February 19, 2022

O xadrez de Putin

 



Sergio Lirio...

Pavlo Sadhoka acredita ou ao menos deseja do fundo do coração acreditar nas boas notícias da terça-feira 15. Sem olhar uma única vez para a tela de tevê que suga a atenção dos funcionários e frequentadores do café – àquela altura o Manchester City encaminhava a goleada de 5 a 0 no Sporting –, ele interrompe a observação de que ­Vladimir Putin é inconfiável, sorve a xícara lentamente e prossegue: “Foi um alívio. Acho que o fato de todos, a Europa, os Estados Unidos, a Otan, terem se unido contra a Rússia deu resultado”. Presidente da associação de migrantes ucranianos em Portugal, pequena comunidade de 50 mil compatriotas de um total de quase 2 milhões espalhados pelo resto do continente, Sadhoka atravessou o dia na expectativa de uma invasão iminente da sua terra natal. Pensava nas dezenas de pedidos de socorro de anônimos enviados diariamente à associação, mas também nos pais, que ainda vivem na Ucrânia. “Tracei um plano de fuga. Minha ideia era buscá-los na fronteira com a Polônia. A família da minha mulher, portuguesa, se ofereceu para abrigá-los.” E agora? “Vamos esperar mais um pouco.

A mudança de humor deve-se ao anún-

cio da retirada de parte das tropas russas

da fronteira com a Ucrânia, embora o

Kremlin não tenha especificado e o Oci-

dente não tenha sido capaz de estimar a

relevância do movimento. O recuo, rece-

bido com “otimismo cauteloso” pelo se-

cretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg,

manteve, no entanto, a esperança de uma

solução diplomática para o impasse. Nem

os ataques hackers a bancos ucranianos

na mesma terça tiveram o poder de aze-

dar o clima de boa vontade que imperava

nos salões da diplomacia internacional. O

anticlímax, neste caso, agradou à audiên-

cia. Isso não significa que o drama tenha

terminado. Nas últimas três semanas, as

forças armadas de Putin empreenderam

uma marcha impressionante pelas este-

pes e tundras. Soldados, tanques, blinda-

dos e aviões cruzaram milhares de quilô-

metros, alguns deslocados da extremida-

de leste do país, até as fronteiras ucrania-

nas. Segundo os especialistas, entre 100

mil e 130 mil militares do antigo “Exér-

cito Vermelho”, equivalente a 60% das

forças terrestres, estacionaram nas por-

tas do país vizinho, cuja relação de amor

e ódio com Moscou atravessa os séculos e

se intensificou a partir de 2014. Quantos

voltaram ou voltarão para casa nos próxi-

mos dias? Só Moscou pode dizer.


Não está claro se Putin pretende ou

pretendia de fato começar uma guerra

com a Ucrânia. E se o Ocidente terá ca-

pacidade de dissuadi-lo por meio de san-

ções econômicas ou envio de armamen-

tos a Kiev. O risco de um confronto de

grandes proporções às portas da Euro-

pa levou a mídia ocidental, talvez com

certo exagero, a descrever o impasse co-

mo o mais grave desde a crise dos mís-

seis de 1962, no auge da Guerra Fria. Os

serviços de inteligência dos Estados Uni-

dos fizeram circular a versão de que a in-

vasão da Ucrânia tinha até data marca-

da, quarta-feira 16, motivo da agonia e

do posterior “alívio” de Sadhoka e seus

compatriotas. Diante da “informação”, o

presidente norte-americano, Joe Biden,

ameaçou “reagir sem hesitação” caso

as tropas russas cruzassem a fronteira.

Amedrontado, na versão de alguns, ma-

quiavélico, segundo outros, Putin prefe-

riu então mover as peças de modo a man-

ter aberto o jogo diplomático sem produ-

zir uma mudança substancial no tabulei-

ro. Os russos negam de coturnos juntos o

intuito de iniciar uma guerra e justificam

a longa marcha das tropas ora como par-

te de exercícios conjuntos com a aliada

Bielorrússia, ora como um movimento de

prevenção contra possíveis agressões da

Ucrânia. De forma enigmática e com um

estilo panfletário que lembra os camara-

das redatores do lado de lá do Muro de

Berlim, Maria Zakharova, porta-voz do

Ministério das Relações Exteriores rus-

so, ironizou a “histeria” do Ocidente em

uma sucinta mensagem no Facebook:

“15 de fevereiro de 2002 ficará na histó-

ria como o dia do fracasso da guerra de

propaganda ocidental. Envergonhado e

destruído sem disparar um tiro”.


Zakharova não chega, porém, aos pés

dos sequazes de Jair Bolsonaro, como se

lerá na reportagem de André Barrocal à

página 18. Segundo a rapaziada, bastou

um gesto do ex-capitão, a distância, a

simples decisão de embarcar em voo da

FAB rumo a Moscou, para tocar os co-

rações e evitar o pior. Aplausos? Seriam

poucos. Os asseclas sugerem um Prêmio

Nobel da Paz. Infelizmente, diria Garrin-

cha, seria preciso antes combinar não só

com os russos. Incapaz de perceber e re-

conhecer a grandeza do “estadista” brasi-

leiro, o resto do mundo estava mais preo-

cupado em interpretar as reais intenções

do recuo de Putin, caso “recuo” seja o ter-

mo apropriado para explicar os aconte-

cimentos da semana.


