LUIGI MAZZA
Em sua cruzada contra o marxismo cultural, a China, as vacinas e a globalização, Ernesto Araújo sempre julgou necessário estudar o inimigo. Diz ter lido, entre outros pensadores marxistas contemporâneos, Slavoj Žižek e Alain Badiou. Mas em outubro do ano passado, dada a importância do momento histórico – faltavam poucos dias para o segundo turno da eleição presidencial –, o ex-chanceler de Jair Bolsonaro resolveu cortar intermediários e ir logo à fonte de todo o mal: Karl Marx.
“Precisamos entender melhor o que está por trás do projeto marxista”, justificou aos alunos do Curso de Logopolítica, uma série de aulas transmitidas online em que Araújo compartilha seus conhecimentos de filosofia e geopolítica. O neologismo “logopolítica” é de sua lavra: trata-se, segundo ele, do “terreno na intersecção da geopolítica, filosofia, cultura e teologia”. Logos, em grego, pode significar tanto linguagem quanto razão.
Na ocasião, Araújo pôs os alunos para
estudar as Teses sobre Feuerbach. O texto,
escrito por Marx antes de completar
30 anos e só publicado depois de sua mor-
te, é um acerto de contas com o materia-
lismo – na visão de Marx, limitado – do
filósofo alemão Ludwig Feuerbach. São
onze teses que, para muitos estudiosos do
marxismo, formam o primeiro esboço do
que viria a ser conhecido como materialis-
mo dialético. Araújo tem uma interpreta-
ção um tanto distinta: “Marx vai dizer,
basicamente, que Feuerbach não foi longe
o suficiente na destruição do cristianismo.”
Antes de iniciar a leitura, o diplomata ob-
servou, en passant: “Não sei se é coinci-
dência ou não, mas o número onze é
importante em alguns círculos ocultistas.”
Marx argumenta, na terceira tese,
que o erro de Feuerbach é enxergar o ser
humano apenas como produto das cir-
cunstâncias – quando, na verdade, ele é
produto e causa. O educador também
precisa ser educado, exemplifica Marx.
Ao deparar com esse trecho, Araújo teve
uma epifania: o filósofo alemão defendia
a doutrinação de professores. “Marxismo
cultural praticamente puro”, comentou,
com um sorriso nervoso. Leu trechos do
original em alemão e encerrou a aula
fazendo um pedido óbvio aos alunos: que
votassem em Bolsonaro. “É o único cami-
nho para que não caiamos no programa
das teses sobre Feuerbach.” Lula venceu
a eleição, e ainda não se tem notícia de tal
programa. Araújo continua vigilante.
Desde junho, quando inaugurou o
curso, o ex-chanceler ministrou mais
de quarenta aulas ao vivo, a maioria
com duas horas de duração. A ementa
é abrangente, como demonstram os
títulos dos vídeos: numa semana, os
alunos aprendem sobre “Crime, Clima,
China”; noutra, sobre “O Triângulo das
Bermudas do Corruptariado”, ou “Za-
ratustra contra o globalismo”. Por vezes,
Araújo brinda os estudantes com leitu-
ras em grego, latim, alemão e francês.
Tamanha erudição deixa os pupilos
embasbacados. Em um grupo de Tele-
gram dedicado ao curso, um aluno defi-
niu as aulas como um “oásis intelectual e
espiritual no caótico cotidiano”. Uma
colega foi além. “Professor, cada aula sua
é um livro, uma complexidade, uma obra
poética, uma aventura generosa nos con-
vidando a ter fome de sabedoria”, afir-
mou, depois de assistir a Araújo esmiuçar
passagens do Novo Testamento em grego.
Ernesto Araújo alinhou o Itamaraty
ao ideário de Donald Trump, que
ele saudara como a salvação do Oci-
dente em um artigo de 2017. Pressiona-
do, pediu demissão depois que Joe Biden
chegou à Casa Branca, em 2021. Desde
então, leva uma vida pacata. Ao contrário
de outros ex-ministros, optou por não dis-
putar eleições, e também não quis retor-
nar à diplomacia. Pediu licença não
remunerada do Itamaraty e se mudou
para os Estados Unidos, onde vive com a
mulher, a diplomata Maria Eduarda de
Seixas Corrêa. Ela trabalha no consula-
do brasileiro em Hartford, Connecticut.
