UMA REDE GLOBAL, COM FORTE RAMIFICAÇÃO NO BRASIL, UNE
CATÓLICOS ULTRAORTODOXOS A BILIONÁRIOS “LIBERTÁRIOS”
NO FORTALECIMENTO DA EXTREMADIREITA
p o r A N D R É B A R R O C A L
Grand Rapids é uma
cidade de 195 mil
almas no nordeste
dos Estados Uni-
dos. Em 1990, um
padre católico no-
va-iorquino de 39
anos transferido para a paróquia local
criou um instituto que misturava fé e eco-
nomia de mercado. Robert Sirico batizou
o projeto com o sobrenome de um histo-
riador inglês do século XIX, John Acton,
para quem a livre iniciativa e a moral re-
ligiosa alimentam uma à outra. O Insti-
tuto Acton realiza um jantar anual des-
de a fundação, e o próximo será em 30 de
outubro, em um hotel no condado. O in-
gresso mais caro, com direito a uma mesa
para dez participantes e dois lugares em
um coquetel reservado com a estrela da
noite, custa o equivalente a 42 mil reais.
A estrela será um historiador, William
Inboden, integrante do Conselho de Se-
gurança Nacional da Casa Branca no go-
verno George W. Bush, o republicano que
levou os EUA, com falsos argumentos,
às guerras no Iraque e no Afeganistão.
No site, o instituto descreve-se co-
mo um think tank, grupo de reflexão em
tradução literal. A Brasil Paralelo tam-
bém. Há alguns anos, a produtora gaú-
cha de vídeos especializada em recontar
a história com fake news frequenta um
ranking anual da revista Forbes dos think
tanks pró-mercado mais influentes nas
redes sociais. Um de seus donos, Lucas
Ferrugem, é uma espécie de professor do
ramo universitário da Acton, cujo diretor
internacional gravou, em 2019, seis au-
las para um “curso” da produtora. Tra-
ta-se de Alejandro Chafuen, de 70 anos,
católico argentino ligado à Opus Dei e fã
da ditadura militar vigente em seu país
de 1976 a 1983. Não por coincidência, a
“Brasil Paralelo” exalta o regime farda-
do brasileiro de 1964 a 1985.
Em setembro, o Observatório da Co-
municação Religiosa, ligado à Conferên-
cia Nacional dos Bispos do Brasil, acusou
a tevê católica Canção Nova de propagar
conteúdo da Brasil Paralelo. Em um co-
municado público, disse que “a empresa
Brasil Paralelo notoriamente se alinha
com o pensamento de extrema-direita; di-
vulga teorias conspiratórias que já foram
contestadas, dentre outros, pela Associa-
ção Nacional de História; e divulga, reite-
radamente, notícias falsas identificadas
e denunciadas por agências de checagem
idôneas e pelo próprio TSE (Tribunal Su-
perior Eleitoral).” A parceria, prossegue o
texto, traz “graves riscos” ao alinhamento
da CNBB ao papa Francisco. Para um pa-
dre que acompanha de perto a confusão, a
Brasil Paralelo difunde “fundamentalis-
mo religioso intolerante” a favor da “ex-
trema-direita” e de “ideias econômicas e
políticas que interessam a poucos”.
A Acton e a Brasil Paralelo integram
uma rede global organizada para disse-
minar ideias extremistas destrinchadas
em um extenso levantamento ao qual
CartaCapital teve acesso com exclusi-
vidade. Dois pesquisadores brasileiros
que encabeçaram o estudo e preferem
não ser identificados, por medo de reta-
liação, constataram: os radicais se arti-
culam internacionalmente (no Ociden-
te, mais especificamente) em torno de
duas grandes redes de think tanks. Uma
delas, de caráter religioso, tem a Acton
no centro. A outra, de viés econômico ul-
traliberal, é liderada pela Atlas Network,
também sediada nos EUA. Ambas bus-
cam promover ideias e influenciar a opi-
nião pública a favor de expoentes da ex-
trema-direita. Os maiores financiadores
são bilionários “libertários”, digamos as-
sim, com forte discurso contra o Estado
e os direitos sociais. É a realização do so-
nho do economista austríaco Friedrich
Hayek, morto em 1992 aos 92 anos.
Para enfrentar as ideais socialistas e
pró-Estado, acreditava Hayek, era preci-
so conquistar corações e mentes por meio
de think tanks. Ou seja, recrutar porta-vo-
zes em universidades, promover eventos,
produzir estudos e pesquisas. O “comitê
central” do ultraliberalismo mundial é
um filhote da cruzada de Hayek, a Socie-
dade Monte Pèlerin, nascida em 1947, na
Suíça. Um consórcio internacional de jor-
nalistas, o DeSmog, conseguiu identificar
1,9 milhão de dólares em doações à Mont
Pèlerin, hoje sediada nos EUA. Entre os
financiadores estão o bilionário norte-
-americano Charles G. Koch e a Donors
Trust, fundo de investimento que tem en-
tre seus dirigentes Alan Mauren, que deu
apoio a Sirico para a criação da Acton e
atualmente é presidente do instituto.
