A mudança de humor deve-se ao anún-
cio da retirada de parte das tropas russas
da fronteira com a Ucrânia, embora o
Kremlin não tenha especificado e o Oci-
dente não tenha sido capaz de estimar a
relevância do movimento. O recuo, rece-
bido com “otimismo cauteloso” pelo se-
cretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg,
manteve, no entanto, a esperança de uma
solução diplomática para o impasse. Nem
os ataques hackers a bancos ucranianos
na mesma terça tiveram o poder de aze-
dar o clima de boa vontade que imperava
nos salões da diplomacia internacional. O
anticlímax, neste caso, agradou à audiên-
cia. Isso não significa que o drama tenha
terminado. Nas últimas três semanas, as
forças armadas de Putin empreenderam
uma marcha impressionante pelas este-
pes e tundras. Soldados, tanques, blinda-
dos e aviões cruzaram milhares de quilô-
metros, alguns deslocados da extremida-
de leste do país, até as fronteiras ucrania-
nas. Segundo os especialistas, entre 100
mil e 130 mil militares do antigo “Exér-
cito Vermelho”, equivalente a 60% das
forças terrestres, estacionaram nas por-
tas do país vizinho, cuja relação de amor
e ódio com Moscou atravessa os séculos e
se intensificou a partir de 2014. Quantos
voltaram ou voltarão para casa nos próxi-
mos dias? Só Moscou pode dizer.
Não está claro se Putin pretende ou
pretendia de fato começar uma guerra
com a Ucrânia. E se o Ocidente terá ca-
pacidade de dissuadi-lo por meio de san-
ções econômicas ou envio de armamen-
tos a Kiev. O risco de um confronto de
grandes proporções às portas da Euro-
pa levou a mídia ocidental, talvez com
certo exagero, a descrever o impasse co-
mo o mais grave desde a crise dos mís-
seis de 1962, no auge da Guerra Fria. Os
serviços de inteligência dos Estados Uni-
dos fizeram circular a versão de que a in-
vasão da Ucrânia tinha até data marca-
da, quarta-feira 16, motivo da agonia e
do posterior “alívio” de Sadhoka e seus
compatriotas. Diante da “informação”, o
presidente norte-americano, Joe Biden,
ameaçou “reagir sem hesitação” caso
as tropas russas cruzassem a fronteira.
Amedrontado, na versão de alguns, ma-
quiavélico, segundo outros, Putin prefe-
riu então mover as peças de modo a man-
ter aberto o jogo diplomático sem produ-
zir uma mudança substancial no tabulei-
ro. Os russos negam de coturnos juntos o
intuito de iniciar uma guerra e justificam
a longa marcha das tropas ora como par-
te de exercícios conjuntos com a aliada
Bielorrússia, ora como um movimento de
prevenção contra possíveis agressões da
Ucrânia. De forma enigmática e com um
estilo panfletário que lembra os camara-
das redatores do lado de lá do Muro de
Berlim, Maria Zakharova, porta-voz do
Ministério das Relações Exteriores rus-
so, ironizou a “histeria” do Ocidente em
uma sucinta mensagem no Facebook:
“15 de fevereiro de 2002 ficará na histó-
ria como o dia do fracasso da guerra de
propaganda ocidental. Envergonhado e
destruído sem disparar um tiro”.
Zakharova não chega, porém, aos pés
dos sequazes de Jair Bolsonaro, como se
lerá na reportagem de André Barrocal à
página 18. Segundo a rapaziada, bastou
um gesto do ex-capitão, a distância, a
simples decisão de embarcar em voo da
FAB rumo a Moscou, para tocar os co-
rações e evitar o pior. Aplausos? Seriam
poucos. Os asseclas sugerem um Prêmio
Nobel da Paz. Infelizmente, diria Garrin-
cha, seria preciso antes combinar não só
com os russos. Incapaz de perceber e re-
conhecer a grandeza do “estadista” brasi-
leiro, o resto do mundo estava mais preo-
cupado em interpretar as reais intenções
do recuo de Putin, caso “recuo” seja o ter-
mo apropriado para explicar os aconte-
cimentos da semana.
O AVANÇO DA OTAN RUMO AO LESTE
EUROPEU É PAULATINO, MAS NÃO
UNÂNIME ENTRE OS ASSOCIADOS
Moscou intensificou as manobras mi-
litares na fronteira, em tese, para mar-
car seu incômodo com a provável ade-
são da Ucrânia à Organização do Trata-
do do Atlântico Norte, a aliança militar
ocidental criada ao fim da Segunda Guer-
ra Mundial. Apesar de controversa en-
tre os associados, a expansão da Otan pa-
ra o Leste europeu tem sido ininterrup-
ta desde a queda do Muro do Berlim.
