ANDRÉ BARROCAL
Em 18 de janeiro, dez dias após a tentativa de golpe bolsonarista em Brasília, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva discursou a subordinados no Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, e comentou que a eleição de Lula havia sido “indesejada” pela “maioria” dos militares. Três dias depois, o presidente demitiu o então comandante-geral do Exército, Júlio Cesar de Arruda, e botou Paiva no lugar, pois o general também tinha dito no discurso que as Forças Armadas são apartidárias e têm uma missão, não importa quem esteja no poder. Arruda havia sido, no mínimo, omisso no levante do dia 8, executado por indivíduos que passaram semanas acampados na porta do QG do Exército na capital brasileira. E depois conseguiu adiar a prisão deles por algumas horas, por exemplo.
Um dos que acharam “indesejada” a vitória de Lula foi o chefe da Marinha de Bolsonaro, o almirante Almir Garnier Santos. Este se recusou a passar o cargo ao almirante Marcos Sampaio Olsen em 5 de janeiro, um fato bastante incomum. Permaneceu no posto até 31 de dezembro, quando findou o mandato do capitão, e escafedeu-se. A data de sua dispensa constava de um decreto assinado por Bolsonaro em 29 de dezembro.
No dia da assinatura do papel, o sargen-
to da Marinha Jairo Moreira da Silva via-
jou de Brasília a São Paulo para uma mis-
são: tentar pegar joias avaliadas em 16,5
milhões de reais que estavam na alfânde-
ga do aeroporto de Guarulhos. O sargen-
to trabalhava na Presidência desde março
de 2022. A viagem a São Paulo foi uma or-
dem do tenente-coronel do Exército Mau-
ro Cesar Barbosa Cid, “faz-tudo” no gabi-
nete de Bolsonaro no Palácio do Planal-
to. Como prêmio pela dedicação ao capi-
tão por quatro anos, Cid, filho de um ge-
neral amigo de Bolsonaro colocado pelo
então presidente em um cargo em Miami
em 2019, havia sido designado, perto do
fim do governo, para chefiar uma unida-
de verde-oliva a 200 quilômetros do Pa-
lácio do Planalto. Desconfiado de todos
os milicos após o 8 de janeiro, Lula que-
ria anular a nomeação. Arruda não acei-
tou, e esse foi outro motivo de sua degola.
As joias que o sargento Jairo
deveria buscar tinham vin-
do da Arábia Saudita 14 me-
ses antes, em 26 de outubro
de 2021, na comitiva do al-
mirante Bento Albuquerque,
o ministro de Minas e Energia da épo-
ca. Albuquerque voltava de um evento no
Oriente Médio. As peças estavam na mo-
chila de um tenente da Marinha, Marcos
André dos Santos Soeiro, chefe do escri-
tório do Ministério no Rio de Janeiro na
ocasião. A bagagem de Soeiro tinha sido
vasculhada pela Receita Federal no ae-
roporto. O tenente não havia declara-
do as joias ao Fisco antes: nem que eram
dele, nem de terceiros, nem do governo.
Numa situação dessas, o “Leão” cobra
50% do valor do bem, a título de impos-
to, e tasca multa de 50%. Como a fatura
era gordíssima, ninguém da comitiva de
Albuquerque pagou, e o Fisco apreendeu
o material. O prazo para pagar acabou em
julho de 2022, e ninguém pagou.
Ao saber da revista no subordinado na
alfândega, Albuquerque foi aos fiscais,
tentar desembaraçar as joias. “Isso tu-
do vai entrar para a primeira-dama”, dis-
se ele, conforme registro de uma câme-
ra de segurança. Seria um presente sau-
dita para o casal Michelle e Jair. O paco-
te, prosseguiu o almirante, estava fecha-
do desde as Arábias, daí que ele suposta-
mente desconhecia o conteúdo. Ao falar
do episódio ao Estado de S. Paulo, jornal
que revelou o rolo das joias em 3 de mar-
ço, o almirante relatou a existência de ou-
tro presente saudita. Este segundo paco-
te também era de joias e não havia sido
descoberto pela Receita. Ficou 13 meses
em um cofre no Ministério de Minas e
Energia (Albuquerque deixara o gover-
no em maio). Em novembro de 2022, foi
enviado à Presidência e catalogado como
pertencente ao acervo pessoal de Bolso-
naro, o que significa que o capitão levaria
consigo após o mandato. Quando o sar-
gento Jairo esteve no aeroporto de Cum-
bica para tentar pegar as joias do pacote
de 16,5 milhões, disse a um fiscal: “Não
pode ter nada do antigo (presidente) pro
próximo (Lula), tem que tirar tudo e le-
var”. A conversa foi gravada por outra câ-
mera da alfândega.
