O relato de uma enfermeira que há anos trabalha em defesa da saúde dos yanomamis em Roraima
Eliane Clara Opoxina
Em depoimento a Roberto Kaz
Acabo de voltar de um período
de 25 dias em Surucucu, na
Terra Indígena Yanomami, em
Roraima. Entrei no dia 17 de
janeiro deste ano para realizar
todo tipo de tarefa: tradução, atendimen-
tos, resgates, intermediação de conflitos.
Havia cerca de oitenta yanomamis inter-
nados no posto de saúde – muitos deles
crianças, em estado apático e com o cor-
po esquelético. Por vezes, perdíamos a
batalha, mas não havia tempo para sen-
tar e chorar: o que importava era não
deixar mais um yanomami morrer.
No dia a dia eu tento fazê-los sorrir:
xingo imitando as velhas yanomamis,
falo alto. Entre um atendimento e ou-
tro, também conto e ouço histórias na
língua yanomam. Mas a realidade ain-
da é muito dura: o frio nas noites gela-
das, o posto lotado e os resgates que não
param. Acordamos cedo e dormimos
tarde, isso quando não temos que passar
a noite com pacientes graves. Com o
correr dos dias, algumas crianças ga-
nham força. Quando eu passo, me cha-
mam – “Opoxina! Opoxina!”–, depois
se escondem atrás das próprias mãos e
finalmente dão um sorriso. A força que
esse povo carrega é impressionante: re-
sistem a várias situações que matariam
qualquer um de nós.
Sou de Minas Gerais. Quando come-
cei a trabalhar com os yanomamis, dez
anos atrás, eu tinha 29 anos. Havia um
único médico para todo o território –
um disparate, já que a área é maior do
que Portugal. Aquele era o meu primeiro
emprego como enfermeira. Eu andava
com vários livros de condutas médicas na
mochila, mas aprendi rapidamente que
ali dentro a gente tem que ser um pouco
de tudo. O meu primeiro caso grave foi
um ferimento por arma de fogo, com es-
pingarda. A região das serras, dentro da
Terra Indígena Yanomami, é conhecida
por antigos conflitos comunitários em
uma sociedade em que os valores princi-
pais são a honra e a coragem.
Lembro bem daquele dia. Eram sete
da manhã quando os yanomamis bate-
ram na porta do posto de saúde nos cha-
mando para atender um jovem que fora
atingido pelos inimigos. Me lembro do
colega, técnico de enfermagem, tre-
mendo enquanto arrumava a maleta de
emergência, nós dois iríamos até a aldeia
buscar o ferido. O meu coração entrou
em taquicardia, principalmente pelo
medo de outro conflito. Chegando na
metade do caminho, encontramos o jo-
vem ferido sendo carregado numa rede;
suas vísceras estavam expostas. Realiza-
mos os primeiros socorros ali na trilha,
dentro da floresta, e depois seguimos
com ele, na rede, até o posto, onde cha-
mamos o resgate aéreo para levá-lo ao
hospital. São tantos os perigos que a
gente enfrenta que é impossível ficar
pensando nisso o tempo todo, o próprio
percurso aéreo é um grande teste de fé.
Já perdi a conta de quantas tempestades
peguei em aviões pequenos que tremem
feito barco em alto-mar, ou das inúme-
ras clareiras pequenas, recém-abertas na
mata, em que pousamos de helicóptero
para salvar uma vida.
Passei um ano sendo escalada para
trabalhar em diferentes locais da Terra
Indígena Yanomami. Foi ótimo pela ex-
periência, mas eu sentia que precisava
encontrar o meu próprio lugar lá dentro.
Havia uma comunidade isolada sobre a
serra, na qual viviam grupos yanoma-
mis de pouco contato, com hábitos se-
minômades. O acesso era feito somente
por helicóptero e o posto de saúde era
precário demais. Ali seria o meu lugar.
Na primeira entrada, visitei todas as
aldeias a pé, acompanhada pelo agente
de saúde de cada uma delas. Eu cami-
nhava até doze horas por dia com os ya-
nomamis, para chegar a aldeias que
eram antes visitadas somente por heli-
cóptero. Eles viam isso como um sinal
de respeito, assim como o fato de eu dor-
mir com eles no tapiri (um acampamen-
to erguido no meio da floresta).
