ANDRE BARROCAL
Em 27 de dezembro, Ibaneis Rocha, en- tão governador do Distrito Federal, e Júlio Danilo, seu se- cretário de Seguran- ça Pública na época, reuniram-se com Flavio Dino e Andrei Rodrigues, os futuros ministro da Justi- ça e chefe da Polícia Federal do governo Lula, para acertar detalhes da seguran- ça na posse do petista. Havia apreensão em Brasília em razão de ameaças à vida do sucessor de Jair Bolsonaro. Foi pou- co antes de entrar no Rolls-Royce presi- dencial em 1° de janeiro que Lula decidi- ria desfilar em carro aberto. Ibaneis dis- se naquela reunião que mandaria a polí- cia desmontar até o fim de dezembro o acampamento bolsonarista na porta do quartel-general do Exército. Contou que um ministro do Supremo Tribunal Fe- deral o havia orientado. Teria sido Ale- xandre de Moraes? Na decisão que afas- tou o governador do cargo por “omis- são” dolosa” na insurreição de 8 de ja- neiro, Moraes escreveu que o acampa- mento “estava infestado de terroristas”.
A PM foi ao QG verde-oliva em Brasília na manhã de 29 de dezembro e não pôde cumprir a ordem de desmonte. O Exérci- to não permitiu. O secretário da Casa Civil do Distrito Federal, Gustavo Rocha, insis- tiu para que a desmontagem fosse retoma- da ao longo do dia, e nada feito. Quem te- ria se colocado contra? O chefe do QG, ge- neral Gustavo Henrique de Menezes Du- tra? Ou o próprio comandante do Exérci- to, general Marco Antonio Freire Gomes? “Ordem do comando do Exército”, decla- rou Ibaneis ao depor à PF em 13 de janeiro. ɠɠɠɠɠɠUm dia após a frustrada tentativa de acabar com o acampamento, Gomes pas- sou o cargo ao general Júlio Cesar de Ar- ruda. O governo Bolsonaro não havia ter- minado, mas Arruda estava definido co- mo o próximo comandante, por ser o ge- neral há mais tempo com a patente, entre aqueles 16 componentes do Alto-Comando do Exército. O critério da antiguidade para definir o chefe da tropa é um costu- me, e Lula aceitou-o. Havia seguido es- se mesmo padrão nos mandatos anterio- res e tinha combinado com seu atual mi- nistro da Defesa, José Múcio, de repetir a dose. Arruda, portanto, não deve o posto ao presidente, mas aos colegas.
No dia da insurreição, à noite, Múcio, Dino e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, se dirigiram ao QG do Exército para solici- tar a desativação do acampamento. Dali saíram milhares de participantes do que- bra-quebra. Dali saíram os “manifestan- tes” que, em 12 de dezembro, depredaram bens públicos e que tentaram invadir a se- de da PF. Dali saíram o detonador e a espo- leta para construir uma bomba achada em 24 de dezembro no aeroporto. Os dois in- sumos tinham sido fornecidos por um ex- -taxista do Mato Grosso, Allan Diego dos Santos Rodrigues, a um portador de dina- mite, o paraense George Washington de Oliveira Souza, gerente de posto. Ambos estão presos e viraram réus em 10 de ja- neiro por ordem do juiz Osvaldo Tovani, da 8ª Vara Criminal de Brasília, acusados de terrorismo e explosão. Um terceiro en- volvido, o blogueiro cearense Wellington Macedo de Souza, está foragido. Quando a trinca de ministros chegou à noite ao acampamento, havia dois tan- ques no local. Lula suspeita que os blin- dados “estavam lá mais para proteger o acampamento do que Brasília”. Naquela noite, o petista recebeu um telefonema de um general que falara com os minis- tros: “Presidente, é muito perigoso en- trar de noite no acampamento, tem mui- ta gente, pode acontecer uma desgraça”. O general era Arruda, provavelmente. O desmonte do acampamento ocorreu na manhã seguinte, juntamente com a pri- são dos acampados, cerca de 1,2 mil. Hou- ve quem tenha escapado com a ajuda de um “major” (Da PM? Do Exército?), caso de Walter Parreira, na mira da PF por ter arrumado ônibus para levar bolsonaris- tas a Brasília. A fuga foi descrita por Par- reira em vídeo na web: “Fomos orienta- dos por um major, não vou falar o nome dele, mas ele sabe que nos ajudou, a se- guir por um caminho alternativo que nos libertou e, consequentemente, consegui trazer esse pessoal para Santos”.
