January 29, 2023

Solução Final

 


FABIOLA MENDONÇA


fotografia do homem esquálido na maca, saco de ossos alimentado de luz, evocação macabra do Cristo morto do pintor italiano Andrea Mantegna, seria suficiente para descrever a tragédia Yanomâmi.

Há, no entanto, mais, muito mais. Mães,
filhos e avós cujo único “crime” é existir,
nas imagens que transbordam e afligem,
parecem resgatados de um campo de con-
centração tropical, uma Auschwitz ama-
zônica. Diante da chocante situação ex-
posta aos olhos do mundo nos últimos
dias, não restam dúvidas a respeito do que
se passou no interior da mais exuberan-
te floresta do planeta. “Assassinar crian-
ças é uma forma óbvia de conduzir o ex-
termínio de um povo”, afirmou o minis-
tro da Justiça, Flávio Dino. “Há indícios
fortíssimos da materialidade do crime de
genocídio. É disso que se cuida.”

O genocídio, como define sem exageros
 ministro, ganhou contornos de “solução
final” durante os quatro anos de governo
Bolsonaro, mas foi arquitetado há certo
tempo e tem coautores. A principal causa
da tragédia em Roraima, excetuada a ação
estatal deliberada, é a presença crescente
e incontrolável de mineradores ilegais na
maior terra indígena do País. São cerca de
20 mil garimpeiros, fortemente armados,
em pé de guerra e protegidos pelas forças
de segurança, contra 28 mil Yanomâmis
abandonados à própria sorte. Uma bata-
lha desigual em que os invasores matam,
estupram, aliciam jovens e transformam
em deserto o entorno. Os rios estão con-
taminados pelo mercúrio, o que afeta o
plantio, a caça e a pesca. A presença dos
neobandeirantes acelera a proliferação de
malária, dengue, pneumonia, diarreia e
inúmeros tipos de verminose.

“O que estamos vendo é quase uma re-
petição de fatos ocorridos na mesma re-
gião na década de 1980, retrato do com-
pleto abandono do ponto de vista sanitá-
rio e de saúde da população indígena. E,
pior, a destruição das formas de vida tra-
dicionais por impossibilidade de mantê-
-las. Um quadro assim nos faz lembrar
das grandes secas e da fome na África. Só
que aqui temos claramente uma inação ou
mesmo uma ação negativa do governo fe-
deral que começa a se mostrar ali por vol-
ta 2017, quando se inicia a desestrutura-
ção naquela região das frentes ambien-
tais, incluindo o desmonte da Funai. Es-
se quadro é aprofundado de forma muito
aguda nos quatro anos de Bolsonaro”, des-
creve Carlos Fausto, antropólogo e profes-
sor do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Durante o mandato do ex-capitão, o co-
lapso do sistema de saúde indígena apro-
fundou a crise humanitária. Ao menos
570 crianças Yanomâmis morreram por
doenças tratáveis no período, aumento de
cerca de 30% em relação aos quatro anos
anteriores. Muitas aldeias carecem de
assistência médica. Segundo o Conselho
Distrital de Saúde Indígena, dos 78 pos-
tos instalados na região, cinco não fun-
cionam por estarem em áreas ocupadas
pelo garimpo e os demais estão em con-
dições precárias de atendimento. A falta
de medicamentos e a dificuldade de remo-
ção de pacientes graves para a capital Boa
Vista impulsionam as estatísticas de morte.

   Na segunda-feira 23, Dino determinou
uma investigação profunda sobre o des-
monte do sistema e a má aplicação de re-
cursos públicos. “Precisamos de uma res-
posta enfática à gravidade desta situação.
O garimpo ilegal é o ensejador desse cri-
me contra a humanidade.”

Durante visita a Roraima no sábado 21,
acompanhado de uma comitiva formada
por diversos ministros, entre eles Nísia
Trindade (Saúde), Sônia Guajajara (Po-
vos Indígenas) e Wellington Dias (Desen-
volvimento, Assistência Social, Família e
Combate à Fome), o presidente Lula acu-
sou Bolsonaro de ser o responsável pela
tragédia. “Se, ao invés de fazer tanta moto-
ciata, tivesse vergonha e viesse aqui uma
vez, quem sabe este povo não estivesse tão
abandonado como está. Eu vim aqui assu-
mir o compromisso com os caciques, com
os nossos queridos irmãos, que vamos dar
a eles a dignidade que merecem, na saú-
de, na educação, na alimentação e no di-
reito de ir e vir, para fazerem as coisas que
necessitam na cidade”, declarou, antes de
prometer extinguir a exploração de recur-
sos naturais na reserva. “Não posso dizer
quais medidas que serão feitas, o que eu
posso dizer é que não vai existir mais ga-
rimpo ilegal. Sei da dificuldade de tirar,
sei que já se tentou outras vezes tirar e eles
voltam, mas nós vamos tirar.”