Acho que acabei provocando uma mu-
dança no comportamento daqueles yano-
mamis. Antes de eu ir trabalhar lá, muitos
colegas diziam que eles quase não iam
ao posto. Depois, vários passaram a ir,
já não tinham medo da napëyoma (mu-
lher não yanomami), porque a napëyoma
havia visitado as suas casas, dormido pró-
ximo ao fogo feito por eles e cantado jun-
to com eles à noite, nas festas cerimoniais.
Foi assim que recebi meu nome em yano-
mam: Opoxina, que é uma espécie de
colar feito com um rabo de tatu. Tem um
motivo: as crianças pequenas, mais ou
menos de 3 a 6 anos, andam com uma
opo xina pendurada no pescoço, para pro-
teção contra doenças e outros animais.
Eu também passei a usar, o que provoca-
va um riso geral nos yanomamis. Mas eu
explicava a eles que na floresta eu preciso
de proteção igual a uma criança.
Todas as vezes em que sobrevoo o terri-
tório yanomami e olho aquele imenso ta-
pete verde, eu sinto uma profunda honra.
As pessoas não sabem da infinita diversi-
dade cultural que existe no nosso país,
talvez porque muitas olhem para a Ama-
zônia como um amontoado de árvores –
não conseguem enxergar a quantidade de
seres vivos e invisíveis que vivem ali. Esses
povos originários resistem há mais de qui-
nhentos anos para manter o seu modo de
vida e preservar a sua casa – e isso é algo
que sempre me motivou a lutar por eles e
pelo nosso futuro. O Brasil é terra indíge-
na e o sangue que corre nas nossas veias
tem a força dos nossos ancestrais, daqueles
que foram exterminados por defender as
suas terras. Minha mãe sempre me con-
tou que sua bisavó era indígena, não sei de
qual povo, porque tentaram matar a nossa
história. Mas sei que a força que me impul-
siona a lutar vem dos meus antepassados.
Aqueles primeiros três anos que pas-
sei na região das serras foram os
mais marcantes: não havia profes-
sores, precisei ter muita força de vontade
para aprender a falar yanomam, repetin-
do com os indígenas palavra por palavra.
Passei aquele período quase integral-
mente com eles, até que engravidei do
meu companheiro, um cozinheiro fran-
cês, que eu havia conhecido em Boa
Vista (ele viera ao Brasil de mochila nas
costas, para conhecer a Amazônia).
Atravessei o primeiro mês de gravidez
ainda na região das serras, mas emagreci
muito, não conseguia comer quase nada.
Foi muito difícil dizer aos yanomamis
que eu precisaria me ausentar dali em
diante, porque eu já havia estabelecido
uma relação muito profunda com todas as
aldeias que atendia. A última caminhada
longa que fiz foi para tratar um senhor
que havia sido picado por uma jararaca.
Primeiro, me disseram que ele estava
num xapono (casa comunitária onde os
yanomamis se reúnem) a seis horas de ca-
minhada, subindo a serra. Uma vez lá,
descobri que precisaria caminhar outras
quatro horas para encontrá-lo – o que eu
faria de bom grado, se não estivesse exaus-
ta por causa da gravidez. Eu já não aguen-
tava mais subir montanhas, pedi que
trouxessem o senhor até mim – o que foi
interpretado como uma recusa. Um yano-
mami apontou uma flecha na minha di-
reção, deixando claro que não me restava
outra opção a não ser continuar em frente.
Caminhei umas dez horas naquele
dia, me senti mal, tive tontura, mas
consegui chegar antes do anoitecer.
Respirei fundo, fui até a rede do velho
e verifiquei o local da picada. Apliquei-
lhe soro com antídoto, depois fui para o
centro da casa, sentei ali no chão e des-
maiei. Quando voltei a mim, as crian-
ças me olhavam assustadas. O velho
chegou a sangrar pela boca, de tão gra-
ve que era a picada, mas acabou sobre-
vivendo. Na volta, eu ainda precisei
caminhar mais doze horas.
Dias depois, fui embora. Foi difícil
me despedir e dizer a todos que a partir
dali eu iria trabalhar com os yanomamis
do Amazonas, mais perto da minha nova
casa. A gravidez me impedia de seguir na
serra, mas eu sempre acreditei que retor-
naria. Continuei conectada com eles
pelos sonhos – e também pela radiofonia,
por onde nos falávamos. Em 2020, a saú-
de yanomami, que vinha piorando gra-
dualmente, entrou em crise aguda.
