O processo político-eleitoral de 2024 nos Estados Unidos revela uma transformação profunda e inédita na dinâmica do país. O Partido Republicano parece ter completado de vez um ciclo iniciado em 2016 e deixou evidente que não é mais um partido no sentido clássico do termo, mas apenas um veículo para um movimento com características de culto personalista centrado na figura de Donald Trump.
O próprio Trump não nutre qualquer deferência pela sigla que momentaneamente o abriga e utiliza frequentemente o termo "movimento" para referir a si próprio e a seus apoiadores.
Em contrapartida —e aqui não vai nenhum julgamento de valor—, o Partido Democrata tem demonstrado que ainda é uma agremiação organizada, com capacidade para coordenar suas ações e controlar suas lideranças, mesmo em tempos de incerteza.
Um partido político moderno é, em essência, uma organização estruturada que vai além de figuras individuais, com um programa ideológico razoavelmente definido. Nos Estados Unidos, tradicionalmente têm funcionado como entidades organizacionais que representam uma ampla coalizão de interesses, onde a liderança é substituível e as ideias coletivas prevalecem sobre a personalidade individual.
Historicamente, movimentos personalistas são estranhos à política dos Estados Unidos. Isso contrasta fortemente com a realidade política em muitas partes da América Latina, terra de peronismos, varguismos, lulismos, bolsonarismos e outros "ismos" baseados em figuras populares. Para ficar apenas em um exemplo recente no Brasil, o caso de Jair Bolsonaro é emblemático: ele disputou a Presidência por um partido em 2018 (PSL) e por outro em 2022 (PL).
Os Estados Unidos parecem agora, com a ascensão do "trumpismo", mais perto do modelo latino-americano de fazer política. Esse movimento não é movido por uma ideologia consistente ou por um programa de governo claro, mas pela devoção a um líder e por um conjunto de crenças que orbitam em torno da figura de Trump.
Essa transformação do Partido Republicano passou pelo silenciamento de figuras internas históricas, que perderam espaço, eleições ou faleceram. A partir de 2016, a lealdade ao partido foi sendo gradualmente substituída pela lealdade a Trump.
A sigla hoje é comandada por Michael Whatley, que participou das tentativas frustradas de Trump de burlar os resultados das eleições de 2020, e por Lara Trump, nora do ex-presidente.
As primárias republicanas para a eleição presidencial deste ano são um exemplo dessa transformação. Desde o início, a nomeação de Trump nunca esteve realmente em dúvida, ao ponto de ele nem sequer se preocupar em participar dos debates internos, em que seus "adversários" evitavam críticas mais contundentes, com medo de antagonizarem demais com os apoiadores do movimento trumpista.
Apesar dos esforços da elite partidária para promover uma alternativa, como a candidatura de Nikki Haley, nada foi capaz de deter a influência esmagadora de Trump na base do partido.
A convenção republicana em julho escancarou esse processo. Em um sinal claro de como a estrutura partidária tradicional foi substituída pela lealdade a Trump, não contou com a presença de figuras históricas relevantes, como ex-presidentes ou ex-candidatos.
Em vez disso, o evento foi marcado pela participação de figuras leais a Trump, incluindo seus parentes, lutadores de luta livre e outros indivíduos que deixariam perplexo um republicano que tivesse acordado de um coma.
A seleção do candidato a vice-presidente foi outra evidência gritante. J.D. Vance foi escolhido por ser o mais leal a Trump, não ao partido como instituição. Outros nomes aventados, como Marco Rubio, senador pelo estado da Flórida, ou Doug Burgum, governador de Dakota do Norte, tinham uma trajetória política muito ligada ao Partido Republicano pré-trumpismo e por essa razão foram preteridos.
Vance, que inicialmente era crítico a Trump, teve sua curta ascensão política diretamente ligada ao ex-presidente. Sua metamorfose de autor de best-seller para candidato ao Senado por Ohio há menos de dois anos deu-se concomitantemente com sua conversão ao trumpismo. Sim, porque é disso que se trata: conversão. Alguém se filia a um partido, mas converte-se a uma religião.
Essa personalização da política americana tem levado a certas tendências autoritárias, tão conhecidas por essas bandas. Trump, sempre tão afeito à retórica autoritária, intensificou essa postura em 2024. Prometeu, por exemplo, ser um ditador "apenas no primeiro dia" de seu mandato, caso seja eleito, e afirmou para uma plateia de ativistas religiosos que, se ele vencesse, "não teriam que votar mais".