Com larga experiência no en-
frentamento a crimes am-
bientais na A mazônia,
Alexandre Saraiva, delega-
do da Polícia Federal, diz
que a tragédia vivida pelos
Yanomâmis poderia ter sido evitada, se
houvesse fiscalização continuada depois
da bem-sucedida operação coordenada
por ele em 2011, conhecida como Xawara,
que expulsou cerca de 5 mil garimpeiros
da região. “O garimpo não existe sem lo-
gística. Para funcionar precisa transpor-
tar trabalhadores, maquinário, combus-
tível, alimento. Outra estratégia, muito
utilizada na guerra, é cortar as linhas de
suprimento do inimigo. Quais são essas
linhas? Aérea e fluvial. Em Roraima, to-
do mundo sabe quais são as aeronaves
utilizadas no garimpo e quem são os pi-
lotos que atuam na atividade ilegal.”

Na Operação Xawara, lembra o delega-
do, os aviões foram apreendidos e os bre-
vês dos pilotos, suspensos. Montou-se ain-
da uma espécie de corrente no Rio Urari-
coera, o maior de Roraima, e uma base de
fiscalização. “Não entrava nada que fosse
servir para sustentar a prática de garim-
po. Paralelamente a isso, uma equipe fede-
ral destruiu todas as balsas.” Saraiva su-
gere a realização imediata de uma opera-
ção semelhante. Os recursos tecnológicos
atuais, ressalta, avançaram, o que elevaria
a chance de sucesso da investida. “Fechou
o espaço aéreo, fechou o rio, acabou. É
uma questão de vontade política. A gran-
de dificuldade sempre foi o escudo político
e o poder econômico que essa gente tem.”

Outra sugestão é rastrear o ouro fruto da
mineração criminosa para desbaratar as
formas de financiamento da atividade.

Responsável pela demarcação das ter-
ras Yanomâmi há 30 anos, o indigenis-
ta Sidney Possuelo, ex-presidente da Fu-
nai, diz que o governo Lula tem todas as
condições de expulsar os garimpeiros. A
fundação, afirma, é essencial na defesa
dos indígenas e o governo Bolsonaro foi
o responsável pelo abandono da popu-
lação e o estímulo à violência. “Sabemos
que o governo anterior destruiu não ape-
nas a Funai, mas o meio ambiente como
um todo. E o indígena, principalmente o
Yanomâmi, depende exclusivamente do
meio ambiente, das roças, dos rios lim-
pos, da caça, da pesca. Quando isso é alterado
acontece o que estamos vendo, um
quadro que horrorizou o mundo. Em me-
nos de 90 dias tiramos 40 mil invasores.
Por que o Estado agora não faz algo pare-
cido? Depois de demarcada a terra indí-
gena, é preciso ter um dispositivo que a
vigie. Que dispositivo é esse? Onde estão
esses homens? Esses homens devem
estar na Funai. A fundação é responsável
não só por demarcar, mas também por
cuidar que a terra não seja invadida.”

Durante os quatro anos do governo
Bolsonaro, a Funai transformou-se em
uma autarquia anti-indigenista. Sem ne-
nhum protesto do então titular da pasta,
Sergio Moro, a fundação deixou a alçada
do Ministério da Justiça para a pasta da
Mulher, Família e Direitos Humanos. Pa-
rêntese: as comunidades indígenas sem-
pre foram uma área de interesse parti-
cular e “profissional” da ministra Da-
mares Alves. A partir da transferência, o
órgão foi aparelhado por policiais milita-
res, muitos oriundos do batalhão paulis-
ta da Rota, e se comportava como empre-
sa de segurança dos garimpeiros e madei-
reiros, enquanto o ex-capitão cumpria a
promessa de campanha de não demarcar
mais nenhum centímetro de terra.

