Ilustrações coloridas realizadas com nanquim, guache e caneta esferográfica sobre papel que integram a série “Modelo de armar”, de Luis Trimano, baseada em obra do escritor argentino Julio Cortázar
Por Alessandro Alvim
Com 80 anos completados no último dia 2, o ilustrador argentino radicado no Brasil Luis Trimano trabalha de forma intensa, como se tivesse uma entrega urgente a fazer, mesmo sem estar atualmente colaborando com qualquer jornal ou revista. No dia da visita ao seu ateliê, na cidade litorânea de Arraial do Cabo, no Estado do Rio, ele hachurava com uma caneta o fundo de mais um desenho colorido de uma nova série, intitulada “Modelo de armar”, que remete à ideia das antigas bonecas de papel.
— O título peguei de um livro de Julio Cortázar (“62 Modelo para armar”, derivado de “O jogo da amarelinha”). São aqueles modelos de armar que vinham nas revistas infantis, com aquelas roupinhas para vestir bonequinhos. De alguma maneira, é uma forma de relato que já começa na infância. Então, isso é adaptado a temas da atualidade político-social — explica Trimano.
A ilustração, feita com um retroprojetor, que também divide a mesa, segue o princípio da colagem, mas é nanquim, guache e esferográfica sobre papel — desenho feito sobre a projeção.
O olhar inconformado com as injustiças sociais é a marca da nova série, na qual o ilustrador mantém a narrativa crítica e o requinte gráfico que exibia quando chegou a São Paulo, há 55 anos, em busca de trabalho.
Para alguns críticos de arte, a vinda do artista renovou plasticamente a caricatura e a ilustração brasileiras, influenciando desenhistas de imprensa — entre eles, o caricaturista e pesquisador Cassio Loredano.
— A chegada dele foi um susto, em 1968. Porque na época era uma mediocridade a caricatura — comenta o confesso discípulo ao lembrar dos primeiros desenhos que viu do argentino.
Os referenciais que o portenho trouxe da figuração argentina e do muralismo mexicano proporcionaram-lhe um estofo técnico e plástico que não era visto até então na imprensa visual tupiniquim. O crítico de arte Luiz Camillo Osório destaca as qualidades da sua obra:
— Trimano trouxe para a caricatura uma potência expressiva desnorteante. Ele não desenha só com a linha, mas também com as manchas, as variações de cinzas, o contraste violento de claro e escuro. Nós, que fomos educados modernamente pela retração da figura, temos em obras como a dele um novo regime figurativo. Ponho Trimano no mesmo saco de Giacometti, Bacon, Gerald Scarfe e Loredano.
Artista nas redações
A caricatura e a ilustração vieram como uma forma de sobrevivência real na capital paulista, já que a vida de artista não lhe garantia o suficiente para o sustento.
— Sou um artista que ilustra. Quando comecei, não pensava em ilustrar. Mas depois me dei conta de que era uma corrida muito difícil — pondera Trimano, referindo-se ao mercado de venda de arte.
Em sua jornada de mais de cinco décadas, integrou equipes históricas do jornalismo gráfico brasileiro, como a primeira redação da revista Veja. Dessa época, Loredano destaca um desenho que exemplifica o olhar apurado do argentino:
— Todo mundo desenhava o Jânio Quadros, desgrenhado, caspento, vesgo. Aí vem ele e faz o sujeito de olhos fechados e decrépito. Somente ele viu o personagem.
Trimano também esteve presente nos veículos da imprensa alternativa contra a ditadura, como o Jornal Opinião, onde trabalhou com Loredano e Elifas Andreato, outro dos maiores artistas gráficos brasileiros.
Em 1974, veio para o Rio e encerrou a fase das caricaturas, passando a se dedicar exclusivamente à ilustração. Fez desenhos para Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, O GLOBO e para o lendário Pasquim, entre outros.
Ele arriscou experiências em outras áreas da arte gráfica. Também teve seu nome ligado ao teatro, à indústria fonográfica e à indústria dos livros. É um artista de múltiplas áreas e que não é restrito à imprensa, como pontua Luiz Camillo:
— Ele vai saindo da página do jornal e das magníficas capas de discos de vinil para buscar superfícies mais autônomas. Então, ele explode qualquer divisão entre caricatura, desenho e pintura.
De tudo que fez nesse extenso universo gráfico, Trimano cita a parceria com o poeta Carlos Drummond de Andrade no livro “A paixão medida”, e o cartaz da icônica montagem de “Rei Lear”, de Shakespeare, encenada por Sérgio Britto no teatro:
— A capa e o miolo do livro inédito de Drummond foram muito importantes para mim. O poeta mineiro era diferenciado, quis conhecer meus desenhos e me conhecer. Desenhei depois do nosso encontro. E também fiz os cartazes do Teatro dos Quatro, em especial a do “Rei Lear”.
Na sequência, relembra com orgulho retratos feitos para a coleção História da Música Popular Brasileira, sucesso da Abril nos anos 1970 (“Meus desenhos eram muito bem editados pelo Elifas Andreato”). Esses fascículos consistiam em um LP encartado em um caderno com a biografia de um grande compositor brasileiro. O artista retratou do pioneiro sambista Donga ao tropicalista Caetano.
Se as lembranças mostram como o argentino é um artista gráfico diverso, seu presente atesta que, aos 80, sua produção segue intensa. Tal convicção no fazer é destacada por Osório:
— Ele tem a coragem de seguir acreditando na linha e no gesto gráfico. Vendo seus desenhos, sigo confiante no trabalho da mão. Ele está mais perto dos desenhos pré-históricos de Lascaux do que da inteligência artificial. Sem qualquer nostalgia.
Apesar de desenhar incansavelmente, Trimano não se anima a expor fisicamente o que produz. Para ele, “a internet mudou as exposições; hoje é virtual”. Por isso, divulga sua produção através do seu blog, “Trimano — Arte Gráfica”, e posta com regularidade no Facebook.
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