AS DIGITAIS DE INTEGRANTES DAS FORÇAS ARMADAS NOS ATOS TERRORISTAS ESTÃO POR TODOS OS LADOS
Essa cadeia de acontecimen- tos mostra um elefante na sala do País. São inúmeros os indícios de que integran- tes das Forças Armadas foram fundamentais para o que Lula e Dino têm chamado de tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. No governo, no Congresso e no Supremo, parece haver consenso sobre as digitais fardadas. Mas como reagir? Os militares jogam com o medo desde o governo Bolsonaro, permi- tem que paire no ar o fantasma sobre o uso de armas. Daí ter sido preciso uma suplente de deputada eleita pelo PSOL em 2022, a paulista Luciene Cavalcante, de 43 anos e professora da rede pública, para tentar botar o Exército no banco dos réus, com uma denúncia criminal enca- minhada ao Ministério Público Federal na segunda-feira 16.
Segundo a psolista, tudo aponta para a “prevaricação” do general Arruda diante das circunstâncias que levaram à intento- na bolsonarista. Prevaricar é o crime de um agente público que, por interesse ou sentimento pessoal, deixa de agir, ou de- mora a fazê-lo, numa situação que exige ação. A pena é de até um ano de prisão. O delito de Arruda teria sido a inação ante o acampamento no QG do Exército. “Os depoimentos feitos à Polícia Federal de- monstram que o acampamento do Distri- to Federal foi estratégico para o ato gol- pista, e nesse sentido é urgente investigar os relatos que dão conta da participa- ção, seja por ação ou por omissão, do Alto-Comando do Exército”, diz a denúncia, enviada ao grupo especial criado na Pro- curadoria Geral da República para cuidar do caso. À frente do grupo está o subpro- curador-geral Carlos Frederico Santos.
Acampamentos na porta de quartéis espalharam-se pelo País desde o desfe- cho do segundo turno em 30 de outubro. Sumiram em 9 de janeiro, por ordem ju- dicial, após o levante da véspera. “Tenho a responsabilidade, enquanto coman- dante, de trabalhar para que quem vai à frente da 10ª Região Militar seja prote- gido... Toda manifestação ordeira e pa- cífica é justa, não interessa o que ela pe- de”, disse em 19 de novembro, em vídeo na web, o chefe daquela unidade militar, em Fortaleza, general André Luiz Ribei- ro Campos Allão. Os acampados queriam uma intervenção fardada que revertesse o resultado das urnas. “E nenhum gene- ral se moveu para dizer ‘não pode aconte- cer isso, é proibido pedir isso, nós não va- mos fazer isso’. Dá a impressão que tinha gente que gostava quando o povo estava clamando o golpe”, comentou Lula com governadores em 9 de janeiro. Os acam- pamentos, afirma Dino em entrevista à página 14, foram o maior erro político da história das Forças Armadas brasileiras. “A fronteira entre erro político e omis- sões dolosas realmente será delimitada pela investigação.”
Os acampamentos eram a ponta visível de um gran- de complô alimentado por militares. É o que se conclui da reconstitui- ção de certos fatos de novembro. E, se não houve golpe, foi porque, reconheça- -se, havia alguns fardados legalistas (por “convicção” ou “por medo” da pecha de golpista e das repercussões internacio- nais, mas legalistas). Em 11 de novembro, os chefes das For- ças Armadas na ocasião (Gomes, do Exér- cito, almirante Almir Garnier, da Mari- CA PA nha, e brigadeiro Carlos Almeida Bap- tista Junior, da Aeronáutica) divulgaram uma nota sobre os acampamentos. Defen- diam “manifestações populares” e ressal- tavam não ser crime a “crítica aos pode- res”. Só repudiavam excessos. O texto ti- nha um recado ao Judiciário, ao dizer que cabia ao Congresso “corrigir possíveis ar- bitrariedades ou descaminhos autocráti- cos”. O bolsonarismo acha que a toga (leia- -se Supremo e Tribunal Superior Eleito- ral) “roubou” para Lula. Dois dias antes, o ministro da Defesa, general Paulo Sér- gio Nogueira de Oliveira, comandante do Exército até março de 2022, havia finali- zado um relatório sobre as urnas eletrôni- cas e a eleição. Documento ardiloso: não apontava fraude nem a descartava.