O último presidente da Funai, o dele-
gado da Polícia Federal Marcelo Xavier,
é acusado de retardar processos de
demarcação e assinar portarias que facili-
tavam o acesso de criminosos aos territó-
rios e ameaçavam os povos isolados. Recai
ainda sobre Xavier a denúncia de que ele
pretendia legalizar o garimpo e autorizar
a extração de madeira em regiões proibi-
das. Não por acaso, sob as barbas do dele-
gado, o indigenista Bruno Pereira e o jor-
nalista inglês Dom Phillips foram assas-
sinados no Vale do Javari, em junho pas-
sado. Antes de ser morto, Pereira havia si-
do afastado de suas funções na Funai pelo
simples fato de cumprir o dever de servi-
dor público e combater as atividades cri-
minosas em terras indígen

A lista de responsáveis pelo ge-
nocídio é extensa. Inclui o ex-
-vice-presidente Hamilton
Mourão, a ex-ministra
Damares e o antigo chefe
do Gabinete de Segurança
Institucional, o general Augusto Heleno.
Como coordenador do Conselho Nacional
da Amazônia Legal, Mourão tinha um es-
tranho viés: ignorava os pedidos de so-
corro das lideranças indígenas, enquanto
recebia com todas as honras em seu gabi-
nete em Brasília garimpeiros, ruralistas
e madeireiros acusados de crimes graves
na região. “Conversei pessoalmente com
o vice-presidente Hamilton Mourão pa-
ra tomar as providências mais urgentes e
retirar os garimpeiros da Terra Indígena
Yanomâmi. Não aconteceu nada e não
foram tomadas providências”, revelou
o líder Davi Kopenawa, da Associação
Hutukara, em entrevista à TV Globo.

Ao menos 21 ofícios com relatos dos
crimes contra a etnia e da emergência sa-
nitária foram enviados a diferentes mi-
nistérios desde 2019, sem nenhuma me-
dida. Ao contrário, em dezembro passa-
do, no período em que Bolsonaro chorava
pelos corredores do Palácio do Alvorada
inconformado com a derrota nas urnas, o
general Heleno autorizou a exploração de
ouro em uma área localizada a menos de
8 quilômetros das terras Yanomâmi. Por
causa da autorização, o ex-chefe do GSI
acabou denunciado à Procuradoria-Ge-
ral da República. “Absurdo”, reagiu. Da-
mares, por sua vez, é acusada de desacon-
selhar a instalação de infraestrutura de
saúde em territórios indígenas durante a
pandemia e negar leitos de UTI, ventila-
dores pulmonares, água potável e produ-
tos de higiene. A justificativa estapafúr-
dia da ministra? Faltou perguntar aos be-
neficiários se eles queriam ser protegidos
da Covid-19. Não só. A ex-ministra e fu-
tura senadora é acusada de facilitar o in-
gresso de ONGs evangélicas missionárias
em terras demarcadas, estas beneficia-
das com dinheiro público que deveria ter
sido aplicado no suporte aos indígenas.

Segundo o jornal O Globo, uma
dessas organizações, a Missão
Caiuá, embolsou 872 mi-
lhões de reais do Programa
de Proteção e Recuperação
da Saúde Indígena. Nas re-
des sociais, Damares saiu em defesa de
Bolsonaro, afirmou que o ministério não
tinha responsabilidade sobre o assunto
e se declarou solidária aos Yanomâmis.
“Acompanhei com dor e tristeza as ima-
gens que estão sendo divulgadas. Minha
luta pelos direitos e pela dignidade dos
povos indígenas é o trabalho de uma vi-
da. No governo Bolsonaro, a política in-
digenista era executada em três mi-
nistérios: Educação, Saúde e Justiça.”

No Telegram, Bolsonaro, contra as evi-
dências, escreveu que o cuidado com a
saúde indígena foi prioridade no seu go-
verno e que o plano executado para con-
ter a Covid-19 nas terras indígenas foi
um marco da gestão. Mentira. O desca-
so durante a pandemia só não foi maior
por causa da interferência do Supremo
Tribunal Federal, que exigiu do Palácio
do Planalto medidas urgentes e concre-
tas contra o avanço do vírus entre as
etnias. Nem mesmo a determinação do
STF, vê-se, foi cumprida à risca.

