Jorge Chaloub
[resumo] Bolsonaro encarnou ao longo de sua carreira política uma ideia clichê de masculinidade, orgulhosamente machista e homofóbica, que, na Presidência, alimentou crença coletiva em seu caráter de "homem de bem" de qualidade quase sobre-humana, o que não permite aceitar a derrota nas urnas. A reclusão e o silêncio do presidente nestes dois últimos meses remetem à imagem clássica de decadência de figuras de inspiração autocrática, brilhantemente retratada por García Márquez, mas agora em contexto diferente.
Tiozão, capitão, pai de família temente a Deus, "homem de bem" disposto a se defender com as próprias mãos —estes são alguns dos muitos personagens encarnados por Jair Bolsonaro. Todos emulam uma ideia supostamente hegemônica de masculinidade, que transita, muitas vezes no mesmo discurso, entre o ideal e o real.
O já quase ex-presidente pretende representar tanto o mito, a masculinidade que todos desejariam, quanto o homem comum, assolado pelas mazelas de um mundo cada vez menos generoso com seu tipo.
Mesmo que gerem repulsa a muitos e sejam retratadas em pesquisas de opinião como causa de mais rejeição que simpatia, as performances públicas de Bolsonaro inspiram milhões e são uma das razões de sua popularidade.
Líderes de massas, como bem formulou Max Weber, frequentemente constroem sua legitimidade a partir do carisma, ou seja, da crença coletiva em traços excepcionais de quem está à frente de um grupo ou mesmo do Estado.
Distintamente do que certos usos excessivos do conceito de populismo sugerem, não se trata de algo com necessário teor antidemocrático ou de vício de origem das terras da América Latina, mas de marca corriqueira em democracias de massas de todas as latitudes. Para cada Perón ou Vargas, podemos pensar em um Charles de Gaulle ou Roosevelt.
Não é nenhuma novidade, neste sentido, a constatação de que o carisma é quase sempre identificado a certa ideia hegemônica de masculinidade. Bolsonaro não é exceção, mas regra.
Da orgulhosa exibição pública de armas feita por Carlos Lacerda à emulação do ideário de homem gaúcho de Vargas, da performance de herói militar do brigadeiro Eduardo Gomes à representação de líder revolucionário de Luís Carlos Prestes, da figura de playboy galã de Collor à masculinidade popular de Lula, a imagem pública dos mais diversos e populares líderes brasileiros sempre mobilizou determinada dimensão de gênero.
A novidade trazida por Bolsonaro está no uso ostensivo dessas imagens. Em lives, discursos e conversas no cercadinho do Palácio do Planalto, um traço preponderante de sua imagem pública é a colagem de clichês de masculinidade. Mais do que o uso público de uma ideia de homem, temos a explícita expressão de uma supremacia masculina, orgulhosamente machista e homofóbica.
Parte essencial da construção dessa imagem decorre do atual contexto, nacional e global, de crescente questionamento de longevos padrões de desigualdade de gênero, o que, por um lado, alcança conquistas evidentes, e, por outro, produz um volumoso caldo de ressentimento, largamente utilizado pela ultradireita.
Assim, a crítica ao lugar tradicionalmente masculino do poder incentiva Bolsonaro a, por estratégia e hábito, retrucá-la de forma particularmente evidente.
A orgulhosa exibição dessa imagem, contudo, não resistiu à derrota eleitoral. Desde a divulgação do resultado, em 30 de outubro, vemos um Bolsonaro entre a depressão e catatonia, incapaz de falar em eventos públicos e de manifestar suas usuais articulações antidemocráticas.
Se inicialmente seu silêncio parecia preponderantemente estratégico, efeito de uma explícita recusa às instituições democráticas, cada vez mais ganha força a ideia de que há, ao menos, tanto delírio quanto cálculo em suas ações.
Bolsonaro parece não se distinguir mais do personagem de sua caminhada rumo à Presidência. Se o carisma pressupõe a crença coletiva nas características excepcionais do líder, como dito algumas linhas acima, estamos diante de um caso no qual a própria liderança carismática se vê dotada de qualidades sobre-humanas.
Os rançosos gritos de "imbrochável", evidente paralelo entre atributos sexuais e políticos, parecem ter sido tomados como fiéis descrições da realidade, crença que não permite aceitar a derrota nas urnasParte da deriva recente de Bolsonaro pode ser explicada pelo clássico tema da solidão do poder, neste caso presente em uma de suas vertentes mais extremas: a do isolamento do autocrata.
Dos tiranos antigos aos ditadores da segunda metade do século 20, é comum a ideia de que, sobretudo em governos fortemente amparados na figura do chefe político, há um crescente insulamento do líder, que se mostra cada vez mais afastado da base de apoio e mesmo dos auxiliares próximos.