A incorporação da Polônia, Lituânia, Es-
tônia e Bulgária, entre outros, empur-
rou a aliança para os limites da Federa-
ção Russa. Diplomatas ocidentais costu-
mam, inclusive, esgrimir esse argumen-
to para pôr em dúvida as razões aventa-
das por Moscou: se outros países na fron-
teira integram a Otan, qual seria o pro-
blema da adesão da Ucrânia, que, ao con-
trário dos demais, não foi convidada, mas
se ofereceu para participar da aliança?
Os russos, provavelmente,
responderiam com ques-
tões históricas, geográfi-
cas, conjunturais e de se-
gurança. A Ucrânia, para
começar, se tornaria o país com a maior
extensão de fronteira com a Rússia a in-
tegrar a Otan. Para expressar o incô-
modo, Moscou relembra o episódio da
crise dos mísseis nos anos 60 do sécu-
lo passado. Três anos depois da revolu-
ção, a Cuba de Fidel Castro aceitou abri-
gar ogivas soviéticas a uma distância de
140 quilômetros da Flórida – em respos-
ta à instalação de armas nucleares dos
EUA na Turquia. Enquanto os navios da
URSS singravam os oceanos em direção
a Havana, Washington ameaçava invadir
a ilha caribenha e desencadear um con-
flito atômico. Durante 13 dias, a espécie
humana sentiu na pele o risco de desapa-
recer da face da Terra, sem tempo de per-
doar e ser perdoada, até que um acordo
entre as potências desanuviou o horizon-
te e, na falta de aparelhos celulares, de-
saguou na instalação de uma linha de co-
municação direta entre os gabinetes de
John Kennedy, em Washington, e Nikita
Kruchev, em Moscou.
Os tempos são outros, Putin sabe bem
e explora as circunstâncias na medida do
possível. Na avaliação do Kremlin, o Oci-
dente está enfraquecido. Biden pode até
falar grosso, mas os assuntos internos –
inflação em alta, popularidade em queda
e recusa de parte da população a se vaci-
nar – desaconselham qualquer investida
no front externo, principalmente em um
conflito que afeta de forma circunstan-
cial o país e diz pouco, ou nada, aos elei-
tores. A União Europeia tem um calca-
nhar de aquiles evidente: cerca de 40%
do gás consumido no continente é distri-
buído pela Rússia, dependência que tende
a aumentar se o conflito na Ucrânia não
atrasar a inauguração do gasoduto Nord
Stream 2, que ligará o país à Alemanha.
A Otan, embora tenha a liberdade de en-
viar armas, está impedida de intervir di-
retamente por uma questão legal: a Ucrâ-
nia deseja, mas ainda não integra a alian-
ça. As amarras dos negociadores ociden-
tais ficaram estampadas nas fotos do pre-
sidente francês, Emmanuel Macron, e do
chanceler alemão, Olaf Scholz, miniaturas
na interminável e imponente mesa, a uma
distância “segura” de Putin, conforme as
regras de isolamento social estabelecidas
pelo protocolo russo em tempos de pande-
mia. Se a mesa traduz a distância entre as
posições em jogo, os diplomatas têm um
monumental trabalho pela frente.
MOSCOU
DESESTABILIZA
A UCRÂNIA,
A ÚNICA A SOFRER
OS EFEITOS
ECONÔMICOS
DO IMPASSE
NA DIPLOMACIA
Esforços diplomáticos à parte, o apa-
rente tema central do conflito continua
insolúvel. Washington e Bruxelas enten-
dem que não cabe a Moscou interferir
em decisões soberanas de outra nação.
A Ucrânia mantém o desejo de aderir à
Otan, apesar do deslize do embaixador
em Londres, que admitiu a possibilidade
de desistência e em seguida voltou atrás.
“Sim, não desistimos. É uma garantia à
nossa segurança”, afirmou o presidente.
Volodymyr Zelenski, depois de uma reu-
nião com Scholz em Kiev. Zelenski, come-
diante eleito na onda de aversão à políti-
ca tradicional, só não diz por quanto tem-
po o país resiste ao impasse nas negocia-
ções. Na situação atual, a Ucrânia é o úni-
co lado prejudicado. A ameaça de guerra
em seu território afeta a economia. O go-
verno lançou um pacote para estimular
as companhias aéreas a manter as linhas,
enquanto os EUA e as nações europeias
recomendam às respectivas populações
que evitem viajar ao país.