É comum um presidente ganhar pre-
sentes de outro país enquanto exerce o
poder, mas guarda para si aquilo que for
de pouco valor e tiver caráter bem pes-
soal, como roupa e perfume. Obras de
arte, por exemplo, devem ir para o acer-
vo público da Presidência. No tempo de
Bolsonaro, o responsável por decidir so-
bre o que seria acervo privado ou públi-
co era um oficial da Marinha, o capitão
de corveta Marcelo da Silva Vieira, o nú-
mero 2 do Departamento de Documen-
tação Histórica da Presidência. Bolso-
naro guardou consigo o conteúdo do se-
gundo pacote (relógio de ouro, abotoadu-
ra, caneta, anel), conforme admitiu pu-
blicamente na quarta-feira 8. Mas ele ti-
nha direito a isso? E o primeiro pacote,
o de 16,5 milhões, por que Soeiro não o
declarou ao Fisco em outubro de 2021?
Era presente mesmo para Michelle? Ou
seria propina disfarçada, e para quem?
A Polícia Federal tentará desfazer esses
mistérios. Há ao menos dois ilícitos po-
tenciais no caso. Descaminho, que é ilu-
dir a Receita para não pagar imposto (pe-
na de 1 a 4 anos de prisão), e peculato, a
apropriação por agente público de um va-
lor ou um bem público pelo qual deveria
zelar (de 2 a 12 anos). Os primeiros cha-
mados a depor à PF foram Albuquerque e
Soeiro. “Um almirante de esquadra envol-
vido diretamente nesse tipo de situação é
algo de que não se tem notícia no Brasil”,
diz João Roberto Martins Filho, ex-presi-
dente da Associação Brasileira de Defesa e
autor do livro Os Militares e a Crise Brasi-
leira, de 2021. “Este caso é lastimável. Não
interessa ao Brasil a desmoralização dos
militares. Eles estão em um processo de
perda de prestígio muito acentuado”, afir-
ma o historiador Manuel Domingos Neto,
estudioso das Forças Armadas.
A “acentuada” perda de prestígio aju-
da a entender uma ofensiva de civis pa-
ra domar a tigrada dos quartéis. Uma in-
vestida a unir governo, membros do Con-
gresso e do Judiciário e que, em uma das
frentes, coloca em cena o famigerado ar-
tigo 142 da Constituição, aquele do “gol-
pe militar dentro da lei”.
Lula tirou a Agência Brasileira de In-
teligência das mãos dos militares e pas-
sou-a à Casa Civil. Desde a sua criação, em
1999, a Abin tinha estado só dois anos fora
do Gabinete de Segurança Institucional, o
GSI, órgão comandado por generais. O es-
colhido do petista para dirigi-la é o dele-
gado Luís Fernando Corrêa, que esteve à
frente da PF no segundo governo do petis-
ta. A indicação foi enviada no início do mês
ao Senado, a quem cabe aprovar (ou não).
O presidente encomendou a Corrêa uma
reformulação da Abin. Não quer vê-la ba-
sear seus informes em notícias de jornal
(já era assim em seus outros mandatos),
nem ser pego de surpresa por fatos como
o levante de 8 de janeiro, embora servido-
res da agência digam que alertaram o GSI
sobre o que estava a caminho.
Marco Cepik, profes-
sor da Universidade
Federal do Rio
Grande do Sul, es-
pecialista em rela-
ções e segurança
internacional, deve ser o novo di-
retor da escola da Abin. Na segun-
da-feira 6, ele esteve em um deba-
te online e deu uma ideia do que
vai pela cabeça de Lula. A Abin,
comentou ele, precisa produzir
conhecimento sobre temas prio-
ritários para o desenvolvimento
brasileiro, como mudança climá-
tica, segurança alimentar, perfil
de exportações. A segurança ci-
bernética do País é outra área vital.
Recorde-se que Dilma Rousseff foi
espionada pelos americanos quan-
do presidente. A cultura do “ini-
migo interno”, causa da obsessão
pelo MST, tem de ser abandona-
da. A atual Estratégia Nacional de
Inteligência, de 2017, envelheceu. Trata
como principal risco à segurança nacio-
nal o terrorismo islâmico, mas há coisa
pior, segundo Cepik: o “extremismo vio-
lento, ideologicamente motivado com es-
sas ideologias esquisitas do século XXI”,
quase sempre “de extrema-direita”.
