Na Santa Catarina do
massacre na creche, a cruzada de
um deputado contra uma professora
P O R R E N É R U S C H EL
A sucessão de ataques e mor-
tes em escolas trouxe à to-
na uma discussão que há
anos se agrava no País. De
acordo com um mapea-
mento da Universidade de Campinas,
desde 2002, quando foi registrado o pri-
meiro atentado oficial, aconteceram 22
ocorrências. Nos últimos 15 dias, quatro
escolas sofreram ataques em São Paulo,
Blumenau, Manaus e Santa Tereza de
Goiás, região norte do estado, ocorrido
na terça-feira 11. A dúvida é saber se es-
te é um fenômeno intramuros ou refle-
xo do comportamento da sociedade.
Em Santa Catarina, palco do massa-
cre no qual quatro crianças com idades
entre 4 e 7 anos foram barbaramente as-
sassinadas à machadinha no município
de Blumenau, Waldir José Rampinelli,
professor titular de História na Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, gradu-
ado em Letras, Filosofia e Direito, enxer-
ga uma estreita ligação entre a violência e
o processo histórico do nazismo que pro-
lifera desde a chegada dos primeiros imi-
grantes europeus, em fins do século XIX.
“Sempre houve uma rejeição àqueles que
agiam, pensavam ou eram diferentes.”
Esse caldo de cultura encontrou, se-
gundo Rampinelli, um solo fértil nos úl-
timos anos, notadamente a partir do go-
verno de Jair Bolsonaro. “Nesse ínterim,
o discurso do politicamente correto, de
repulsa à violência, os manteve latentes
e camuflados. Com a vitória de Bolsona-
ro em 2018, quando ele autoriza eliminar
os diferentes e incentiva a política do ar-
mamento civil, essa gente se sentiu pron-
ta para sair do casulo e se manifestar pu-
blicamente.” Para o acadêmico, tanto o
ex-capitão quanto o governador Jorgi-
nho Mello, “bolsonarista de carteirinha
que se elegeu divulgando fotos portan-
do armas nas redes sociais”, têm culpa.
“Não considero a violência nas escolas
como fenômeno isolado, mas reflexo de
um comportamento sistêmico, crescen-
te, que até recentemente contou, e ain-
da conta, com o respaldo de lideranças
políticas, legislativas e judiciárias, bem
como de importantes segmentos da nos-
sa sociedade”, diz a antropóloga Janaína
Santos, mestre e doutora em Antropo-
logia Social pela mesma UFSC. “Assis-
timos à tentativa de desconstrução dos
alicerces democráticos com ataques vio-
lentos às instituições. A invasão da Pra-
ça dos Três Poderes, em Brasília, é o me-
lhor retrato deste momento.”
A antropóloga cita o filósofo alemão
Theodor Adorno, para quem a finalida-
de número 1 da educação na Alemanha
é a de que Auschwitz não se repita. “Não
pode ser uma educação qualquer, tam-
pouco apenas segurança armada nos
portões das escolas. Precisamos de um
modelo de ensino que eduque, ampare
e forme nossas crianças, adolescentes e
jovens, que trate a nossa gente, tão adoe-
cida, de forma acolhedora.”
Não parece ser o desejo dos parla-
mentares catarinenses. Em Florianó-
polis, a orientadora educacional Juliana
Andozio, servidora na Escola Básica de
Muquém, está afastada há mais de 30
dias de suas funções por denúncia do
deputado estadual Sargento Lima, do
PL. Submetida a um processo de sindi-
cância, Andozio é acusada de promover
“doutrinação político-partidária e se re-
ferir aos alunos como homofóbicos e ma-
chistas”. Professores, sindicalistas e lí-
deres de movimentos sociais reagem e
afirmam tratar-se de perseguição polí-
tica. Especializada em gênero e diversi-
dade, Andozio trabalha como funcioná-
ria efetiva na escola há três anos. Desen-
volve projetos integradores, principal-
mente vinculados aos Direitos Huma-
nos, escuta, acolhe e orienta estudantes
em inúmeras questões, organiza o grê-
mio estudantil e compõe o Núcleo de
Educação, Prevenção, Atenção e Aten-
dimento às Violências na Escola, entre
outras atividades.
Para a presidente do Conselho Deli-
berativo Escolar, Priscila Rodrigues Si-
mões, alguns pais ou responsáveis pe-
los alunos não entendem o trabalho de
orientação pedagógica por ser a primeira
vez que tal função é desenvolvida na es-
cola. “Quando discutimos questões como
homofobia ou racismo, algumas pessoas
interpretam o trabalho como doutrina-
ção.” A orientadora foi denunciada por
upostamente implantar na escola ba-
nheiros unissex e sexualizar as crianças.
Nos primeiros dias de aula deste se-
mestre, Andozio visitou as salas para in-
formar aos alunos sobre algumas ativi-
dades que seriam desenvolvidas ao lon-
go do ano, entre elas a constituição do
grêmio estudantil. Também falou sobre
a existência do Disque 100, serviço para
denunciar violações de direitos huma-
nos. “Foi o que bastou para algumas fa-
mílias afirmarem que eu estava fazendo
um trabalho que não era meu, que não
devia falar sobre democracia nem Di-
reitos Humanos em sala de aula”, relata.
Na Assembleia Legislativa, o deputa-
do bolsonarista Sargento Lima foi à tri-
buna para interpelar e fazer ameaças à
servidora. Disse ter sido procurado “por
pais” com relatos de que “as crianças es-
tavam sendo induzidas à sexualização”
e que muitas deixaram de ir ao banheiro
desde que se tornou “unissex”. Chegou ao
cúmulo de afirmar que a orientadora te-
ria dito que as crianças “bissexuais po-
dem trocar de nome (...) e nosso sindica-
to arranja um advogado para quem qui-
ser trocar de nome”. Depois indagou seus
pares: “Vocês entenderam por que a es-
querda desarmou a direita?”
“São denúncias infundadas. Não exis-
te banheiro unissex nem promessas de
troca de nomes”, afirmou o secretário de
assuntos educacionais do Sindicato dos
Trabalhadores da Educação, Luiz Carlos
Vieira. “Estão querendo politizar o pro-
blema.” O parlamentar concluiu seu dis-
curso com ameaças. Disse que, “se fosse
minha neta, meu filho ou umas das mi-
nhas enteadas, uma hora dessa um su-
plente ‘tava’ (sic) assumindo minha va-
ga aqui porque eu estaria na cadeia, sim-
plesmente isso”. CartaCapital procurou
o gabinete do deputado para conhecer
sua versão, mas até o fechamento desta
reportagem não obteve resposta. •
CATA CAPITAL
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