foto bruno figueiredo
André Uzêda
Salvador
Mestre Moa do Katendê era de falar pouco. “Muitas vezes passava horas no lugar só observando. Sem dizer nada. Era do tipo que valorizava bem aquele ditado de ter uma boca e dois ouvidos”, diz Geraldo Badá, amigo do capoeirista desde a década de 1970.
Desde o último domingo (7/10), dia das eleições presidenciais de primeiro turno no país, o silêncio de Moa variou do facultativo para o irrevogável. Aos 63 anos, o músico e ativista negro foi morto pelas mãos de um homem que tinha visto pela primeira vez na vida cerca de meia hora antes.
Moa levou 12 facadas de Paulo Sérgio Ferreira, 36. Segundo testemunhas, o início da rixa foi uma discussão política. Mestre Moa defendeu o candidato do PT, Fernando Haddad, e Paulo Sérgio, Jair Bolsonaro, do PSL . A discussão terminou de forma ríspida e Paulo Sérgio voltou para casa, pegou uma faca e golpeou o capoeirista pelas costas. Foi detido ainda naquela noite pela polícia, que seguiu o rastro de sangue até encontrar o acusado em casa. A cena do crime foi o Bar do João, nº 208, na comunidade do Dique Pequeno, em frente ao Dique Tororó, ponto turístico de Salvador.
Na quarta-feira, um ato no Pelourinho reuniu centenas de pessoas para homenagear Moa e enaltecer seu legado. Capoeiristas, músicos, militantes de partidos de esquerda e do movimento negro participaram do cortejo do Largo do Pelourinho, ladeira acima, até o pátio da antiga Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do Brasil.
“Ele foi um artista tão completo que é difícil não encontrar uma área que ele não se destacou. Viajamos juntos para Frankfurt, Alemanha, para divulgar a cultura afro-brasileira”, diz o também capoeirista Vivaldo Rodrigues, conhecido como Mestre Boa Gente.
Moa do Katendê nasceu como Romualdo Rosário da Costa. O apelido Moa foi uma troca feita pelos irmãos mais velhos, ainda na infância, para facilitar a pronúncia. Como acontece na maioria das vezes, o epíteto rapidamente substituiu o nome de batismo. “Aqui em casa ele sempre foi Moa. O Katendê adotou depois, a partir das nossas ligações africanas. Ele começou a jogar capoeira muito menino, foi ganhando corpo e se destacando”, conta seu irmão Francisco Albuquerque.
Embora seja reconhecido pelos dotes de capoeirista, foi na música que Mestre Moa ganhou relevância e influenciou grandes nomes do cancioneiro nacional. Fez do Carnaval de Salvador seu laboratório e palco para grandes transformações.
Em 1977, debutou como compositor com a canção "Bloco Beleza" vencendo um festival de música do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Carnaval de Salvador. O sucesso o fez ingressar no grupo folclórico de percussão Viva Bahia, que viajou em turnê pela Europa para apresentações por Portugal, Itália e Alemanha. Já em casa, em 13 de maio de 1978 (quando o Brasil celebrava 90 anos da Lei Áurea), criou o afoxé Badauê.
No ano seguinte, com as cores azul, amarelo e branco (de Ogum, Oxum e Oxalá) o Badauê venceu o Carnaval na categoria afoxé. O antropólogo e publicitário Antônio Risério atribui ao Badauê, no livro "Carnaval Ijexá" (Editora Corrupio), conjuntamente como os Filhos de Gandhy e o Ilê Aiyê, o movimento de “reafricanização do Carnaval de Salvador”.
Risério diz que o Badauê, em especial, foi responsável por inovações mais marcantes neste processo, ao captar e trazer novas sonoridades aos afoxés a partir de elementos da blacktude e das influências dos jamaicanos Bob Marley e Jimmy Cliff.