De início, questionei: como puderam
piorar o que já não era bom? Mas não
havia nada de surpreendente naquela
situação. Tratava-se, na verdade, do pla-
no explícito de um governo genocida em
que o lucro é maior do que a vida. Em
plena crise da Covid, o território yano-
mami enfrentava uma nova invasão ga-
rimpeira – a exemplo do que ocorrera
nos anos 1980 –, e bem próxima da co-
munidade onde eu tinha vivido coisas
tão lindas. O posto de saúde em que eu
atendia foi fechado por um ano e quatro
meses. Eu me sentia péssima por estar
longe, sem poder ajudar tanto. Em 2021,
o líder yanomami Davi Kopenawa con-
seguiu pressionar o Ministério da Saúde
para que o Dsei (Distrito Sanitário Espe-
cial Indígena) reabrisse o posto, mas
qual profissional iria atuar por lá? Ainda
mais naquele momento, em que as con-
dições eram as piores possíveis.
Uma semana antes eu havia sonhado
que estava lá, e que próximo do posto
havia muitas pessoas não indígenas
construindo casas, como se estivessem
abrindo uma cidade no coração da flo-
resta. Acordei assustada, e horas depois
recebi uma mensagem por áudio do fi-
lho do principal tuxawa (líder) daquela
região. Ele havia usado o celular de ou-
tro yanomami e o ponto de internet do
garimpo para pedir socorro. Contava ter
testemunhado a morte de muitas crian-
ças. Decidi que eu precisava voltar.
Em agosto de 2021, eu retornei para a
região das serras depois de seis anos.
Era uma infinidade de sentimentos
no meu coração: revolta, tristeza e ao
mesmo tempo alegria de reencontrá-los,
apesar de ser um momento tão duro na
vida deles. O percurso de helicóptero foi
assustador, chorei enquanto sobrevoava
um dos maiores garimpos da região: vi a
devastação das terras onde eles viviam,
era uma tragédia ambiental, mas sobretu-
do uma tragédia humana, o rompimento
da sociedade deles tal como a conhecía-
mos. “Você sabe para onde está indo?”, o
piloto do helicóptero me perguntou, pelo
fone. “O posto de saúde é uma casa aban-
donada no meio do nada. Tem certeza de
que você vai ficar lá?” Sim, eu estava vol-
tando para a minha casa.
De fato, o posto estava abandona-
do, revirado, com portas e jane-
las caídas, o mato invadindo a
casa. Fizemos um mutirão:
eu, um técnico de enferma-
gem e os yanomamis. Recolo-
camos as portas e pregamos
prateleiras para os remédios –
alguns dos quais eu mesma
havia comprado.
Com o posto reerguido, recomeçamos
os atendimentos – a comunidade tem
quase quinhentas pessoas, divididas em
oito aldeias. Havia crianças vomitando
vermes – a forma aguda da infestação por
ascaridíase – e dezenas de pessoas com
sintomas respiratórios. Era um surto de
pneumonia. Realizei testes de Covid, vá-
rios com resultado positivo. Foram dias
intensos e noites sem dormir, dez crian-
ças internadas no posto, todas com Co-
vid, e nós com um único tubo de oxigênio
de tamanho pequeno. Tudo estava aca-
bando, os remédios, as seringas. Eu escre-
via bilhetes e pedia aos agentes de saúde
para irem até outro posto que ficava a um
dia de caminhada em busca de mais re-
médios e seringas – mas eles também ti-
nham pouco material, nada era suficiente.
Comecei então a usar os remédios
da floresta e a chamar os xapori (pajés)
para nos ajudar porque eu já não tinha
mais esperança nos meus remédios. Ex-
pliquei a eles que a Covid era uma nova
xawara (doença epidêmica) e que a con-
taminação deveria ter sido causada pe-
los garimpos das cercanias, já que havia
um garimpo a oito horas dali, que era
rota de passagem para outra aldeia.
Antes de eu ir embora, fizemos uma
reunião com moradores de todas as al-
deias daquela região para falar sobre os
riscos do garimpo e sobre técnicas de
prevenção de doenças. Os velhos aler-
taram os jovens de que a floresta não
pode ser vendida, que as mulheres pre-
cisam ter água limpa para caçar os ca-
ranguejos nos igarapés e que as crianças
precisam de água limpa para beber.
