FABIOLA MENDONÇA
A fotografia do homem esquálido na maca, saco de ossos alimentado de luz, evocação macabra do Cristo morto do pintor italiano Andrea Mantegna, seria suficiente para descrever a tragédia Yanomâmi.
Há, no entanto, mais, muito mais. Mães,
filhos e avós cujo único “crime” é existir,
nas imagens que transbordam e afligem,
parecem resgatados de um campo de con-
centração tropical, uma Auschwitz ama-
zônica. Diante da chocante situação ex-
posta aos olhos do mundo nos últimos
dias, não restam dúvidas a respeito do que
se passou no interior da mais exuberan-
te floresta do planeta. “Assassinar crian-
ças é uma forma óbvia de conduzir o ex-
termínio de um povo”, afirmou o minis-
tro da Justiça, Flávio Dino. “Há indícios
fortíssimos da materialidade do crime de
genocídio. É disso que se cuida.”
O genocídio, como define sem exageros
ministro, ganhou contornos de “solução
final” durante os quatro anos de governo
Bolsonaro, mas foi arquitetado há certo
tempo e tem coautores. A principal causa
da tragédia em Roraima, excetuada a ação
estatal deliberada, é a presença crescente
e incontrolável de mineradores ilegais na
maior terra indígena do País. São cerca de
20 mil garimpeiros, fortemente armados,
em pé de guerra e protegidos pelas forças
de segurança, contra 28 mil Yanomâmis
abandonados à própria sorte. Uma bata-
lha desigual em que os invasores matam,
estupram, aliciam jovens e transformam
em deserto o entorno. Os rios estão con-
taminados pelo mercúrio, o que afeta o
plantio, a caça e a pesca. A presença dos
neobandeirantes acelera a proliferação de
malária, dengue, pneumonia, diarreia e
inúmeros tipos de verminose.
final” durante os quatro anos de governo
Bolsonaro, mas foi arquitetado há certo
tempo e tem coautores. A principal causa
da tragédia em Roraima, excetuada a ação
estatal deliberada, é a presença crescente
e incontrolável de mineradores ilegais na
maior terra indígena do País. São cerca de
20 mil garimpeiros, fortemente armados,
em pé de guerra e protegidos pelas forças
de segurança, contra 28 mil Yanomâmis
abandonados à própria sorte. Uma bata-
lha desigual em que os invasores matam,
estupram, aliciam jovens e transformam
em deserto o entorno. Os rios estão con-
taminados pelo mercúrio, o que afeta o
plantio, a caça e a pesca. A presença dos
neobandeirantes acelera a proliferação de
malária, dengue, pneumonia, diarreia e
inúmeros tipos de verminose.
“O que estamos vendo é quase uma re-
petição de fatos ocorridos na mesma re-
gião na década de 1980, retrato do com-
pleto abandono do ponto de vista sanitá-
rio e de saúde da população indígena. E,
pior, a destruição das formas de vida tra-
dicionais por impossibilidade de mantê-
-las. Um quadro assim nos faz lembrar
das grandes secas e da fome na África. Só
que aqui temos claramente uma inação ou
mesmo uma ação negativa do governo fe-
deral que começa a se mostrar ali por vol-
ta 2017, quando se inicia a desestrutura-
ção naquela região das frentes ambien-
tais, incluindo o desmonte da Funai. Es-
se quadro é aprofundado de forma muito
aguda nos quatro anos de Bolsonaro”, des-
creve Carlos Fausto, antropólogo e profes-
sor do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
Durante o mandato do ex-capitão, o co-
lapso do sistema de saúde indígena apro-
fundou a crise humanitária. Ao menos
570 crianças Yanomâmis morreram por
doenças tratáveis no período, aumento de
cerca de 30% em relação aos quatro anos
anteriores. Muitas aldeias carecem de
assistência médica. Segundo o Conselho
Distrital de Saúde Indígena, dos 78 pos-
tos instalados na região, cinco não fun-
cionam por estarem em áreas ocupadas
pelo garimpo e os demais estão em con-
dições precárias de atendimento. A falta
de medicamentos e a dificuldade de remo-
ção de pacientes graves para a capital Boa
Vista impulsionam as estatísticas de morte.