“No contexto da década de 1970, o movimento negro estava fortíssimo em todo mundo e na música a força era do soul e do reggae. Aqui na Bahia, porém, os blocos de índios tinham muito mais força. Moa foi vanguardista ao transformar os afoxés. Até então só cantavam músicas em iorubá (língua africana) e da liturgia dos terreiros. No Badauê, ele manteve a tradição do ritmo africano, mas abriu espaço para a contemporaneidade ao beber destas influências estrangeiras”, diz Chicco Assis, pesquisador que defendeu dissertação de mestrado sobre os afoxés da Bahia.
“Moa é figura central nesse movimento de construção de uma identidade musical afro-brasileira. Ele foi um pioneiro desse movimento e um ativista em vários aspectos da construção dessa identidade”, diz o maestro baiano Letieres Leite, idealizador da orquestra Rumpilezz, que mistura elementos percussivos do candomblé com o jazz.
Ainda em 1979, no álbum "Cinema Transcendental", Caetano Veloso grava a música "Badauê", de autoria de Moa do Katendê e pela qual venceu o concurso dos afoxés no Carnaval daquele mesmo ano (Misteriosamente/ O Badauê surgiu/ Sua expressão cultural/ O povo aplaudiu). Neste mesmo álbum, na faixa "Beleza Pura", Caetano cita novamente o Badauê em outro verso (Moço lindo do Badauê, Beleza Pura /Do Ilê Aiyê, Beleza Pura).
Depois da morte de Moa, os jornais atribuíram o verso a uma suposta homenagem feita ao compositor-capoeira. “Foi uma informação errada que passaram. Eu levei Caetano para os primeiros ensaios do Badauê e lá tinha o dançarino e coreógrafo Negrizu, que hoje faz parte do Olodum. Foi para ele que esse verso foi dedicado. Embora também seja verdade que Caetano e Moa fossem muito amigos e que a sonoridade de Moa tenha influenciado Caetano nesse período”, diz Geraldo Badá, que durante anos atuou como relações públicas do afoxé Badauê, chegando inclusive a incorporar o “Badá” ao seu sobrenome.
Em entrevista por e-mail à Folha, Caetano confirmou a versão. “É uma referência direta a Negrizu, então um lindo e elegante adolescente que dançava muito bem. É uma homenagem a sua beleza. Registra a presença do Badauê no nosso Carnaval”, diz.
E lembrou também como conheceu Moa. “Tinha ido ver alguma coisa na sala de ensaio do Teatro Castro Alves e, ao sair de lá, vi esse grupo que subia a rampa que vem da Concha Acústica cantando e dançando. Era de tarde. Para mim, a visão daquele grupinho nos fundos do Castro Alves foi o sinal da mudança da feição social da cidade do Salvador, com os negros, maioria de sua população, protagonizando a vida social da cidade.”
Em suas redes sociais, Gilberto Gil classificou a morte de Moa como uma “devastadora onda de ódio e intolerância que nos assalta nesses dias de hoje”. Outros tantos artistas endossaram o coro de lamento, indignação e condolências.
“Ele tinha relação com grandes artistas, viajava e era reconhecido no mundo todo, mas nunca abandonou o Dique Pequeno, a comunidade onde nasceu e tinha um trabalho social com a capoeira”, conta Somonair da Costa, 35, terceira dos quatro filhos de Moa.
Dançarina profissional, Somonair conta que o pai sempre incentivou os filhos a seguir o caminho da cultura, fosse nas rodas de capoeira, dança ou do artesanato. “Aqui em casa todo mundo desenvolveu alguma habilidade e sempre estivemos conectados à cultura africana. Meu pai sempre ensinou a gente a não baixar a cabeça e valorizar o que somos”, pontua.
A família de Moa agora luta para construir um memorial em sua homenagem e para manter o espaço social onde ele dava aula de capoeira para cerca de 60 meninos do bairro. “Eu via Moa sempre caladão ali no canto, mas sabia de sua história. Eu o imaginava como um próprio orixá”, diz Clarindo Silva, figura emblemática de Salvador que já foi citada, inclusive, nos livros de Jorge Amado. “Moa fez muito pela cultura da Bahia e do Brasil. Ele se posicionou por suas ações, sua sensibilidade e, até na sua morte, propôs uma reflexão do país que estamos nos transformando”, diz Clarindo.
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