Putin, ao contrário, tem todo
o tempo do mundo se quiser
evitar a guerra e encontrar
ou aceitar uma saída hon-
rosa coletiva. Sem a expres-
sa recusa da Otan em admitir a Ucrânia,
o que mais poderia ser levado àquela in-
terminável mesa do Kremlin? Haveria
a possibilidade de revisão de pontos do
Acordo de Minsk, firmado em setembro
de 2014 sob o pretexto de colocar um fim
aos confrontos na região de Donbas, a les-
te da Ucrânia? O tratado nasceu torto e
natimorto. O objetivo era encerrar um
ano turbulento, iniciado pela anexação da
Crimeia pela Rússia, em fevereiro, segui-
da de uma resposta popular, o desfecho da
Revolução Maidan, que destituiu Viktor
Yakunovich, presidente pró-Moscou, e le-
vou ao poder uma geração ucraniana in-
clinada a abraçar a União Europeia. Para
o Kremlin, a revolução foi arquitetada pe-
los norte-americanos. Para os ucrania-
nos, os russos, insatisfeitos com a perda
de influência, estimularam o separatismo
em Donbas, onde brotaram duas áreas au-
tônomas, as autodenominadas República
Popular de Donetsk e República Popular
de Lugansk. O acordo de Minsk impede,
entre outras determinações, o reconheci-
mento pela Rússia da independência das
duas repúblicas. O Kremlin reafirma o
compromisso de obedecer às regras, mas,
na terça-feira 15, a Duma, o Parlamento
russo, aprovou uma moção a favor da au-
tonomia das repúblicas.
NA NOVA GUERRA
FRIA, O OCIDENTE
E OS EUA ESTÃO
EM CLARA
DESVANTAGEM
Ao longo de oito anos, os separatis-
tas pró-Rússia e os nacionalistas ucra-
nianos ignoraram os seguidos armis-
tícios e fizeram de Donbas um peque-
no experimento de guerra. Confrontos
paramilitares provocaram ao menos 14
mil mortes, além de migrações força-
das e destruição. Justamente nos limi-
tes de Donbas e da Ucrânia “europeia” a
tensão floresce em toda a sua magnitude.
Do lado ucraniano, crianças e velhos,
principalmente senhoras, apelidadas
de “Esquadrão das Babushkas”, rece-
bem armas e são treinados por naciona-
listas do Azov, movimento ultradireitis-
ta que abriga neonazistas e supremacis-
tas brancos. “Não concordo com a ideo-
logia deles, me interessa defender a pá-
tria”, afirmou ao canal de tevê Al Jazeera
Valentyna Konstantinovska, de 79 anos,
antes de disparar o rifle. “Amo minha ci-
dade, não vou embora. Putin não pode
nos assustar. Sim, é aterrorizante, mas
vamos defender a nossa Ucrânia até o
fim.” A mídia e a diplomacia russas ex-
ploram a influência do Azov nas organi-
zações paramilitares e a tentativa do mo-
vimento de conquistar poder político no
país. “Moscou classifica qualquer ucra-
niano crítico como fascista ou nazi”, diz
Sadhoka. “É um subterfúgio. A vida me-
lhorou na Ucrânia após a revolução, hou-
ve crescimento econômico, mais oportu-
nidades de trabalho, de lazer. Putin te-
me que o progresso ucraniano influen-
cie outros países sob seu domínio a se re-
belarem.” Em resposta às provocações
russas, os ucranianos chamam Putin de
terrorista. “Ele provoca terror”, justifi-
ca Sadhoka. “O Ocidente precisa enten-
der que, enquanto ele estiver no poder,
estaremos ameaçados.”
Em certa medida, as tropas russas es-
Jinping lidera uma mudança profunda
tacionadas na fronteira com a Ucrânia
parecem delinear uma nova e imaginá-
ria Cortina de Ferro. Longe de repetir a
batalha capitalismo versus comunismo
do pós-Guerra, a divisão representa uma
disputa muito mais profunda e, sobretu-
do, desvantajosa ao Ocidente e ao Impé-
rio norte-americano, como ressalta Luiz
Gonzaga Belluzzo à página 17. Enquan-
to os analistas passavam o dia a contar
o número de soldados e tanques russos
a ziguezaguear pelo território, Putin e
Xi Jinping divulgavam uma declaração
conjunta que, na análise do ex-chance-
ler Celso Amorim, em artigo publicado
na edição passada, “expressa, com uma
clareza nunca antes alcançada, o fim da
era da hegemonia quase absoluta dos Es-
tados Unidos sobre os destinos do mun-
do”. Uma nova “Guerra Fria” se desenha
e Putin tenta se firmar como um general
da linha de frente. O desfecho da crise na
Ucrânia vai definir a velocidade e a traje-
tória do pêndulo. •
ICARTA CAPITAL
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