Na segunda-feira 23, Dino determinou
uma investigação profunda sobre o des-monte do sistema e a má aplicação de re-
cursos públicos. “Precisamos de uma res-
posta enfática à gravidade desta situação.
O garimpo ilegal é o ensejador desse cri-
me contra a humanidade.”
Durante visita a Roraima no sábado 21,
acompanhado de uma comitiva formada
por diversos ministros, entre eles Nísia
Trindade (Saúde), Sônia Guajajara (Po-
vos Indígenas) e Wellington Dias (Desen-
volvimento, Assistência Social, Família e
Combate à Fome), o presidente Lula acu-
sou Bolsonaro de ser o responsável pela
tragédia. “Se, ao invés de fazer tanta moto-
ciata, tivesse vergonha e viesse aqui uma
vez, quem sabe este povo não estivesse tão
abandonado como está. Eu vim aqui assu-
mir o compromisso com os caciques, com
os nossos queridos irmãos, que vamos dar
a eles a dignidade que merecem, na saú-
de, na educação, na alimentação e no di-
reito de ir e vir, para fazerem as coisas que
necessitam na cidade”, declarou, antes de
prometer extinguir a exploração de recur-
sos naturais na reserva. “Não posso dizer
quais medidas que serão feitas, o que eu
posso dizer é que não vai existir mais ga-
rimpo ilegal. Sei da dificuldade de tirar,
sei que já se tentou outras vezes tirar e eles
voltam, mas nós vamos tirar.”
Com larga experiência no en-
frentamento a crimes am-
bientais na A mazônia,
Alexandre Saraiva, delega-
do da Polícia Federal, diz
que a tragédia vivida pelos
Yanomâmis poderia ter sido evitada, se
houvesse fiscalização continuada depois
da bem-sucedida operação coordenada
por ele em 2011, conhecida como Xawara,
que expulsou cerca de 5 mil garimpeiros
da região. “O garimpo não existe sem lo-
gística. Para funcionar precisa transpor-
tar trabalhadores, maquinário, combus-
tível, alimento. Outra estratégia, muito
utilizada na guerra, é cortar as linhas de
suprimento do inimigo. Quais são essas
linhas? Aérea e fluvial. Em Roraima, to-
do mundo sabe quais são as aeronaves
utilizadas no garimpo e quem são os pi-
lotos que atuam na atividade ilegal.”
Na Operação Xawara, lembra o delega-
do, os aviões foram apreendidos e os bre-
vês dos pilotos, suspensos. Montou-se ain-
da uma espécie de corrente no Rio Urari-
coera, o maior de Roraima, e uma base de
fiscalização. “Não entrava nada que fosse
servir para sustentar a prática de garim-
po. Paralelamente a isso, uma equipe fede-
ral destruiu todas as balsas.” Saraiva su-
gere a realização imediata de uma opera-
ção semelhante. Os recursos tecnológicos
atuais, ressalta, avançaram, o que elevaria
a chance de sucesso da investida. “Fechou
o espaço aéreo, fechou o rio, acabou. É
uma questão de vontade política. A gran-
de dificuldade sempre foi o escudo político
e o poder econômico que essa gente tem.”
Outra sugestão é rastrear o ouro fruto da
mineração criminosa para desbaratar as
formas de financiamento da atividade.
mineração criminosa para desbaratar as
formas de financiamento da atividade.
Responsável pela demarcação das ter-
ras Yanomâmi há 30 anos, o indigenis-
ta Sidney Possuelo, ex-presidente da Fu-
nai, diz que o governo Lula tem todas as
condições de expulsar os garimpeiros. A
fundação, afirma, é essencial na defesa
dos indígenas e o governo Bolsonaro foi
o responsável pelo abandono da popu-
lação e o estímulo à violência. “Sabemos
que o governo anterior destruiu não ape-
nas a Funai, mas o meio ambiente como
um todo. E o indígena, principalmente o
Yanomâmi, depende exclusivamente do
meio ambiente, das roças, dos rios lim-
pos, da caça, da pesca. Quando isso é alterado
acontece o que estamos vendo, um
quadro que horrorizou o mundo. Em me-
nos de 90 dias tiramos 40 mil invasores.