Embora esteja a serviço dos interes-
ses do 1%, defensores do Estado míni-
mo, a Acton decidiu, em 2018, realizar
um rebranding no discurso liberal e mos-
trar empatia com os pobres, em um es-
forço global à base de linguagem de ci-
nema, inclusive com o apoio de gente de
Hollywood. A “Brasil Paralelo” é isso.
A Mont Pèlerin, como
a Acton, promove en-
contros periódicos. Em
outubro de 2025, fará
um evento especial no
México. Nome de uma das palestras: “A
disseminação de ideias liberais clássi-
cas através de criações culturais”. É um
exemplo do tipo de influência, sutil, al-
mejada pelos think tanks. A atual presi-
dente da sociedade é uma economista es-
tadunidense de 82 anos, Deirdre Nansen
McCloskey, colunista da Folha de S.Paulo,
outro exemplo de “intervenção” na opi-
nião pública. Em março do próximo ano,
a Mont Pèlerin promoverá, também no
México, um encontro de caráter regional,
com o tema “Os novos caminhos para a
servidão: reconstruindo a base da pros-
peridade e da liberdade nas Américas”.
Dois brasileiros serão palestrantes: Paulo
Guedes, ministro da Economia do gover-
no Bolsonaro, e Ricardo Gomes, vice-pre-
feito de Porto Alegre. Gomes tem laços
com os donos da Brasil Paralelo, de vez
em quando usa o boné da produtora pa-
ra divulgá-la. O principal discurso caberá
ao presidente da Argentina, Javier Milei.
Conterrâneo de Milei, Chafuen traduz
a mistura das duas redes transnacionais
(a econômica e a religiosa) que dão fôle-
go à extrema-direita. O deputado Ricar-
do Salles, ministro do Meio Ambiente no
governo Bolsonaro, lhe é próximo. A se-
nadora Damares Alves, ex-ministra da
Família, viajou aos EUA em 2019 e foi ci-
ceroneada pelo argentino. Antes de en-
trar na Acton, Chafuen tinha sido presi-
dente da Atlas por 26 anos, de 1991 a 2017.
O instituto surgiu, em 1981, por obra de
um britânico veterano da Segunda Guer-
ra Mundial, Anthony Fisher. Sua missão,
descreve o site da fundação, é trabalhar
pelos “princípios da liberdade individu-
al, dos direitos de propriedade, do gover-
no limitado e do livre-mercado”. E afirma
conectar 500 organizações pelo globo.
Os pesquisadores identificaram 15 or-
ganizações brasileiras integradas à rede
Atlas. Uma é o Instituto de Estudos Em-
presariais, criado e mantido em Porto
Alegre com financiamento dos empre-
sários Jorge Gerdau, gaúcho, e Winstom
Ling, de origem chinesa, mas com negó-
cios no Rio Grande do Sul. O instituto
promove há anos o Fórum da Liberdade.
O deputado federal Marcel van Hattem é
produto desse ambiente. Sirico, da Acton,
esteve na edição de 2023. Outra entida-
de vinculada é a EPL, Estudantes Pela Li-
berdade. O deputado Kim Kataguiri fre-
quentou a entidade, responsável por pa-
rir o Movimento Brasil Livre. O EPL é a
versão brasileira do grupo estadunidense
Students For Liberty. Segundo o DeSmog,
o Students For Liberty recebeu 460 mil
dólares em doações da Atlas. Que tam-
bém doou para a Acton (30 mil dólares).
Desde a sua fundação, conforme a
DeSmog, a Acton recebeu ao menos 48
milhões de dólares em doações. Desse to-
tal, 10 milhões saíram dos cofres do fun-
do Donors, 1 milhão de Koch e 325 mil da
petroleira Exxon-Mobil. Em 2016, um se-
nador norte-americano do Partido De-
mocrata, Sheldon Whitehouse, denun-
ciou uma “rede de negação”, financiada
com recursos do petróleo, que comba-
teria na opinião pública a ideia de aque-
cimento global. Whitehouse incluiu a
Acton na teia negacionista.
