Negros e pobres no Brasil vivem sem direitos civis e sem qualquer proteção legal, expostos à barbárie consentida
POR GUILHERME BOULOS
O assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe foi um dos episódios mais bárbaros deste Brasil que vive tempos de muita violência. Ele foi cobrar o pagamento de seu salário aos donos de um quiosque na Barra da Tijuca. Como resposta, teve as mãos e os pés amarrados e foi espancado por 15 minutos até a morte. Seu corpo foi jogado numa rua. E a vida seguiu. Somente uma semana depois o crime veio a público, o que levou a polícia do Rio de Janeiro a procurar os responsáveis, identificados, aliás, por uma câmera de vigilância.
Fico imaginando se a atrocidade fosse cometida contra um brasileiro branco e rico. Ou contra um imigrante norte-americano ou europeu. O Brasil teria entrado em polvorosa e a cena estamparia a capa de todos os jornais e tomaria horas nos telejornais. Haveria caminhadas no Leblon e na Avenida Paulista, com todos vestidos de branco, a pedir paz e leis mais duras contra o crime.
No Brasil, negros e pobres como Moïse
representam a figura do homo sacer. Na
antiga lei romana, o homo sacer era o ci-
dadão sem direitos civis, sem qualquer
proteção legal e que poderia ser morto a
qualquer momento, impunemente. O fi-
lósofo Giorgio Agamben retomou o con-
ceito romano para tratar de um regime
de anomia, onde o estado de exceção tor-
na-se regra. Ainda que fora das previsões
jurídicas, nossas sociedades mantêm o
homo sacer. Nos países do Norte, são os
imigrantes que podem morrer afogados
no Mediterrâneo, sem direito a socor-
ro, ou serem enjaulados no Texas. Aqui,
são negros e pobres, moradores de peri-
ferias, muitas vezes exterminados pelas
próprias forças de segurança do Estado.
Os casos são muitos e conhecidos. O so-
ciólogo Jessé Souza utilizou o conceito
de subcidadania para descrever os nos-
sos homines sacer, remetendo às raízes
escravocratas. Cidadãos têm direitos pe-
rante a lei, subcidadãos estão expostos à
barbárie consentida.
O caso de Moïse, além da enorme
crueldade e desumanização, traz tam-
bém outra particularidade, notadamen-
te carioca: o poder soberano das milícias.
Ao que tudo indica, o crime foi cometi-
do por milicianos, que comandam a Zo-
na Oeste do Rio. O livro A República das
Milícias, de Bruno Paes Manso, revela
com detalhes como esse poder armado
se instalou aos poucos nas comunidades
fluminenses, inicialmente como organi-
zadores de territórios abandonados pe-
lo Poder Público, imbricados com asso-
ciações de moradores, oferecendo “segu-
rança” em troca de uma taxa. A taxa paga
por comerciantes sempre foi maior que
aquela dos simples moradores, mas tra-
zia a garantia de atuação em defesa dos
estabelecimentos. Daí à barbárie contra
o congolês é apenas um passo.
As milícias tornaram-se, ao longo do
tempo, negócios extremamente lucrati-
vos. O monopólio da venda de botijões de
gás, de serviços de internet e tevê a cabo,
das linhas de transporte alternativo, che-
gando à especulação imobiliária e à cons-
trução civil informal nos bairros. Seu
grande trunfo sempre foi a proteção poli-
cial, pois a maioria dos milicianos é forma-
da por ex-policiais ou mesmo policiais da
ativa. Isso garante a impunidade, já que os
criminosos estão também do lado do bal-
cão que deveria investigar os crimes.
O salto maior foi, no entanto, sua en-
trada na política. A proteção deixou de
vir apenas de batalhões e delegacias e
passou a ser garantida em Câmaras Mu-
nicipais, na Assembleia Legislativa e no
Congresso Nacional. Desde 2018, tam-
bém está simbolicamente assegurada no
Palácio do Planalto. Paes Manso mostra
a relação umbilical entre as milícias, re-
presentadas por figuras como Queiroz e
Adriano Nóbrega, e a família Bolsonaro.
Se já se sentiam com salvo-conduto pela
proteção policial, imaginem como se sen-
tem com a proteção presidencial.
Por isso, o assassinato de Moïse é um
símbolo acabado do Brasil bolsonarista.
Discurso de ódio e estímulo à violência
vindos de um presidente com histórico
miliciano leva o famoso guarda da esqui-
na a expressar sua pulsão de morte a céu
aberto. Quem amarrou e torturou Moï-
se deve ser julgado e punido, mas é pre-
ciso dizer que quem autoriza diariamen-
te crimes dessa natureza – no Palácio ou
nos tribunais – e quem consente e repro-
duz a lógica do homo sacer brasileiro tam-
bém tem sangue nas mãos. Enquanto a
sociedade brasileira não tratar casos co-
mo este com a mesma régua que usa pa-
ra crimes contra homens brancos e ricos,
não teremos de fato uma democracia. •
CARTA CAPITAL
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