Três meses depois, em novembro de
2021, o garimpo se instalou próximo do
posto. O aliciamento dos jovens é algo
absurdo: eles ficam deslumbrados com as
armas e ferramentas que eram quase ina-
cessíveis, como lanternas, facas, macha-
dos e, claro, bebida alcoólica, que serve
para aumentar ainda mais os conflitos
internos. O que temos visto nessas comu-
nidades em que o garimpo se instalou é
um desequilíbrio sem limites de toda a
ordem social. Nos últimos quatro anos
foi brutal a mudança no modo de vida.
Retornei uma vez mais à comunidade
em março de 2022. Eu estava lá para rea-
lizar a primeira campanha contra a Co-
vid: sim, enquanto parte do mundo já
recebia o reforço da vacina, aqueles indí-
genas não tinham tomado sequer a pri-
meira dose. A situação era muito grave
em toda a região das serras. Além da falta
de vacina para Covid e de medicamentos
para verminoses, havia agora um aumen-
to de desnutrição em razão da ruptura do
modo de vida deles. O som e as vibrações
do maquinário do garimpo es-
pantam os animais, inviabili-
zando a caça. Em paralelo, a
água é contaminada com o
mercúrio usado para separar
o ouro de outros minerais,
devastando a pesca. E as pis-
cinas residuais da atividade
garimpeira viram celeiros
para a reprodução de mosqui-
tos que transmitem a malária – uma do-
ença que debilita demais, impedindo os
indígenas de buscar alimentos na flores-
ta. O resultado é a fome.
Consegui fazer com que a maior par-
te deles viesse ao posto – menos os da
aldeia do grande líder (novamente, pre-
firo não mencionar o nome, para prote-
gê-los). Me avisaram pelo rádio: “Minha
filha, você precisa vir até nossa aldeia, os
garimpeiros acabaram com o caminho
que havia e muitas mulheres não que-
rem atravessar a lama do garimpo carre-
gando as crianças. Fora isso, os idosos
não querem passar perto dos xõmi thë pë
[povo inimigo].” Eu também não queria
passar na lama do garimpo, ver aquele
horror do alto já me fizera chorar, mas a
vacina estava ali, e eu não podia esperar
muito tempo, porque o gelo que a con-
servava acabaria derretendo.
Disse então que iria. Os indígenas es-
calaram sete yanomamis, todos armados
com espingarda, para me acompanhar.
A cerca de vinte minutos do posto, avis-
tamos os primeiros garimpeiros: haviam
se instalado exatamente no local do meu
sonho de meses atrás. Contei sete máqui-
nas ligadas e nove buracos grandes de
água amarela, com um único e frágil
caminho de terra no meio, entre os bura-
cos. Passamos por cima de motores liga-
dos e de mangueiras gigantes. Mais
adiante havia um helicóptero e vários
barracos de lona, com antena de internet
e televisão ligada. Creio que ter visto en-
tre 70 e 100 pessoas – isso porque era um
garimpo recente, com apenas três meses
de extração. Havia algumas mulheres.
Chegamos na aldeia ainda de dia. En-
contrei ali um velho que é um dos maio-
res xapori da região. Ele havia fugido da
sua aldeia depois que o garimpo avançou
contra sua casa. É o único sobrevivente do
Massacre de Haximu.* Esse homem sabe
exatamente a dor que o garimpo traz: a
degradação vai muito além do que é feito
com as terras, é o desequilíbrio de uma
sociedade colocada à beira do extermínio.
Em novembro de 2022 eu retornei à
serra para ações emergenciais, lu-
tando como um soldado sem saber
largar as armas, mas exausta em meio a
tanta dor. Em janeiro de 2023, eu estava
lá dentro quando o presidente Lula vi-
sitou a Casa de Saúde Indígena, em
Roraima. Foi muito importante porque
fez o mundo finalmente olhar para essa
situação calamitosa. Além disso, fez o
Estado brasileiro retomar o protagonis-
mo nessas ações de saúde.
Estamos no auge de uma transforma-
ção crucial para o futuro do planeta. Pro-
teger os yanomamis não é apenas uma
questão de direitos humanos. É uma defe-
sa do direito à vida. De todos. Humanos,
bichos e plantas. É preciso garantir aos
povos originários o direito de continuar
protegendo as florestas que restam, ou não
será possível evitar a catástrofe planetária.