Por que o Estado agora não faz algo pare-
cido? Depois de demarcada a terra indí-
gena, é preciso ter um dispositivo que a
vigie. Que dispositivo é esse? Onde estão
esses homens? Esses homens devem
estar na Funai. A fundação é responsável
não só por demarcar, mas também por
cuidar que a terra não seja invadida.”
quadro que horrorizou o mundo. Em me-
nos de 90 dias tiramos 40 mil invasores.
Por que o Estado agora não faz algo pare-
cido? Depois de demarcada a terra indí-
gena, é preciso ter um dispositivo que a
vigie. Que dispositivo é esse? Onde estão
esses homens? Esses homens devem
estar na Funai. A fundação é responsável
não só por demarcar, mas também por
cuidar que a terra não seja invadida.”
Durante os quatro anos do governo
Bolsonaro, a Funai transformou-se em
uma autarquia anti-indigenista. Sem ne-
nhum protesto do então titular da pasta,
Sergio Moro, a fundação deixou a alçada
do Ministério da Justiça para a pasta da
Mulher, Família e Direitos Humanos. Pa-
rêntese: as comunidades indígenas sem-
pre foram uma área de interesse parti-
cular e “profissional” da ministra Da-
mares Alves. A partir da transferência, o
órgão foi aparelhado por policiais milita-
res, muitos oriundos do batalhão paulis-
ta da Rota, e se comportava como empre-
sa de segurança dos garimpeiros e madei-
reiros, enquanto o ex-capitão cumpria a
promessa de campanha de não demarcar
mais nenhum centímetro de terra.
O último presidente da Funai, o dele-
gado da Polícia Federal Marcelo Xavier,
é acusado de retardar processos de
demarcação e assinar portarias que facili-
tavam o acesso de criminosos aos territó-
rios e ameaçavam os povos isolados. Recai
ainda sobre Xavier a denúncia de que ele
pretendia legalizar o garimpo e autorizar
a extração de madeira em regiões proibi-
das. Não por acaso, sob as barbas do dele-
gado, o indigenista Bruno Pereira e o jor-
nalista inglês Dom Phillips foram assas-
sinados no Vale do Javari, em junho pas-
sado. Antes de ser morto, Pereira havia si-
do afastado de suas funções na Funai pelo
simples fato de cumprir o dever de servi-
dor público e combater as atividades cri-
minosas em terras indígen
gado da Polícia Federal Marcelo Xavier,
é acusado de retardar processos de
demarcação e assinar portarias que facili-
tavam o acesso de criminosos aos territó-
rios e ameaçavam os povos isolados. Recai
ainda sobre Xavier a denúncia de que ele
pretendia legalizar o garimpo e autorizar
a extração de madeira em regiões proibi-
das. Não por acaso, sob as barbas do dele-
gado, o indigenista Bruno Pereira e o jor-
nalista inglês Dom Phillips foram assas-
sinados no Vale do Javari, em junho pas-
sado. Antes de ser morto, Pereira havia si-
do afastado de suas funções na Funai pelo
simples fato de cumprir o dever de servi-
dor público e combater as atividades cri-
minosas em terras indígen
A lista de responsáveis pelo ge-
nocídio é extensa. Inclui o ex-
-vice-presidente Hamilton
Mourão, a ex-ministra
Damares e o antigo chefe
do Gabinete de Segurança
Institucional, o general Augusto Heleno.
Como coordenador do Conselho Nacional
da Amazônia Legal, Mourão tinha um es-
tranho viés: ignorava os pedidos de so-
corro das lideranças indígenas, enquanto
recebia com todas as honras em seu gabi-
nete em Brasília garimpeiros, ruralistas
e madeireiros acusados de crimes graves
na região. “Conversei pessoalmente com
o vice-presidente Hamilton Mourão pa-
ra tomar as providências mais urgentes e
retirar os garimpeiros da Terra Indígena
Yanomâmi. Não aconteceu nada e não
foram tomadas providências”, revelou
o líder Davi Kopenawa, da Associação
Hutukara, em entrevista à TV Globo.
nocídio é extensa. Inclui o ex-
-vice-presidente Hamilton
Mourão, a ex-ministra
Damares e o antigo chefe
do Gabinete de Segurança
Institucional, o general Augusto Heleno.
