a repressão qualificada serão sempre mais eficazes do que a força bruta. Ainda há tempo de aprenderem essas lições.

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