Quando um xapori yanomami faz um
trabalho espiritual, ele garante o equilí-
brio do mundo, evitando que o céu caia
sobre a floresta, como já ocorreu, segundo
lendas do passado. É por isso que os yano-
mamis veem a si mesmos como “o povo
que segura o céu”. Não é um acaso. Js
* O Massacre de Haximu, na fronteira do Brasil com
a Venezuela, ocorreu em julho de 1993, quando ga-
rimpeiros assassinaram doze yanomamis – entre eles,
duas idosas, quatro crianças e um bebê. É o único
crime de genocídio julgado no Brasil até hoje.
PIAUI
de qui-
nhentos anos para manter o seu modo de
vida e preservar a sua casa – e isso é algo
que sempre me motivou a lutar por eles e
pelo nosso futuro. O Brasil é terra indíge-
na e o sangue que corre nas nossas veias
tem a força dos nossos ancestrais, daqueles
que foram exterminados por defender as
suas terras. Minha mãe sempre me con-
tou que sua bisavó era indígena, não sei de
qual povo, porque tentaram matar a nossa
história. Mas sei que a força que me impul-
siona a lutar vem dos meus antepassados.
Aqueles primeiros três anos que pas-
sei na região das serras foram os
mais marcantes: não havia profes-
sores, precisei ter muita força de vontade
para aprender a falar yanomam, repetin-
do com os indígenas palavra por palavra.
Passei aquele período quase integral-
mente com eles, até que engravidei do
meu companheiro, um cozinheiro fran-
cês, que eu havia conhecido em Boa
Vista (ele viera ao Brasil de mochila nas
costas, para conhecer a Amazônia).
Atravessei o primeiro mês de gravidez
ainda na região das serras, mas emagreci
muito, não conseguia comer quase nada.
Foi muito difícil dizer aos yanomamis
que eu precisaria me ausentar dali em
diante, porque eu já havia estabelecido
uma relação muito profunda com todas as
aldeias que atendia. A última caminhada
longa que fiz foi para tratar um senhor
que havia sido picado por uma jararaca.
Primeiro, me disseram que ele estava
num xapono (casa comunitária onde os
yanomamis se reúnem) a seis horas de ca-
minhada, subindo a serra. Uma vez lá,
descobri que precisaria caminhar outras
quatro horas para encontrá-lo – o que eu
faria de bom grado, se não estivesse exaus-
ta por causa da gravidez. Eu já não aguen-
tava mais subir montanhas, pedi que
trouxessem o senhor até mim – o que foi
interpretado como uma recusa. Um yano-
mami apontou uma flecha na minha di-
reção, deixando claro que não me restava
outra opção a não ser continuar em frente.
Caminhei umas dez horas naquele
dia, me senti mal, tive tontura, mas
consegui chegar antes do anoitecer.
Respirei fundo, fui até a rede do velho
e verifiquei o local da picada. Apliquei-
lhe soro com antídoto, depois fui para o
centro da casa, sentei ali no chão e des-
maiei. Quando voltei a mim, as crian-
ças me olhavam assustadas. O velho
chegou a sangrar pela boca, de tão gra-
ve que era a picada, mas acabou sobre-
vivendo. Na volta, eu ainda precisei
caminhar mais doze horas.
Dias depois, fui embora. Foi difícil
me despedir e dizer a todos que a partir
dali eu iria trabalhar com os yanomamis
do Amazonas, mais perto da minha nova
casa. A gravidez me impedia de seguir na
serra, mas eu sempre acreditei que retor-
naria. Continuei conectada com eles
pelos sonhos – e também pela radiofonia,
por onde nos falávamos. Em 2020, a saú-
de yanomami, que vinha piorando gra-
dualmente, entrou em crise aguda.
De início, questionei: como puderam
piorar o que já não era bom? Mas não
havia nada de surpreendente naquela
situação. Tratava-se, na verdade, do pla-
no explícito de um governo genocida em
que o lucro é maior do que a vida. Em
plena crise da Covid, o território yano-
mami enfrentava uma nova invasão ga-
rimpeira – a exemplo do que ocorrera
nos anos 1980 –, e bem próxima da co-
munidade onde eu tinha vivido coisas
tão lindas. O posto de saúde em que eu
atendia foi fechado por um ano e quatro
meses. Eu me sentia péssima por estar
longe, sem poder ajudar tanto. Em 2021,
o líder yanomami Davi Kopenawa con-
seguiu pressionar o Ministério da Saúde
para que o Dsei (Distrito Sanitário Espe-
cial Indígena) reabrisse o posto, mas
qual profissional iria atuar por lá? Ainda
mais naquele momento, em que as con-
dições eram as piores possíveis.