Como coordenador do Conselho Nacional
da Amazônia Legal, Mourão tinha um es-
tranho viés: ignorava os pedidos de so-
corro das lideranças indígenas, enquanto
recebia com todas as honras em seu gabi-
nete em Brasília garimpeiros, ruralistas
e madeireiros acusados de crimes graves
na região. “Conversei pessoalmente com
o vice-presidente Hamilton Mourão pa-
ra tomar as providências mais urgentes e
retirar os garimpeiros da Terra Indígena
Yanomâmi. Não aconteceu nada e não
foram tomadas providências”, revelou
o líder Davi Kopenawa, da Associação
Hutukara, em entrevista à TV Globo.
Ao menos 21 ofícios com relatos dos
crimes contra a etnia e da emergência sa-
nitária foram enviados a diferentes mi-
nistérios desde 2019, sem nenhuma me-
dida. Ao contrário, em dezembro passa-
do, no período em que Bolsonaro chorava
pelos corredores do Palácio do Alvorada
inconformado com a derrota nas urnas, o
general Heleno autorizou a exploração de
ouro em uma área localizada a menos de
8 quilômetros das terras Yanomâmi. Por
causa da autorização, o ex-chefe do GSI
acabou denunciado à Procuradoria-Ge-
ral da República. “Absurdo”, reagiu. Da-
mares, por sua vez, é acusada de desacon-
selhar a instalação de infraestrutura de
saúde em territórios indígenas durante a
pandemia e negar leitos de UTI, ventila-
dores pulmonares, água potável e produ-
tos de higiene. A justificativa estapafúr-
dia da ministra? Faltou perguntar aos be-
neficiários se eles queriam ser protegidos
da Covid-19. Não só. A ex-ministra e fu-
tura senadora é acusada de facilitar o in-
gresso de ONGs evangélicas missionárias
em terras demarcadas, estas beneficia-
das com dinheiro público que deveria ter
sido aplicado no suporte aos indígenas.
8 quilômetros das terras Yanomâmi. Por
causa da autorização, o ex-chefe do GSI
acabou denunciado à Procuradoria-Ge-
ral da República. “Absurdo”, reagiu. Da-
mares, por sua vez, é acusada de desacon-
selhar a instalação de infraestrutura de
saúde em territórios indígenas durante a
pandemia e negar leitos de UTI, ventila-
dores pulmonares, água potável e produ-
tos de higiene. A justificativa estapafúr-
dia da ministra? Faltou perguntar aos be-
neficiários se eles queriam ser protegidos
da Covid-19. Não só. A ex-ministra e fu-
tura senadora é acusada de facilitar o in-
gresso de ONGs evangélicas missionárias
em terras demarcadas, estas beneficia-
das com dinheiro público que deveria ter
sido aplicado no suporte aos indígenas.
Segundo o jornal O Globo, uma
dessas organizações, a Missão
Caiuá, embolsou 872 mi-
lhões de reais do Programa
de Proteção e Recuperação
da Saúde Indígena. Nas re-
des sociais, Damares saiu em defesa de
Bolsonaro, afirmou que o ministério não
tinha responsabilidade sobre o assunto
e se declarou solidária aos Yanomâmis.
“Acompanhei com dor e tristeza as ima-
gens que estão sendo divulgadas. Minha
luta pelos direitos e pela dignidade dos
povos indígenas é o trabalho de uma vi-
da. No governo Bolsonaro, a política in-
digenista era executada em três mi-
nistérios: Educação, Saúde e Justiça.”