O AVANÇO DA OTAN RUMO AO LESTE

EUROPEU É PAULATINO, MAS NÃO

UNÂNIME ENTRE OS ASSOCIADOS


Moscou intensificou as manobras mi-

litares na fronteira, em tese, para mar-

car seu incômodo com a provável ade-

são da Ucrânia à Organização do Trata-

do do Atlântico Norte, a aliança militar

ocidental criada ao fim da Segunda Guer-

ra Mundial. Apesar de controversa en-

tre os associados, a expansão da Otan pa-

ra o Leste europeu tem sido ininterrup-

ta desde a queda do Muro do Berlim. 


A incorporação da Polônia, Lituânia, Es-

tônia e Bulgária, entre outros, empur-

rou a aliança para os limites da Federa-

ção Russa. Diplomatas ocidentais costu-

mam, inclusive, esgrimir esse argumen-

to para pôr em dúvida as razões aventa-

das por Moscou: se outros países na fron-

teira integram a Otan, qual seria o pro-

blema da adesão da Ucrânia, que, ao con-

trário dos demais, não foi convidada, mas

se ofereceu para participar da aliança?


Os russos, provavelmente,

responderiam com ques-

tões históricas, geográfi-

cas, conjunturais e de se-

gurança. A Ucrânia, para

começar, se tornaria o país com a maior

extensão de fronteira com a Rússia a in-

tegrar a Otan. Para expressar o incô-

modo, Moscou relembra o episódio da

crise dos mísseis nos anos 60 do sécu-

lo passado. Três anos depois da revolu-

ção, a Cuba de Fidel Castro aceitou abri-

gar ogivas soviéticas a uma distância de

140 quilômetros da Flórida – em respos-

ta à instalação de armas nucleares dos

EUA na Turquia. Enquanto os navios da

URSS singravam os oceanos em direção

a Havana, Washington ameaçava invadir

a ilha caribenha e desencadear um con-

flito atômico. Durante 13 dias, a espécie

humana sentiu na pele o risco de desapa-

recer da face da Terra, sem tempo de per-

doar e ser perdoada, até que um acordo

entre as potências desanuviou o horizon-

te e, na falta de aparelhos celulares, de-

saguou na instalação de uma linha de co-

municação direta entre os gabinetes de

John Kennedy, em Washington, e Nikita

Kruchev, em Moscou.


Os tempos são outros, Putin sabe bem

e explora as circunstâncias na medida do

possível. Na avaliação do Kremlin, o Oci-

dente está enfraquecido. Biden pode até

falar grosso, mas os assuntos internos –

inflação em alta, popularidade em queda

e recusa de parte da população a se vaci-

nar – desaconselham qualquer investida

no front externo, principalmente em um

conflito que afeta de forma circunstan-

cial o país e diz pouco, ou nada, aos elei-

tores. A União Europeia tem um calca-

nhar de aquiles evidente: cerca de 40%

do gás consumido no continente é distri-

buído pela Rússia, dependência que tende

a aumentar se o conflito na Ucrânia não

atrasar a inauguração do gasoduto Nord

Stream 2, que ligará o país à Alemanha.

A Otan, embora tenha a liberdade de en-

viar armas, está impedida de intervir di-

retamente por uma questão legal: a Ucrâ-

nia deseja, mas ainda não integra a alian-

ça. As amarras dos negociadores ociden-

tais ficaram estampadas nas fotos do pre-

sidente francês, Emmanuel Macron, e do

chanceler alemão, Olaf Scholz, miniaturas

na interminável e imponente mesa, a uma

distância “segura” de Putin, conforme as

regras de isolamento social estabelecidas

pelo protocolo russo em tempos de pande-

mia. Se a mesa traduz a distância entre as

posições em jogo, os diplomatas têm um

monumental trabalho pela frente.


MOSCOU

DESESTABILIZA

A UCRÂNIA,

A ÚNICA A SOFRER

OS EFEITOS

ECONÔMICOS

DO IMPASSE

NA DIPLOMACIA


Esforços diplomáticos à parte, o apa-

rente tema central do conflito continua

insolúvel. Washington e Bruxelas enten-

dem que não cabe a Moscou interferir

em decisões soberanas de outra nação.

A Ucrânia mantém o desejo de aderir à

Otan, apesar do deslize do embaixador

em Londres, que admitiu a possibilidade

de desistência e em seguida voltou atrás.

“Sim, não desistimos. É uma garantia à

nossa segurança”, afirmou o presidente.

Volodymyr Zelenski, depois de uma reu-

nião com Scholz em Kiev. Zelenski, come-

diante eleito na onda de aversão à políti-

ca tradicional, só não diz por quanto tem-

po o país resiste ao impasse nas negocia-

ções. Na situação atual, a Ucrânia é o úni-

co lado prejudicado. A ameaça de guerra

em seu território afeta a economia. O go-

verno lançou um pacote para estimular

as companhias aéreas a manter as linhas,

enquanto os EUA e as nações europeias

recomendam às respectivas populações

que evitem viajar ao país.