Uma semana antes eu havia sonhado
que estava lá, e que próximo do posto
havia muitas pessoas não indígenas
construindo casas, como se estivessem
abrindo uma cidade no coração da flo-
resta. Acordei assustada, e horas depois
recebi uma mensagem por áudio do fi-
lho do principal tuxawa (líder) daquela
região. Ele havia usado o celular de ou-
tro yanomami e o ponto de internet do
garimpo para pedir socorro. Contava ter
testemunhado a morte de muitas crian-
ças. Decidi que eu precisava voltar.
Em agosto de 2021, eu retornei para a
região das serras depois de seis anos.
Era uma infinidade de sentimentos
no meu coração: revolta, tristeza e ao
mesmo tempo alegria de reencontrá-los,
apesar de ser um momento tão duro na
vida deles. O percurso de helicóptero foi
assustador, chorei enquanto sobrevoava
um dos maiores garimpos da região: vi a
devastação das terras onde eles viviam,
era uma tragédia ambiental, mas sobretu-
do uma tragédia humana, o rompimento
da sociedade deles tal como a conhecía-
mos. “Você sabe para onde está indo?”, o
piloto do helicóptero me perguntou, pelo
fone. “O posto de saúde é uma casa aban-
donada no meio do nada. Tem certeza de
que você vai ficar lá?” Sim, eu estava vol-
tando para a minha casa.
De fato, o posto estava abandona-
do, revirado, com portas e jane-
las caídas, o mato invadindo a
casa. Fizemos um mutirão:
eu, um técnico de enferma-
gem e os yanomamis. Recolo-
camos as portas e pregamos
prateleiras para os remédios –
alguns dos quais eu mesma
havia comprado.
Com o posto reerguido, recomeçamos
os atendimentos – a comunidade tem
quase quinhentas pessoas, divididas em
oito aldeias. Havia crianças vomitando
vermes – a forma aguda da infestação por
ascaridíase – e dezenas de pessoas com
sintomas respiratórios. Era um surto de
pneumonia. Realizei testes de Covid, vá-
rios com resultado positivo. Foram dias
intensos e noites sem dormir, dez crian-
ças internadas no posto, todas com Co-
vid, e nós com um único tubo de oxigênio
de tamanho pequeno. Tudo estava aca-
bando, os remédios, as seringas. Eu escre-
via bilhetes e pedia aos agentes de saúde
para irem até outro posto que ficava a um
dia de caminhada em busca de mais re-
médios e seringas – mas eles também ti-
nham pouco material, nada era suficiente.
Comecei então a usar os remédios
da floresta e a chamar os xapori (pajés)
para nos ajudar porque eu já não tinha
mais esperança nos meus remédios. Ex-
pliquei a eles que a Covid era uma nova
xawara (doença epidêmica) e que a con-
taminação deveria ter sido causada pe-
los garimpos das cercanias, já que havia
um garimpo a oito horas dali, que era
rota de passagem para outra aldeia.
Antes de eu ir embora, fizemos uma
reunião com moradores de todas as al-
deias daquela região para falar sobre os
riscos do garimpo e sobre técnicas de
prevenção de doenças. Os velhos aler-
taram os jovens de que a floresta não
pode ser vendida, que as mulheres pre-
cisam ter água limpa para caçar os ca-
ranguejos nos igarapés e que as crianças
precisam de água limpa para beber.
Três meses depois, em novembro de
2021, o garimpo se instalou próximo do
posto. O aliciamento dos jovens é algo
absurdo: eles ficam deslumbrados com as
armas e ferramentas que eram quase ina-
cessíveis, como lanternas, facas, macha-
dos e, claro, bebida alcoólica, que serve
para aumentar ainda mais os conflitos
internos. O que temos visto nessas comu-
nidades em que o garimpo se instalou é
um desequilíbrio sem limites de toda a
ordem social. Nos últimos quatro anos
foi brutal a mudança no modo de vida.