No Telegram, Bolsonaro, contra as evi-
dências, escreveu que o cuidado com a
saúde indígena foi prioridade no seu go-
verno e que o plano executado para con-
ter a Covid-19 nas terras indígenas foi
um marco da gestão. Mentira. O desca-
so durante a pandemia só não foi maior
por causa da interferência do Supremo
Tribunal Federal, que exigiu do Palácio
do Planalto medidas urgentes e concre-
tas contra o avanço do vírus entre as
etnias. Nem mesmo a determinação do
STF, vê-se, foi cumprida à risca.
Quanto à responsabilidade do governo
Bolsonaro na tragédia Yanomâmi, acu-
mulam-se denúncias na Procuradoria-
-Geral da República e no Tribunal Penal
Internacional, em Haia. Na segunda-fei-
ra 23, a Câmara de Populações Indígenas
e Comunidades Tradicionais do Minis-
tério Público Federal associou, em nota,
a crise sanitária e social da etnia à omis-
são do Estado. As ações adotadas, diz o
documento, não foram suficientes para
proteger as terras indígenas e houve um
crescimento alarmante do número de ga-
rimpeiros na TI Yanomâmi. Para o juris-
ta Lenio Luiz Streck, há elementos con-
cretos e objetivos que implicam o gover-
no Bolsonaro, ministros e diretores da
Funai no caso em questão. “Houve mais
de duas dezenas de comunicações ao go-
verno sobre o assunto. O governo sabia
do garimpo ilegal, da invasão de terras,
da contaminação dos peixes e da água,
da questão de saúde pública agravada
na pandemia: uma tempestade perfeita.
É um trabalho complexo fazer essa inves-
tigação e chegar aos culpados. Mas basta
examinar os fatos e ver o enquadramen-
to e, inclusive, quem incentivou garim-
peiros a invadirem terras dos indígenas.”
Streck cita a Lei 2.889, com as devidas
alterações, que, no seu artigo 1º, trata de
quem ataca, com a intenção de destruir, no
todo ou em parte, grupo nacional, étnico,
racial ou religioso. Segundo o jurista, as
penas são semelhantes àquelas de homi-
cídio qualificado e outras de acordo com a
dimensão das lesões. É possível ainda re-
correr ao artigo 3º da mesma lei, referente
a incitar, direta e publicamente, alguém a
cometer qualquer dos crimes de que tra-
ta o artigo 1º. As penas chegam à metade
daquelas do crime incitado. Aliás, no mo-
mento em que o governo, por meio da Ae-
ronáutica, enviava ajuda humanitária aos
Yanomâmis, surgiu nas redes sociais uma
nova onda de ódio e ataques por parte de
Bolsonaro na tragédia Yanomâmi, acu-
mulam-se denúncias na Procuradoria-
-Geral da República e no Tribunal Penal
Internacional, em Haia. Na segunda-fei-
ra 23, a Câmara de Populações Indígenas
e Comunidades Tradicionais do Minis-
tério Público Federal associou, em nota,
a crise sanitária e social da etnia à omis-
são do Estado. As ações adotadas, diz o
documento, não foram suficientes para
proteger as terras indígenas e houve um
crescimento alarmante do número de ga-
rimpeiros na TI Yanomâmi. Para o juris-
ta Lenio Luiz Streck, há elementos con-
cretos e objetivos que implicam o gover-
no Bolsonaro, ministros e diretores da
Funai no caso em questão. “Houve mais
de duas dezenas de comunicações ao go-
verno sobre o assunto. O governo sabia
do garimpo ilegal, da invasão de terras,
da contaminação dos peixes e da água,
da questão de saúde pública agravada
na pandemia: uma tempestade perfeita.
É um trabalho complexo fazer essa inves-
tigação e chegar aos culpados. Mas basta
examinar os fatos e ver o enquadramen-
to e, inclusive, quem incentivou garim-
peiros a invadirem terras dos indígenas.”