O papa Francisco, de 87
anos, costuma apontar
os riscos à vida das mu-
danças climáticas, uma
das razões para ser sabo-
tado pela Acton. Em um vídeo de 30 de
agosto, Bergoglio disse que as mudan-
ças climáticas exigem ações econômi-
cas, sociais e políticas, não só ambien-
tais. É uma visão que enxerga a Igreja
Católica como força terrena e alinhada
à contemporaneidade, não só espiritual e
atemporal. A Acton e seus parceiros pen-
sam o contrário. Em 2014, o instituto ha-
via patrocinado uma reunião conspirató-
ria contra o papa em Roma, batizada de
“Fé, Estado e Economia: Perspectivas do
Oriente e do Ocidente”. O principal con-
ferencista era um expoente da Opus Dei,
Martin Rhonheimer, acadêmico suíço de
74 anos. Seu discurso centrou-se nas raí-
zes históricas do livre-mercado na civi-
lização cristã e os perigos de os cristãos
não entenderem isso.
Em 2020, a Acton patrocinou ou-
tro evento do tipo, dessa vez na cidade
de Sintra, em Portugal, com 110 bispos
e três cardeais. Tudo secreto, confor-
me um blog português, o Sete Margens.
A Acton negou-se a dar informações ao
blog. Os sacerdotes visitaram Fátima,
santuário católico. Na cidade, reza a lenda,
alimentada durante a ditadura sala-
zarista, três pastorzinhos relataram, em
1917, visões místicas com a Virgem Ma-
ria, que lhes teria confiado três segredos.
Em 2017, Olavo de Carvalho, guru místi-
co e filosófico do bolsonarismo, disse tra-
tar-se do maior acontecimento do século
XX e o segundo mais importante da His-
tória (o primeiro seria o nascimento de
Jesus). O “milagre de Fátima” é um amál-
gama dos ultracatólicos, segundo pesqui-
sadores da extrema-direita.
Portugal sedia o maior even-
to da Acton na Europa, o
Fórum Político de Estoril.
A capital, Lisboa, tem uma
paróquia que é ponto de en-
contro do direitismo radical, São Nicolau.
O padre, Mario Rui Pedras, é amigo e
mentor espiritual de André Ventura,
deputado e líder do Chega, o partido da
extrema-direita portuguesa. Celebrou o
casamento de Ventura, por exemplo. Em
março de 2023, Pedras foi afastado da pa-
róquia pela chefia lisboeta por suspeitas
de abuso sexual. Foi inocentado e voltou
em 2024. Preside ainda uma associação
de empresários católicos, a Acege. A en-
tidade foi fundada no passado com outro
nome, Ucidt, por um patrício de Pedras,
João Evangelista, morto em 2017. Ao lon-
go da vida, Evangelista teve contato em
um convento com uma das crianças que
diziam ter visto a Virgem Maria, irmã
Lúcia, beatificada pelo papa em 2023.
Coube a ele traduzir para o português,
na década de 1980, um livro intitulado O
Espírito do Capitalismo Democrático, um
esforço para desobrigar a Igreja de aco-
lher os pobres e os deserdados.
A paróquia de São Nicolau abriga de
vez em quando homilias de um brasilei-
ro fã de Bolsonaro, das armas e de Olavo
de Carvalho. O padre Paulo Ricardo, de
56 anos, atua em Cuiabá. Foi o tutor de
Allan dos Santos, ex-seminarista que se
tornou blogueiro, defendeu o golpe bolso-
narista e esconde-se da Justiça brasilei-
ra nos Estados Unidos. O Terça Livre, ca-
nal de Santos no YouTube, tinha um co-
laborador português, José Carlos Sepúl-
veda, antigo secretário pessoal de Dom
Bertrand de Orleans e Bragança, francês
que se considera herdeiro do trono brasi-
leiro e espécie de líder da TFP na Europa.
A Tradição, Família e Propriedade
foi criada em 1960 pelo brasileiro Pli-
nio Corrêa de Oliveira, morto em 1995
aos 86 anos, descendente de senhores de
engenho de Pernambuco e bandeirantes
paulistas. Foi tutor de D. Bertrand, tio do
deputado-príncipe e bolsonarista Luiz
Philippe de Orleans e Bragança. A orga-
nização internacionalizou-se a partir dos
anos 1980 graças a um colaborador de Pli-
nio, Caio Xavier da Silveira, fundador de
duas organizações ultracatólicas na Po-
lônia, a Piotr Skarga e Ordo Iuris. “Com
origem na América Latina, a TFP é hoje
um ator europeu, com seus integrantes
polacos a servir como o novo centro de
gravidade desse movimento extremista”,
diz um relatório de 2021 do Fórum Parla-
mentar Europeu para os Direitos Sexuais
e Reprodutivos. A embaixadora da TFP
multinacional é uma brasileira, Ângela
Gandra, filha do advogado Ives Gandra
Martins, que chegou a ensaiar uma tese
para justificar um eventual golpe de Bol-
sonaro após as eleições de 2022. Segun-
do o documento europeu, denominado “A
ponta do iceberg”, causas fundamentalis-
tas (antiaborto, contra igualdade de gê-
nero) receberam 707 milhões de dólares
na Europa entre 2009 e 2018. A rede TFP
foi a segunda maior doadora: 113 milhões.