Putin, ao contrário, tem todo

o tempo do mundo se quiser

evitar a guerra e encontrar

ou aceitar uma saída hon-

rosa coletiva. Sem a expres-

sa recusa da Otan em admitir a Ucrânia,

o que mais poderia ser levado àquela in-

terminável mesa do Kremlin? Haveria

a possibilidade de revisão de pontos do

Acordo de Minsk, firmado em setembro

de 2014 sob o pretexto de colocar um fim

aos confrontos na região de Donbas, a les-

te da Ucrânia? O tratado nasceu torto e

natimorto. O objetivo era encerrar um

ano turbulento, iniciado pela anexação da

Crimeia pela Rússia, em fevereiro, segui-

da de uma resposta popular, o desfecho da

Revolução Maidan, que destituiu Viktor

Yakunovich, presidente pró-Moscou, e le-

vou ao poder uma geração ucraniana in-

clinada a abraçar a União Europeia. Para

o Kremlin, a revolução foi arquitetada pe-

los norte-americanos. Para os ucrania-

nos, os russos, insatisfeitos com a perda

de influência, estimularam o separatismo

em Donbas, onde brotaram duas áreas au-

tônomas, as autodenominadas República

Popular de Donetsk e República Popular

de Lugansk. O acordo de Minsk impede,

entre outras determinações, o reconheci-

mento pela Rússia da independência das

duas repúblicas. O Kremlin reafirma o

compromisso de obedecer às regras, mas,

na terça-feira 15, a Duma, o Parlamento

russo, aprovou uma moção a favor da au-

tonomia das repúblicas.


NA NOVA GUERRA

FRIA, O OCIDENTE

E OS EUA ESTÃO

EM CLARA

DESVANTAGEM


Ao longo de oito anos, os separatis-

tas pró-Rússia e os nacionalistas ucra-

nianos ignoraram os seguidos armis-

tícios e fizeram de Donbas um peque-

no experimento de guerra. Confrontos

paramilitares provocaram ao menos 14

mil mortes, além de migrações força-

das e destruição. Justamente nos limi-

tes de Donbas e da Ucrânia “europeia” a

tensão floresce em toda a sua magnitude.

Do lado ucraniano, crianças e velhos,

principalmente senhoras, apelidadas

de “Esquadrão das Babushkas”, rece-

bem armas e são treinados por naciona-

listas do Azov, movimento ultradireitis-

ta que abriga neonazistas e supremacis-

tas brancos. “Não concordo com a ideo-

logia deles, me interessa defender a pá-

tria”, afirmou ao canal de tevê Al Jazeera

Valentyna Konstantinovska, de 79 anos,

antes de disparar o rifle. “Amo minha ci-

dade, não vou embora. Putin não pode

nos assustar. Sim, é aterrorizante, mas

vamos defender a nossa Ucrânia até o

fim.” A mídia e a diplomacia russas ex-

ploram a influência do Azov nas organi-

zações paramilitares e a tentativa do mo-

vimento de conquistar poder político no

país. “Moscou classifica qualquer ucra-

niano crítico como fascista ou nazi”, diz

Sadhoka. “É um subterfúgio. A vida me-

lhorou na Ucrânia após a revolução, hou-

ve crescimento econômico, mais oportu-

nidades de trabalho, de lazer. Putin te-

me que o progresso ucraniano influen-

cie outros países sob seu domínio a se re-

belarem.” Em resposta às provocações

russas, os ucranianos chamam Putin de

terrorista. “Ele provoca terror”, justifi-

ca Sadhoka. “O Ocidente precisa enten-

der que, enquanto ele estiver no poder,

estaremos ameaçados.”


Em certa medida, as tropas russas es-

Jinping lidera uma mudança profunda

tacionadas na fronteira com a Ucrânia

parecem delinear uma nova e imaginá-

ria Cortina de Ferro. Longe de repetir a

batalha capitalismo versus comunismo

do pós-Guerra, a divisão representa uma

disputa muito mais profunda e, sobretu-

do, desvantajosa ao Ocidente e ao Impé-

rio norte-americano, como ressalta Luiz

Gonzaga Belluzzo à página 17. Enquan-

to os analistas passavam o dia a contar

o número de soldados e tanques russos

a ziguezaguear pelo território, Putin e

Xi Jinping divulgavam uma declaração

conjunta que, na análise do ex-chance-

ler Celso Amorim, em artigo publicado

na edição passada, “expressa, com uma

clareza nunca antes alcançada, o fim da

era da hegemonia quase absoluta dos Es-

tados Unidos sobre os destinos do mun-

do”. Uma nova “Guerra Fria” se desenha

e Putin tenta se firmar como um general

da linha de frente. O desfecho da crise na

Ucrânia vai definir a velocidade e a traje-

tória do pêndulo. •


ICARTA CAPITAL



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