Retornei uma vez mais à comunidade
em março de 2022. Eu estava lá para rea-
lizar a primeira campanha contra a Co-
vid: sim, enquanto parte do mundo já
recebia o reforço da vacina, aqueles indí-
genas não tinham tomado sequer a pri-
meira dose. A situação era muito grave
em toda a região das serras. Além da falta
de vacina para Covid e de medicamentos
para verminoses, havia agora um aumen-
to de desnutrição em razão da ruptura do
modo de vida deles. O som e as vibrações
do maquinário do garimpo es-
pantam os animais, inviabili-
zando a caça. Em paralelo, a
água é contaminada com o
mercúrio usado para separar
o ouro de outros minerais,
devastando a pesca. E as pis-
cinas residuais da atividade
garimpeira viram celeiros
para a reprodução de mosqui-
tos que transmitem a malária – uma do-
ença que debilita demais, impedindo os
indígenas de buscar alimentos na flores-
ta. O resultado é a fome.
Consegui fazer com que a maior par-
te deles viesse ao posto – menos os da
aldeia do grande líder (novamente, pre-
firo não mencionar o nome, para prote-
gê-los). Me avisaram pelo rádio: “Minha
filha, você precisa vir até nossa aldeia, os
garimpeiros acabaram com o caminho
que havia e muitas mulheres não que-
rem atravessar a lama do garimpo carre-
gando as crianças. Fora isso, os idosos
não querem passar perto dos xõmi thë pë
[povo inimigo].” Eu também não queria
passar na lama do garimpo, ver aquele
horror do alto já me fizera chorar, mas a
vacina estava ali, e eu não podia esperar
muito tempo, porque o gelo que a con-
servava acabaria derretendo.
Disse então que iria. Os indígenas es-
calaram sete yanomamis, todos armados
com espingarda, para me acompanhar.
A cerca de vinte minutos do posto, avis-
tamos os primeiros garimpeiros: haviam
se instalado exatamente no local do meu
sonho de meses atrás. Contei sete máqui-
nas ligadas e nove buracos grandes de
água amarela, com um único e frágil
caminho de terra no meio, entre os bura-
cos. Passamos por cima de motores liga-
dos e de mangueiras gigantes. Mais
adiante havia um helicóptero e vários
barracos de lona, com antena de internet
e televisão ligada. Creio que ter visto en-
tre 70 e 100 pessoas – isso porque era um
garimpo recente, com apenas três meses
de extração. Havia algumas mulheres.
Chegamos na aldeia ainda de dia. En-
contrei ali um velho que é um dos maio-
res xapori da região. Ele havia fugido da
sua aldeia depois que o garimpo avançou
contra sua casa. É o único sobrevivente do
Massacre de Haximu.* Esse homem sabe
exatamente a dor que o garimpo traz: a
degradação vai muito além do que é feito
com as terras, é o desequilíbrio de uma
sociedade colocada à beira do extermínio.
Em novembro de 2022 eu retornei à
serra para ações emergenciais, lu-
tando como um soldado sem saber
largar as armas, mas exausta em meio a
tanta dor. Em janeiro de 2023, eu estava
lá dentro quando o presidente Lula vi-
sitou a Casa de Saúde Indígena, em
Roraima. Foi muito importante porque
fez o mundo finalmente olhar para essa
situação calamitosa. Além disso, fez o
Estado brasileiro retomar o protagonis-
mo nessas ações de saúde.
Estamos no auge de uma transforma-
ção crucial para o futuro do planeta. Pro-
teger os yanomamis não é apenas uma
questão de direitos humanos. É uma defe-
sa do direito à vida. De todos. Humanos,
bichos e plantas. É preciso garantir aos
povos originários o direito de continuar
protegendo as florestas que restam, ou não
será possível evitar a catástrofe planetária.
Quando um xapori yanomami faz um
trabalho espiritual, ele garante o equilí-
brio do mundo, evitando que o céu caia
sobre a floresta, como já ocorreu, segundo
lendas do passado. É por isso que os yano-
mamis veem a si mesmos como “o povo
que segura o céu”. Não é um acaso. J
* O Massacre de Haximu, na fronteira do Brasil com
a Venezuela, ocorreu em julho de 1993, quando ga-
rimpeiros assassinaram doze yanomamis – entre eles,
duas idosas, quatro crianças e um bebê. É o único
crime de genocídio julgado no Brasil até hoje.
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