Também é corrente o diagnóstico de que o isolamento cresce no auge do poder e se agrava ao longo do processo de decadência inerente a todas as experiências políticas. Não faltam exemplos, em momentos históricos radicalmente diversos, de autocratas que no seu ocaso se veem crescentemente isolados.
Bolsonaro não instituiu um regime autoritário no Brasil, mas tentou com afinco explícito em palavras e gestos. Um fim político entre o trágico e o patético é coerente com a trajetória dos projetos mal-ajambrados de novos Napoleões, como ele.
No romance "O Outono do Patriarca", Gabriel García Márquez retratou com brilhantismo a trajetória de um personagem que, por características e identidade fugidia, representa vários dos ditadores latino-americanos do século 20.
O livro descreve a crueldade, a apropriação privada do Estado, a aversão às formas popular e erudita de cultura, os vínculos espúrios com as Forças Armadas e, dentre tantos outros traços conhecidos, a emulação dos ideais do "macho latino".
A centralidade do último atributo é demonstrada pelo título do romance: patriarca é, dentre as muitas denominações genéricas de um protagonista sem nome, a escolhida para retratá-lo no espaço de maior destaque do livro.
O escritor colombiano constrói um sutil paralelo entre a decadência do corpo físico do autocrata e a desagregação das bases políticas do seu regime. Em uma ditadura de duração indefinida, poder político e vida pessoal, corpo físico e institucional, padecem de uma longa putrefação rumo ao fim.
Há, porém, uma diferença essencial em relação ao exercício do poder político em 1975, ano da publicação do livro, e em 2022. García Márquez retrata um mundo em que a opacidade do poder é fundamental para seu funcionamento e sua eficácia. Parte da força do patriarca está em sua habilidade de ocultar-se, de construir um mundo em que, nas palavras do próprio romance, "sempre havia outra verdade atrás da verdade".
O modo de governar dos líderes da ultradireita contemporânea, todavia, antes se ampara na excessiva visibilidade do que no segredo, antes na luz, que de tão intensa chega a cegar, do que que nas sombras.
Se a política sempre teve um tanto de ficção, as redes sociais parecem não apenas inflacionar esses aspecto, mas colocá-lo como central em novas visões de mundo.
Distintamente do que certas perspectivas apontam, as ficções não ganham relevância porque sabemos menos, mas justamente porque circula muito mais informação, em volume intenso capaz de tornar quase toda narrativa verossímil.
As redes sociais e as fatídicas lives criaram o factoide de um governo transmitido em tempo real, sem nenhum aspecto desconhecido. Parte do prestígio popular de Bolsonaro está na sua capacidade de convencer a muitos de que ele sempre "fala a verdade" e "expõe o que pensa", o que o aproximaria do "verdadeiro povo brasileiro", conceito que por si só pressupõe certa ideia de sinceridade e o afasta da imagem comum dos políticos, usualmente tidos como mestres do engano e da mentira.
O ainda presidente pode, de acordo com esta conveniente narrativa, até ser inepto e ignorante, mas não mentiroso e corrupto. Sobretudo para seus seguidores mais fiéis, embora não apenas para eles, a demonstração de evidentes mentiras não é capaz de desconstruir tal imagem, que se ampara mais em certa ideia do que Bolsonaro é do que no que ele diz.
O aparato para a transmissão em tempo real do governo e os hábitos criados ao longo dos últimos quatro anos no Planalto se revelaram, contudo, problemas para o já quase ex-presidente neste momento de derrota.
No afã de se esconder, Bolsonaro revela a contragosto sua decadência, por meio de seus silêncios e breves aparições. Depois de uma intensa dieta de superexposição, a moderação ganha outros sentidos.
A exposição pública de sua decadência não significa, todavia, que Bolsonaro já esteja relegado a uma lembrança trágica do nosso passado recente. A rapidez do tempo da política dificilmente permite epitáfios definitivos para quem ainda anda, mesmo que aos tropeções, por este mundo.
Bolsonaro não apenas ainda cultiva fiéis defensores como permanece representante de primeira ordem de crenças de parte da população brasileira. Certamente terá consequências, todavia, a decadência pública de quem antes se vendia como "imorrível" e amparava seu carisma em uma masculinidade que não aceita a fraqueza.
Projetos futuros de volta ao centro do poder, seja por meio das urnas ou do golpe, parecem mais distantes. Soa, por outro lado, cada vez mais provável a futura emergência de um competidor pronto para disputar, provavelmente com pequenas adaptações de perfil, o espaço hoje ocupado por Bolsonaro.
O que sugere que, após o outono do capitão, talvez ainda tenhamos que nos preparar para o inverno.
FOLHA
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