October 23, 2018

Rompendo a violencia enrustida




BRUNO MARON

Há alguns anos, o jurista Fábio Konder Comparato deu uma entrevista brilhante para a revista Caros Amigos onde falava sobre a democracia no Brasil. Ou melhor, a ausência dela.

Como consequência do regime escravista que marcou profundamente a nossa mentalidade coletiva, havia um modelo clássico na distribuição de papéis no organismo social: O senhor de escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida política até agora. Konder também enfatiza a dissimulação do brasileiro em relação a própria violência.

Pois bem, estamos vivenciando um rompimento com essa violência enrustida. Floresce uma franqueza inédita em relação à faceta mais brutal da população. Identifico sobretudo um triunfo da violência - que desemboca em outros territórios - no campo da linguagem, tão maltratada e surrada desde sempre, sem cerimônia. Considerando o fato de que a linguagem mobiliza uma espécie de corpo social encadeando transformações de ordem política, vejo que a campanha do Bolsonaro não tem nenhum pudor em promover uma orquestração semiótica dos afetos através das táticas mais rasteiras possíveis: entupir as pessoas de palavras, regras e representações genéricas de ordem, manipulação do pânico moral e fustigação de uma reatividade automática, consolidação de uma dualidade pueril amparada pelo mito da corrupção isolada. Tudo isso sendo papagaiado em proporções geométricas por pessoas estourando as varizes num frisson constrangedor de antipetismo. É a commodity do medo.

A prosperidade dessa gestão do afeto triste só mostrou o quanto estamos miseráveis. Na minha perspectiva, violência e miséria estão intimamente conectadas. Entretanto, é necessário assinalar o fenômeno da miséria menos evidente do que a sócioeconômica, sendo esta um problema mais objetivo e passível de procedimentos de cunho político e administrativo. São as misérias cultural, ética e espiritual que estão dando o ar da sua graça. Se existe algo de democrático no Brasil, é a miséria; ela se espalha sem preconceitos de qualquer espécie por todos os setores da sociedade.

Não me surpreende que a menina dos olhos da iconografia Bolsonarista seja o revólver. A arma de fogo me soa como a expressão máxima do reducionismo e portanto, de um pensamento miserável que grassa no Brasil contemporâneo sem fronteiras ou limites de ação. A arma resolve tudo, é imediatista e sacia a ansiedade dos espumantes por 'justiça'. Pra muitos significa a limpeza, uma espécie de corte de pessoal, a intimidação necessária e a extensão falocêntrica de um corpo despótico. Óbvio dizer aqui o quanto a arma de fogo amplifica o nível de covardia de um ser humano. A ideia de que uma pessoa de bem (existe algo mais CRETINO do que esse termo?) não se modifica ao adquirir uma arma de fogo é absolutamente ingênua. Pra mim, esse tesão que as pessoas sentem por arma é a velha sanha pelo pequeno poder, uma das nossas maiores tradições. Mente pequena, pequeno poder.

E por falar em tradição, eu adoraria entender o que Bolsonaro defende quando fala da FAMÍLIA TRADICIONAL BRASILEIRA. Tradição compreende uma série de doutrinas, saberes, ritos e costumes que interagem continuamente com o presente, fecundando o futuro. O que esse cara defende é muito mais um tradicionalismo barato, colocando as tradições numa esfera de impermeabilidade e coagulação histórica. É um passadista dos mais toscos, basta ver quem são os grandes ‘líderes’ que ele admira.

É bizarro imaginar a possibilidade de ver in loco esse Handmaid’s Tale de baixo orçamento no Brasil. E a julgar pelo gosto nostálgico do Bolso, veremos dentro da cela, numa tv de tubo com bombril na antena. Tô fora.

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