O relatório alimentou a insurgência fardada. No WhatsApp, corria um texto preparado por oficiais da reserva a “acu- sar” cinco dos generais do Alto-Comando o Exército de não aceitar a intervenção. Significa que os outros 11 integrantes do colegiado topavam. Os dissidentes foram tachados de “melancias”, verdes por fora e vermelhos por dentro. A agitação levou o general Gomes, então chefe do Exérci- to, a distribuir um “esclarecimento inter- no” à tropa em 17 de novembro. “Nos últi- mos dias, têm sido observadas postagens em aplicativos de mensagens com alusões mentirosas e mal-intencionadas a res- peito de integrantes do Alto-Comando do Exército”. Mais: “Tais publicações têm se caracterizado pela maliciosa e criminosa tentativa de atingir a honra pessoal de mi- litares”. Tratava-se não da condenação ao golpismo, e sim às ofensas a generais.
Um dia após o “esclarecimento”, o gene- ral da reserva Walter Braga Netto, vice na chapa derrotada de Bolsonaro e anteces- sor de Oliveira na Defesa, dirigiu palavras enigmáticas a bolsonaristas na porta do Palácio do Alvorada. “Vocês não percam a fé, tá bom? É só o que eu posso falar para vocês agora.” Por aqueles dias, um minis- tro do Tribunal de Contas da União, Au- gusto Nardes, fã do capitão, tinha enviado um áudio de WhatsApp a ruralistas. “Es- tá acontecendo um movimento muito for- te nas casernas”, dizia, “é questão de ho- ras, dias, no máximo, uma semana, duas, talvez menos do que isso” para que ocorra um “desenlace bastante forte na nação”.
Em 28 de novembro, surgiu uma carta apócrifa destinada ao comando das For- ças Armadas, assinada por 221 milita- res da reserva. Citava o relatório da De- fesa que não descartava fraude nas urnas e cobrava a “utilização dos meios jurídi- cos necessários” para “elucidar de forma completa” as dúvidas sobre a eleição. Do contrário, ocorreria uma “convulsão so- cial”. Em 10 de janeiro, a Polícia Federal vasculhou a casa de Anderson Torres, mi- nistro da Justiça de Bolsonaro e secretá- rio de Segurança Pública do Distrito Fe- deral em 8 de janeiro, e encontrou a ma- terialização dos “meios jurídicos neces- sários”. Era a minuta de um decreto pre- sidencial que determinava a intervenção no TSE para rever o resultado da eleição. Dos 17 interventores, oito seriam indica- dos pelo Ministério da Defesa.
Na antevéspera da eleição, 28 de outu- bro, um ex-ministro de Bolsonaro, o ge- neral Maynard Santa Rosa, dizia àGazeta do Povo que “se ele (Lula) ganhar, é pre- sumível uma perda de controle da situ- ação e, havendo uma grave perturbação da ordem, aí teria que haver a participa- ção de tropas”. O levante de 8 de janeiro criou condições para a “participação das tropas”. Lula recebeu uma proposta de botar os militares nas ruas para garan- tir a lei e a ordem e recusou. “Se eu tives- se feito GLO, eu teria assumido a respon- sabilidade de abandonar a minha respon- sabilidade. Aí sim estaria acontecendo o golpe que as pessoas queriam”, comentou em café com jornalistas em 12 de janeiro.
O presidente foi duro com os chefes das Forças Armadas em reunião um dia após a insurreição. Disse que por menos do que tinha acontecido na véspera, brasilei- ros haviam sido torturados e mortos nos anos 1970, na ditadura. Que não cabia a ge- nerais se meter com urnas. Que Bolsonaro havia saído do Exército pela porta dos fun- dos, nos anos 1980, em razão de planejar ataques a bomba em busca de salário me- lhor. Por ordem do petista, o Planalto tem sido desmilitarizado, há demissões aos montes. Lula manteve, porém, Múcio na Defesa e o general Arruda no Exército. Não sabe até aonde pode ir contra a caserna.
Até agora, o que se vê é a possibilidade de punição de militares individualmen- te, por causa dos distúrbios de 8 de ja- neiro. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni pode ser jul- gado na Justiça Militar. Após uma apu- ração preliminar, o caso foi à Procurado- ria Militar. A acusação não é de partici- pação em golpe, mas de ter xingado gene- rais em um vídeo. Outro punido foi o ca- pitão da reserva da Marinha Vilmar Jo- sé Fortuna, que posou para foto na fren- te do Congresso no dia da insurreição. Perdeu o cargo de confiança no gover- no. O chefe do Batalhão da Guarda Pre- sidencial, coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora, está na mira de superiores. No dia da invasão ao Planalto, tentou conter PMs que iriam prender golpistas.
Punição individual é pouco. As For- ças Armadas merecem no mínimo uma condenação política como instituição. •
CARTA CAPITAL
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