Quanto à responsabilidade do governo
Bolsonaro na tragédia Yanomâmi, acu-
mulam-se denúncias na Procuradoria-
-Geral da República e no Tribunal Penal
Internacional, em Haia. Na segunda-fei-
ra 23, a Câmara de Populações Indígenas
e Comunidades Tradicionais do Minis-
tério Público Federal associou, em nota,
a crise sanitária e social da etnia à omis-
são do Estado. As ações adotadas, diz o
documento, não foram suficientes para
proteger as terras indígenas e houve um
crescimento alarmante do número de ga-
rimpeiros na TI Yanomâmi. Para o juris-
ta Lenio Luiz Streck, há elementos con-
cretos e objetivos que implicam o gover-
no Bolsonaro, ministros e diretores da
Funai no caso em questão. “Houve mais
de duas dezenas de comunicações ao go-
verno sobre o assunto. O governo sabia
do garimpo ilegal, da invasão de terras,
da contaminação dos peixes e da água,
da questão de saúde pública agravada
na pandemia: uma tempestade perfeita.
É um trabalho complexo fazer essa inves-
tigação e chegar aos culpados. Mas basta
examinar os fatos e ver o enquadramen-
to e, inclusive, quem incentivou garim-
peiros a invadirem terras dos indígenas.”
Streck cita a Lei 2.889, com as devidas
alterações, que, no seu artigo 1º, trata de
quem ataca, com a intenção de destruir, no
todo ou em parte, grupo nacional, étnico,
racial ou religioso. Segundo o jurista, as
penas são semelhantes àquelas de homi-
cídio qualificado e outras de acordo com a
dimensão das lesões. É possível ainda re-
correr ao artigo 3º da mesma lei, referente
a incitar, direta e publicamente, alguém a
cometer qualquer dos crimes de que tra-
ta o artigo 1º. As penas chegam à metade
daquelas do crime incitado. Aliás, no mo-
mento em que o governo, por meio da Ae-
ronáutica, enviava ajuda humanitária aos
Yanomâmis, surgiu nas redes sociais uma
nova onda de ódio e ataques por parte de
bolsonaristas contra os indígenas e os mi-
litares que cumpriam suas funções. Além
das corriqueiras fake news. Uma delas di-
zia que as vítimas eram venezuelanas e es-
tavam à beira da morte por obra do gover-
no “comunista” de Nicolás Maduro.

OEstatuto de Roma, do Tribunal
Penal Internacional, faz refe-
rência a crimes da mesma na-
tureza. Segundo o documen-
to, considera-se genocídio os
atos praticados com intenção
de destruir, no todo ou em parte, um gru-
po nacional, étnico, racial ou religioso. O
estatuto identifica crime contra a huma-
nidade quando cometido no quadro de um
ataque, generalizado ou sistemático, con-
tra qualquer população civil, havendo co-
nhecimento desse ataque, incluindo o ex-
termínio. “Há décadas denunciamos a si-
tuação das invasões das terras indígenas e
dos riscos que isso representa para os nos-
sos povos, em especial os indígenas de iso-
lamento voluntário e de recente contato,
caso dos Yanomâmis. Essas denúncias
que hoje o mundo toma conhecimento já
foram levadas a diversas instâncias, in-
clusive ao Tribunal Penal Internacional,
ao STF, ao Ministério da Justiça e à pró-
pria Funai. Mas o Estado brasileiro sem-
pre fechou os olhos para esta situação
e no governo Bolsonaro isso ficou ain-
da mais latente, visível e gritante”, acu-
sa Dinamam Tuxá, coordenador-execu-
tivo da Articulação dos Povos Indígenas.

Na terça-feira 24, o recém-criado Mi-
nistério dos Povos Indígenas determi-
nou à Funai a demissão de 43 funcioná-
rios, todos militares de carreira, nomea-
dos por Sérgio Xavier. “Quando a Apib nos
convocou para aldear a política brasilei-
ra, esse chamado também incluía ocupar
órgãos como a Funai e a Secretaria Espe-
cial de Saúde Indígena (Sesai), tão estraté-
gicos ao movimento indígena. Esses fun-
cionários foram tardiamente exonerados,
uma vez que todos tinham uma orienta-
ção contrária à missão da Funai, que é ga-
rantir e proteger os nossos direitos. Agora
as indicações e nomeações serão alinha-
das aos objetivos das organizações indíge-
nas e teremos a confiança de ter pessoas
que trabalham, verdadeiramente, pela
proteção e promoção dos direitos indíge-
nas”, afirma a ministra Sônia Guajajara.

No governo Lula, a Funai mudou de
nome, para Fundação Nacional dos Povos
Indígenas, e será transferida para a no-
va pasta comandada por Guajajara. No-
meada presidente do órgão, Joênia Wapi-
chana terá como principal desafio admi-
nistrar um orçamento exíguo de 600 mi-
lhões de reais. Dentre as primeiras me-
didas a serem adotadas está a homologa-
ção das 13 terras indígenas com processos
de demarcação prontos. Nos próximos 45
dias, a Funai deve apresentar um plano
de ação específico para os Yanomâmis.

Entre as medidas emergenciais, além
da força-tarefa da área de saúde, cons-
ta o envio de mais de 5 mil cestas bási-
cas à população. A ONG Ação da Cidada-
nia lançou a campanha SOS Yanomâmi,
com o objetivo de arrecadar donativos, e
enviou mais de 10 toneladas de alimen-
tos a Roraima. Outras iniciativas se es-
palham pelo Brasil. A solidariedade é
urgente. A punição, incontornável.

CARTA CAPITAL 


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