Ele tem tecido cada vez mais elogios a Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria conhecido por sua postura autocrática, marcada pelo controle sobre a mídia, pelo enfraquecimento do sistema judiciário independente e pelo cerceamento de liberdades civis e direitos políticos no país.
Além disso, Trump tem repetidamente se recusado a aceitar os resultados das urnas em caso de derrota, questionando a legitimidade das eleições e das instituições democráticas. Para além de seu incontrolável narcisismo patológico, existe uma estratégia por trás de tais declarações.
Muitos eleitores acreditam que o sistema está corrompido e só Trump pode restaurar a ordem, mesmo que isso signifique ignorar ou subverter os processos democráticos. Essa mentalidade de "salvador" é típica de movimentos autoritários, em que a figura do líder é vista como essencial para a sobrevivência da nação, independentemente das consequências.
O problema é que essas declarações e ações não são apenas retóricas. Elas têm impacto profundo no eleitorado e na estabilidade política do país. A base de apoio de Trump, que se tornou mais radical e menos disposta a aceitar qualquer forma de derrota, ameaça criar uma crise de legitimidade sem precedentes nos Estados Unidos.
O republicano já começou a descredibilizar pesquisas que o mostram atrás nas intenções de voto e até mesmo imagens mostrando comícios lotados da democrata Kamala Harris, preparando o terreno para um possível tumulto pós-eleitoral.
Em claro contraste com o Partido Republicano, o Democrata tem demonstrado que ainda mantém as características tradicionais de um partido político organizado. Mesmo em um ciclo eleitoral turbulento como o de 2024, mostrou incrível capacidade de organização.
A eleição de 2016 foi um primeiro exemplo claro de como os democratas ainda conseguem controlar suas lideranças. Assim como Trump se utilizou do sistema de primárias abertas para capturar o Partido Republicano de baixo para cima, os democratas enfrentaram um problema semelhante com a ascensão de Bernie Sanders, que representava a ala mais radical e progressista do partido e quase conseguiu a nomeação como candidato naquele ano.
No entanto, ao contrário dos republicanos, a elite partidária democrata, avessa a Sanders, conseguiu garantir que Hillary Clinton fosse a candidata em 2016, mostrando que o partido ainda era capaz de impor uma ordem interna. Em 2020, a escolha de Joe Biden como candidato, um claro representante do establishment democrata, foi mais uma demonstração desse controle.
O mais dramático exemplo dessa organização partidária coesa e eficaz pôde ser observado no atual ciclo eleitoral, com a célere substituição de Biden por Kamala Harris como candidata, mesmo com fortes resistências do próprio presidente e dos que o rodeavam.
Quando Biden mostrou sinais de que não teria condições físicas de continuar na corrida após seu desastroso desempenho no debate com Trump, a elite democrata agiu de forma decisiva.
Em menos de um mês, figuras-chave do partido, como Nancy Pelosi e outros líderes no Congresso, coordenaram uma transição que, embora abrupta, ocorreu de forma ordenada e com ampla aceitação entre as principais alas do partido.
Uma vez sacramentada a saída de Biden, o partido, em vez de enfrentar uma longa e penosa disputa de facções, rapidamente se organizou em torno da vice-presidente Kamala Harris, mesmo com alguns membros tendo que abrir mão de suas próprias ambições pessoais.
Essa capacidade de reorganização interna ilustra de forma inequívoca, para o bem ou para o mal, que os democratas ainda mantêm uma estrutura partidária tradicional, em que a liderança e a tomada de decisões são coletivas e orientadas por uma estratégia política clara.
As eleições deste ano vêm expondo essa nova realidade. O futuro da política americana depende, portanto, de como essas dinâmicas evoluirão nos próximos anos e de como os eleitores responderão a essas mudanças.
Uma das inúmeras consequências dessas eleições será a determinação definitiva se o Partido Republicano terá ainda alguma esperança de restaurar sua identidade como grupo político ou se continuará a ser mero veículo para o movimento de Trump.
Para além da disputa Harris-Trump, o desfecho desse ciclo eleitoral nos Estados Unidos definirá também o triunfo de um movimento personalista ou o de um partido organizado e coeso.
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