Em sexto lugar na lista, estava uma or-
ganização espanhola, a CitizenGo (seu
nome original era HazteOir). Por trás da
entidade, aparece um advogado e ciberati-
vista de 51 anos, Ignacio Arusaga. Segun-
do documentos vazados pelo WikiLeaks
em 2021, a entidade de Arusaga treinou
o padre Paulo Ricardo, fenômeno de mí-
dia, com 2,2 milhões de seguidores nas re-
des sociais e 1,9 milhão no YouTube. Ou-
tro clérigo brasileiro que bebeu na mes-
ma fonte é José Eduardo de Oliveira e Sil-
va, de São Paulo, um dos alvos da Polícia
Federal em uma operação de fevereiro de
2024 que investiga a tentativa de golpe no
País. O padre integraria o núcleo jurídico
dos golpistas, conforme a PF. Teria parti-
cipado de uma reunião com Bolsonaro em
novembro de 2022 que debatia um decre-
to para anular a eleição e prender algumas
autoridades, entre elas Alexandre de Mo-
raes, do Supremo Tribunal Federal.
Na Espanha de Arusaga,
nasceu o Foro de Madrid,
movimento que se pro-
põe a ser o avesso do
Foro de São Paulo, aque-
la união de líderes latino-americanos de
esquerda. Ao Foro de Madrid aderiram
André Ventura, Eduardo Bolsonaro,
Georgia Meloni (Itália), José Antonio
Kast (Chile) e Milei. O encontro deste ano,
em setembro, deu-se em Buenos Aires. A
articulação da criação do foro coube ao
partido espanhol de extrema-direita Vox,
por meio de sua fundação de estudos, a
Disenso. Em setembro passado, Ernesto
Araújo, ministro das Relações Exteriores
no governo Bolsonaro, foi contratado co-
mo assessor internacional da Disenso.
Com Araújo à frente, o Itamaraty havia
publicado, em 2020, um livro escrito por
um dos ideólogos e vice-presidente do
Chega, Gabriel Mithá Ribeiro, moçambi-
cano de 59 anos deputado em Portugal. O
livro (Um Século de Escombros) é um ata-
que à esquerda e uma ode a Bolsonaro,
Olavo de Carvalho e Donald Trump.
Trump pode voltar à Casa Branca na
eleição em 5 de novembro. Duas semanas
após o pleito, a Atlas promoverá seu en-
contro anual, em Nova York. O futuro do
governo Milei será um dos assuntos. Ou-
tro será o resultado da disputa pela Casa
Branca “e o que isso significa para os think
tanks nos EUA”, resume o site da entidade.
Compreensível, a preocupação. Um livro
de 2012 escrito por um historiador norte-
-americano, Daniel Stedman Jones, ava-
lia de forma crítica que os think tanks do
livre-mercado são “Os Mestres do Univer-
so” (este é o nome da obra).
Quando Trump tentou continuar
arra no poder, com o apoio de partidá-
rios fanáticos que invadiram o Capitólio
em 6 de janeiro de 2021, um dos grupos
presentes nas ruas de Washington desde
a véspera era de radicais cristãos, à fren-
te da “Marcha Jericó”, referência à his-
tória bíblica da tomada da cidade por is-
raelitas. O republicano tem aliados radi-
cais na Igreja Católica dos EUA. Um deles
é o cardeal Raymond Burke, ex-sócio de
Steve Bannon em um empreendimento
religioso que não vingou na Itália. O ou-
tro é o padre Joseph Strickland. No fim
de 2023, Burke foi expulso pelo papa de
uma residência que ocupava no Vatica-
no e teve o salário cortado, fato sem pre-
cedentes no catolicismo. Na mesma épo-
ca, Strickland foi retirado por Francisco
de uma diocese no estado do Texas. Um
terceiro ultraconservador católico que
servia nos EUA foi expulso em julho de
2024, o italiano Carlo Maria Viganò. Os
três fazem oposição visceral ao pontífice.
Um historiador e cientista político
conterrâneo de Trump, Mark Lilla, de 68
anos, publicou em 2018 o livro A Mente
Naufragada: Sobre o Espírito Reacioná-
rio. De acordo com Lilla, os reacionários
de direita são tão radicais quanto os re-
volucionários de esquerda. Mas, enquan-
to estes têm como utopia um futuro no-
vo a ser construído, os reacionários têm
como horizonte um passado idealizado.
As trevas medievais, em suma. •
CARTA CAPITAL
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