Por Silvio Essinger
Esta sexta-feira, o cantor, compositor, violonista, arranjador e grande provocador da música popular brasileira Jards Macalé completa 80 anos de idade. Seu desejo era o de fazer uma festa no La Fiorentina, restaurante no Leme, bairro carioca onde mora — mas teve que mudar de planos porque, há cerca de um mês, o estabelecimento não resistiu a sucessivas renegociações de dívidas e anunciou seu fechamento.
— Aí eu decidi fazer o seguinte: vou encontrando com os amigos para passar o ano inteiro comemorando esses 80! Estou querendo fazer um show em que possa convidar todo mundo. Tenho muitos amigos, sou popular, tenho a madrugada como companheira — diz Macalé, citando, maroto, o “Diz que fui por aí”, samba de Zé Keti que foi sucesso na voz de um desses seus muitos amigos, Luiz Melodia, morto de câncer em 2017.
“Entre a alegria e uma certa ansiedade”, o artista carioca garantia que estava tudo bem com ele na iminência dos 80.
— Como dizia o meu amigo João Donato (de 88 anos), “enquanto eu conseguir entrar e sair do cemitério com as minhas próprias pernas, eu estou ótimo!”. É uma piada macabra, mas faz sentido — admite esse Jards Anet da Silva, que em 2018 baixou UTI em São Paulo por causa de uma broncopneumonia, deixando apreensivos os amigos e admiradores. — Tive um piripaque sério, fiquei à beira (da morte), mas, graças aos médicos, e principalmente à minha mulher, Rejane Zilles, sobrevivi para continuar fazendo história e contando histórias.
‘Coração bifurcado’
O “piripaque”, ele teve no meio da produção do álbum de inéditas “Besta fera”, lançado pouco tempo depois de deixar o hospital. Em 2021, soltou outro disco de músicas novas, “Síntese do lance”, dividido com João Donato. E, hoje, chega ao streaming “Coração bifurcado”, música em parceria com Kiko Dinucci, primeiro single de mais um álbum, a ser lançado em abril pela Biscoito Fino. São 12 faixas, todas de novas parcerias com Kiko, José Carlos Capinam (com quem compôs, nos anos 1960, um de seus primeiros sucessos, “Gotham City”), Ronaldo Bastos, Rodrigo Campos, Clima, Gui Held, Alice Coutinho e Romulo Fróes (este, responsável ainda pela direção artística do disco). Haja fôlego!
— É o acúmulo de 80 anos! É como a energia nuclear, é como se os átomos estivessem enriquecidos — brinca Macalé.
Entre “Besta fera” e “Amor bifurcado”, suas composições passaram por uma visível transição temática:
— No meio dessa história toda teve a pandemia e começou aquele negócio de família brigando com família, filho com mãe... que continua acontecendo, apesar de o Lula ter ganhado a eleição e de estarmos em um outro momento. Eu queria fazer um gesto político que não fosse raivoso, nem nada disso. Aí pensei cá comigo que falar de amor neste momento é um gesto político — conta ele, que partiu então para a criação, para o disco, de “12 canções de amor cantadas por 12 personagens”.
Uma delas, “Simples assim”, feita com Romulo Fróes, seria cantada por Gal Costa, mas a gravação não chegou a ser realizada por causa da morte da cantora, em novembro. Em seu lugar, entrou Ná Ozzetti, com quem Macalé se apresentou num Projeto Pixinguinha muitos anos atrás:
— (Essa morte) Foi um negócio terrível, para mim e para todas as pessoas que amam a Gal. Então estou dedicando esse disco a ela.
Dos parceiros, no novo disco o artista diz que só faltou mesmo o velho companheiro Waly Salomão, “que foi embora, saiu por aí” (o poeta baiano, seu cúmplice em canções como “Vapor barato” e “Mal secreto”, morreu em 2003). Com Capinam, por exemplo, ele não compunha há anos. Começou musicando um poema do amigo que tinha entre os seus guardados, “O amor in natura”, “em que Capinam fala sobre as várias possibilidades de amor”.
— E aí, na pandemia, ele escreveu um poema lindo, chamado “A arte de saber morrer” — conta Macalé, que deu sabor de jazz a versos como “a arte de não morrer/ no tempo de todas as dores/ a arte de ainda ver/ a escuridão das cores”.
Com Ronaldo Bastos (célebre integrante do Clube da Esquina, com quem só agora começou parceria), o cantor fez “O amor vem da paz” (dedicada à mulher Rejane, gravada em “Síntese do lance” e regravada para o disco) e “Mistérios do nosso amor”, na qual ele contou com a participação especial, no estúdio, de uma de suas mais antigas amigas: Maria Bethânia (com quem, por sinal, costuma trocar descontraídas mensagens de WhatsApp). Boa surpresa para Macalé foi “Coração bifurcado”, uma letra de Kiko Dinucci, cheia de referências à umbanda — a canção resultante, ele diz, lembrou de suas músicas para o filme “Tenda dos milagres” (1977), de Nelson Pereira dos Santos.
Um Rio de Janeiro pior
Incansável caminhante do Leme, onde também mora hoje o amigo Nelson Motta (“ainda não nos encontramos, mas vai acontecer a qualquer momento!”), Jards Macalé está em paz.
— O Leme é uma espécie de subúrbio de Copacabana, é mais tranquilo, mais calmo. Aqui estou de frente para o morro, tem uma vegetação maravilhosa — elogia ele, para quem “o passado é tão complexo quanto o presente, mas parece que o Rio já foi menos estilhaçado do que é hoje”. — Apesar da miséria toda, o carioca era mais amigável. Tem o Zé Keti cantando “pode me prender, pode me bater/ mas eu não mudo de opinião/ daqui do morro e não saio, não” (“Opinião”). Mas, a essa altura do campeonato, quem é que não quer sair do morro? Andar na rua hoje, desconfiando uns dos outros, é uma desgraça!
Mas resta uma vitória para Macalé: chegar aos 80 anos fazendo o que sempre fez, do jeito que quer.
— Ainda mais com o que a gente enfrentou para permanecer, para fazer
uma música saudável e inventiva, incentivando as pessoas a criar, e
sendo incentivado. Eu me coloquei em posições de risco quase o tempo
todo — alega. — Não sei se hoje estou sendo compreendido... Diria que,
pelo menos, estou sendo aceito.
GLOBO
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