No Congresso, os deputados do PT
querem mudar o artigo 142 da Constitui-
ção, definidor do papel das Forças Arma-
das. O jeito como o artigo foi escrito re-
sultou de pressões do ministro do Exér-
cito da época da Constituinte, o general
Leônidas Pires Gonçalves. Dá corda à in-
terpretação de que os quartéis seriam um
poder igual aos demais (governo, Con-
gresso e Judiciário) e teriam o direito de
se meter em caso de briga entre os três, a
pedido de um destes. Um “poder modera-
dor”, em suma. Nessa interpretação, es-
taria abençoado o golpe militar legal. Era
esse “golpe” que os extremistas defen-
diam no governo Bolsonaro, e o capitão
deixava pairar no ar que poderia ocorrer.
Em fevereiro, o PSOL foi ao Supremo
Tribunal Federal contra a interpreta-
ção do golpe legal. Em junho de 2020, o
juiz Luiz Fux, da mesma Corte, tinha da-
do uma liminar a refutá-la. Os petistas
acham necessário ir além e cortar o mal
pela raiz. A proposta de mexer no artigo
142, de autoria do deputado paulista Car-
los Zarattini, acaba com a possibilidade de
os militares serem chamados para garan-
tir a lei e a ordem. O Brasil, diz Zarattini,
tem tradição de “interferência indevida
dos militares na vida política nacional”, e
não dá mais para ser assim. Não será, po-
rém, um debate fácil ou rápido, reconhe-
ce ele, dada a presumível resistência
da extrema-direita e de alguns con-
servadores ditos moderados.
A proposta também busca for-
çar os militares a entrar imedia-
tamente para a reserva, se quise-
rem assumir cargo público. Hoje,
eles podem permanecer dois anos
na ativa. Quem está na reserva não
tem tropa, eis a diferença. O minis-
tro da Defesa, José Múcio, negociou
com as Forças Armadas uma ideia
parecida e deve enviá-la em breve
ao Planalto. Seria exigido de um
militar que dê baixa do quartel, ao
disputar eleição. Uma penca de far-
dados concorreu em 2022 e quem
perdeu voltou para a caserna lam-
buzado de partidarização. A propó-
sito, Múcio negociou ainda para que
não haja, em 31 de março, uma men-
sagem do Exército a festejar o golpe
de 1964, comum na era Bolsonaro.
Em 2021, a deputada Perpétua
Almeida, do PCdoB do Acre, havia pro-
posto mudar a Constituição para exigir
que um militar passasse à reserva, an-
tes da posse em cargo público civil. O ob-
jetivo era combater a politização da tur-
ma. Dois meses antes, o País vira um ca-
so explícito de politização, e que deu em
nada. O então general da ativa Eduardo
Pazuello, que tinha estado em um pa-
lanque com Bolsonaro, respondera a um
processo disciplinar por isso e saíra incó-
lume. As alegações dele em sua defesa e
a absolvição do então chefe do Exército,
general Paulo Sérgio Nogueira de Olivei-
ra, foram um escárnio. Talvez por vergo-
nha, o governo passado tascou um sigilo
de cem anos no caso, revogado em feve-
reiro pela Controladoria-Geral da União.
Em 23 de maio de 2021, um do-
mingo, Pazuello subiu em um
caminhão-palanque ao lado do
então presidente no fim de uma
motociata no Rio e discursou
brevemente. “Fala galera... Não
ia perder esse passeio de moto de jeito ne-
nhum. Tamo junto, hein? Parabéns a vo-
cês, parabéns para a galera que taí presti-
giando o PR. O PR é gente de bem, o PR é
gente de bem. Abraço galera”. PR é como
certos círculos burocráticos chamam o
presidente. O regulamento disciplinar do
Exército diz, no item 57, que é uma trans-
gressão “manifestar-se, publicamente, o
militar da ativa, sem que esteja autori-
zado, a respeito de assuntos de natureza
político-partidária”. Já o item 107 diz ser
transgressão “tomar parte em qualquer
manifestação coletiva, seja de caráter rei-
vindicatório ou político, seja de crítica ou
de apoio a ato de superior hierárquico”.
Pazuello não era mais ministro da Saú-
de, deixara o cargo dois meses antes. Não
era mais auxiliar de Bolsonaro, era “ape-
nas” um general da ativa. Entrou para a
reserva em março de 2022, concorreu a
deputado federal pelo PL do Rio em outu-
bro e elegeu-se o segundo mais votado do
estado, com 205 mil votos. Ao defender-
-se no processo da “motociata”, disse que
tinha sido convidado a ir por Bolsonaro,
por “laços de amizade e camaradagem”,
e até avisado na véspera o próprio chefe
do Exército. Afirmou ter ficado longe da
comitiva presidencial no trajeto de moto
da Barra da Tijuca ao Aterro do Flamen-
go, mas que, no final, mesmo de másca-
ra anti-Covid, foi reconhecido por muita
gente e, devido ao assédio, resolveu refu-
giar-se na comitiva. Bolsonaro soube da
sua presença por perto, pediu que ele su-
bisse no caminhão-palanque e deu-lhe o
microfone. Tudo de improviso e nada que
configurasse ato político-partidário, pois,
afinal, Bolsonaro nem sequer era filiado
a um partido naquele dia. Paulo Sérgio
engoliu as explicações, e caso encerrado.