Ele se dedica aos estudos.
O objetivo de seu curso, conforme ex-
plicado na aula inaugural, é esquadrinhar
a origem e os métodos do “globalismo” –
uma assombrosa rede de poder mundial
que assombra a extrema direita do mun-
do todo. Na estante de livros que aparece
atrás de Araújo em todas as aulas, é possí-
vel encontrar autores que se consagraram
com teorias conspiratórias desse gênero,
como Marc Morano e Eric Metaxas. Re-
pousando sobre os livros, há uma bandei-
ra com a cruz da Ordem de Cristo.
A inscrição no curso de logopolítica
custa 450 reais (quem comprou na Black
Friday pagou 297). A julgar pelo núme-
ro de participantes do grupo de Tele-
gram (eram 67, em março deste ano),
Araújo deve ter faturado uns 30 mil reais
com a empreitada. O perfil dos alunos é
diverso: há professores universitários,
um engenheiro aposentado da Petro-
bras, uma costureira. Recentemente, ele
começou também a fazer mentorias
com um grupo mais restrito de estudan-
tes. O preço não foi divulgado.
Quem se inscreve no curso aprende
que as raízes do globalismo podem ser
encontradas antes de Cristo, na Grécia
antiga. “O sofista não é materialista nem
idealista, é um idólatra do poder. Isso
mais tarde resulta no pragmatismo, o
pragmatismo se abre para o marxismo e
aí você tem o globalismo”, ensina Araú-
jo, numa aula sobre Heráclito e Platão.
Os alunos aprendem a farejar o globalis-
mo nas pequenas coisas – como num
verso de Imagine, de John Lennon. “No-
thing to kill or die for. Não lute. Essa é a
mensagem que a gente recebe desde
criança”, lamentou o diplomata.
Observando o Brasil a 6 mil km de
distância, Araújo torceu fervorosa-
mente por um golpe de Estado. Na
primeira aula depois da eleição, até libe-
rou os alunos empenhados em derrubar
o governo eleito. “Quem estiver nas ma-
nifestações não vai levar falta”, avisou.
Em 12 de dezembro, quando bolsonaris-
tas atearam fogo em ônibus e tentaram
invadir a sede da Polícia Federal em Bra-
sília, Araújo buscou inspiração na poesia.
“Como diria Fernando Pessoa: É a hora”,
disse, citando o verso final de Nevoeiro,
último poema de Mensagem. Dias de-
pois, um aluno otimista escreveu: “Estou
sentindo cheiro de intervenção.” O diplo-
mata respondeu em chave lírica: “Está
soprando um vento na noite escura.”
Perto da virada do ano, uma aluna se
exasperou porque os tanques não se mo-
viam rumo à Brasília: “Ernesto, ainda crês
que algo (que nós esperamos) vai aconte-
cer? Quando? O pr viajou mesmo para os
eua, meu Deus?” O professor buscou
tranquilizá-la. “Parece que não viajou.”
E, numa tentativa de traduzir a conjuntu-
ra, recorreu à dialética: “Acho que qual-
quer ação está tão improvável que é capaz
de acontecer algo, paradoxalmente.” No
dia seguinte, Bolsonaro embarcou rumo à
Flórida. Não retornou desde então.
Quando a turba bolsonarista invadiu a
Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro,
Araújo soube da bagunça em primeira
mão por um de seus alunos, que participa-
va do ataque ao Congresso Nacional e
filmava tudo. Ficou eufórico. “Viva mil
vezes”, celebrou o ex-chanceler, à medida
que recebia fotos e vídeos da invasão. “Tão
fazendo ocupação”, escreveu o estudante
golpista. “Refundação”, corrigiu o professor.
Tudo é incerto e derradeiro/Tudo é
disperso, nada é inteiro, diz Pessoa no
poema Nevoeiro. O golpe não prospe-
rou, e os alunos do curso de logopolíti-
ca foram tomados pelo desânimo. Um
deles perguntou ao professor se o Brasil
ainda tinha jeito. A resposta foi enigmá-
tica: “O jeito virá quando a gente não
espera, de onde a gente não espera.
Acho que o misterioso mecanismo da
história foi posto em movimento.”
PIAUI
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