Streck cita a Lei 2.889, com as devidas
alterações, que, no seu artigo 1º, trata de
quem ataca, com a intenção de destruir, no
todo ou em parte, grupo nacional, étnico,
racial ou religioso. Segundo o jurista, as
penas são semelhantes àquelas de homi-
cídio qualificado e outras de acordo com a
dimensão das lesões. É possível ainda re-
correr ao artigo 3º da mesma lei, referente
a incitar, direta e publicamente, alguém a
cometer qualquer dos crimes de que tra-
ta o artigo 1º. As penas chegam à metade
daquelas do crime incitado. Aliás, no mo-
mento em que o governo, por meio da Ae-
ronáutica, enviava ajuda humanitária aos
Yanomâmis, surgiu nas redes sociais uma
nova onda de ódio e ataques por parte de
bolsonaristas contra os indígenas e os mi-
litares que cumpriam suas funções. Além
das corriqueiras fake news. Uma delas di-
zia que as vítimas eram venezuelanas e es-
tavam à beira da morte por obra do gover-
no “comunista” de Nicolás Maduro.
litares que cumpriam suas funções. Além
das corriqueiras fake news. Uma delas di-
zia que as vítimas eram venezuelanas e es-
tavam à beira da morte por obra do gover-
no “comunista” de Nicolás Maduro.
OEstatuto de Roma, do Tribunal
Penal Internacional, faz refe-
rência a crimes da mesma na-
tureza. Segundo o documen-
to, considera-se genocídio os
atos praticados com intenção
de destruir, no todo ou em parte, um gru-
po nacional, étnico, racial ou religioso. O
estatuto identifica crime contra a huma-
nidade quando cometido no quadro de um
ataque, generalizado ou sistemático, con-
tra qualquer população civil, havendo co-
nhecimento desse ataque, incluindo o ex-
termínio. “Há décadas denunciamos a si-
tuação das invasões das terras indígenas e
dos riscos que isso representa para os nos-
sos povos, em especial os indígenas de iso-
lamento voluntário e de recente contato,
caso dos Yanomâmis. Essas denúncias
que hoje o mundo toma conhecimento já
foram levadas a diversas instâncias, in-
clusive ao Tribunal Penal Internacional,
ao STF, ao Ministério da Justiça e à pró-
pria Funai. Mas o Estado brasileiro sem-
pre fechou os olhos para esta situação
e no governo Bolsonaro isso ficou ain-
da mais latente, visível e gritante”, acu-
sa Dinamam Tuxá, coordenador-execu-
tivo da Articulação dos Povos Indígenas.
Na terça-feira 24, o recém-criado Mi-
nistério dos Povos Indígenas determi-
nou à Funai a demissão de 43 funcioná-
rios, todos militares de carreira, nomea-
dos por Sérgio Xavier. “Quando a Apib nos
convocou para aldear a política brasilei-
ra, esse chamado também incluía ocupar
órgãos como a Funai e a Secretaria Espe-
cial de Saúde Indígena (Sesai), tão estraté-
gicos ao movimento indígena. Esses fun-
cionários foram tardiamente exonerados,
uma vez que todos tinham uma orienta-
ção contrária à missão da Funai, que é ga-
rantir e proteger os nossos direitos. Agora
as indicações e nomeações serão alinha-
das aos objetivos das organizações indíge-
nas e teremos a confiança de ter pessoas
que trabalham, verdadeiramente, pela
proteção e promoção dos direitos indíge-
nas”, afirma a ministra Sônia Guajajara.
No governo Lula, a Funai mudou de
nome, para Fundação Nacional dos Povos
Indígenas, e será transferida para a no-
va pasta comandada por Guajajara. No-
meada presidente do órgão, Joênia Wapi-
chana terá como principal desafio admi-
nistrar um orçamento exíguo de 600 mi-
lhões de reais. Dentre as primeiras me-
didas a serem adotadas está a homologa-
ção das 13 terras indígenas com processos
de demarcação prontos. Nos próximos 45
dias, a Funai deve apresentar um plano
de ação específico para os Yanomâmis.
Entre as medidas emergenciais, além
da força-tarefa da área de saúde, cons-
ta o envio de mais de 5 mil cestas bási-
cas à população. A ONG Ação da Cidada-
nia lançou a campanha SOS Yanomâmi,
com o objetivo de arrecadar donativos, e
enviou mais de 10 toneladas de alimen-
tos a Roraima. Outras iniciativas se es-
palham pelo Brasil. A solidariedade é
urgente. A punição, incontornável. •
CARTA CAPITAL
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