Uma verdadeira “acochambração”, na
visão do coronel da reserva Marcelo Pi-
mentel de Souza, ele próprio alvo de di-
versos processos disciplinares em razão
de críticas à politização das Forças Ar-
madas. Para o coronel, o general Paiva,
atual chefe do Exército, deveria reabrir
o caso. Detalhe: naquele discurso de ja-
neiro sobre os quartéis terem uma mis-
são a cumprir, não importa quem esteja no poder.
Os pecados de fardados pela ten-
tativa de golpe em 8 de janei-
ro serão julgados pela Justiça
Comum, e não na Militar.
Foi o que decidiu o minis-
tro Alexandre de Moraes, do
Supremo. Na investigação sobre executo-
res, financiadores e mentores do 8 de ja-
neiro, a PF interrogou PMs de Brasília. “Os
policiais militares ouvidos indicaram pos-
sível participação/omissão dos militares
do Exército Brasileiro, responsáveis pelo
Gabinete de Segurança Institucional e pe-
lo Batalhão da Guarda Presidencial”, disse
a PF a Moraes. O magistrado autorizou os
federais a vasculharem milicos e resolveu
que o processo correria no próprio STF.
Uma coisa é crime militar, outra, crime
de militar, anotou ele. O futuro presiden-
te do Superior Tribunal Militar, brigadei-
ro Francisco Joseli Parente Camelo, que
assume em 16 de março, apoiou a decisão.
Ele foi o chefe dos pilotos dos aviões presi-
denciais nos governos anteriores de Lula.
O Supremo está prestes a tomar outra
decisão capaz de esvaziar a Justiça Mili-
tar. Na quarta-feira 8, retomou um caso
sobre a instância apropriada para julgar
militares cometedores de crimes contra
civis em operações de Garantia da Lei e da
Ordem. Essas GLOs serão abolidas, caso
prospere no Congresso a mudança do ar-
tigo 142 da Constituição. “A Justiça Mili-
tar brasileira é um refúgio para eles, não
existe igual em nenhuma outra democra-
cia. Nos Estados Unidos, só julga crimes
de guerra”, diz João Roberto Martins Fi-
lho, defensor de extingui-la. Ele lembra
que o Exército brasileiro testou no Haiti
técnicas de matança contra a população
para depois empregar em GLOs em mor-
ros do Rio. O Brasil comandou uma for-
ça de paz da ONU no Haiti, que durou de
2004 a 2017. O primeiro chefe da tropa foi
o general Augusto Heleno, ministro do
GSI de Bolsonaro. “Hoje, nós temos uma
doutrina de Garantia da Lei e da Ordem,
graças a tudo que vivemos no Haiti”, afir-
mou Heleno em depoimento aos acadêmi-
cos Cesar Castro e Adriana Marques.
Para Manuel Domingos Neto, as For-
ças Armadas merecem uma reforma am-
pla. A supremacia das forças terrestres, ou
seja, do Exército, sobre mar (Marinha) e
ar (FAB) não se justifica em um país do
tamanho do Brasil (com costa e espaço
aéreo enormes) e no atual estágio tecno-
lógico. Essa supremacia se constata, por
exemplo, no orçamento de cada força. O
Exército tem este ano 52 bilhões, enquan-
to Marinha e Aeronáutica, juntas, têm 57
bilhões. Segundo o historiador, as forças
não deveriam mais ter um chefe próprio,
mas um comando conjunto e rotativo en-
tre cada uma delas, como nos EUA.
Mas aí talvez seja pedir um pouco de-
mais dos civis, que, por ora, parecem dis-
postos a domar a fera fardada.
Adendo da redação: Diante do escân-
dalo das joias sauditas, Bolsonaro deve es-
ticar as férias na Flórida e adiar o triun-
fal retorno ao Brasil, prometido para es-
te mês. O presentinho saudita de 16,5 mi-
lhões de reais também pode ser investiga-
do por uma CPI na Câmara, já solicitada
pelo deputado petista Rogério Correia.
Com a profusão de crimes cometidos du-
rante e após o seu mandato presidencial,
é espantoso, contudo, que o capitão ainda
possa circular livremente pelo mundo, sem
qualquer mandado de prisão contra ele. No
país que mantém intactas a casa-grande
e a senzala, a postura vacilante do Judici-
ário brasileiro é, de certa maneira, previ-
sível, mas não deixa de ser assombrosa. •
CARTA CAPITAL
No comments:
Post a Comment