February 12, 2022

Guedes força a barra para privatizar a Eletrobras, um negócio lesivo ao Brasil


 

Há inúmeros conflitos de interesse que envolvem empresas contratadas para auxiliar no processo de privatização

POR ANDRÉ BARROCAL 

No início dos anos 1990, Paulo Guedes era dono do Banco Pactual, hoje BTG, e colaborava nas sombras com o governo Fernando Collor, ao lado de Daniel Dantas, principal executivo do Banco Icatu na época. Guedes e Dantas defendiam que Collor privatizasse logo duas gigantes, Eletrobras e Telebras, e que os negócios fossem no escurinho, nada de leilões públicos. Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso realizou parte do sonho da dupla, ao leiloar a companhia telefônica por 22 bilhões de reais, 91 bilhões em valores atualizados pela inflação, maior desestatização da história brasileira. Com Jair Bolsonaro mal nas pesquisas eleitorais, Guedes se esforça para sua passagem pelo Ministério da Economia completar o serviço desejado nos tempos colloridos e entregar a ­Eletrobras a particulares, no que seria a segunda maior negociação de uma empresa pública do País, mais de 60 bilhões de reais.  

A cruzada do “Posto Ipiranga” inclui pressão sobre um ministro do Tribunal de Contas da União, Vital do Rêgo, a antecipação do balanço de 2021 da ­Eletrobras e a convocação de uma assembleia de acionistas da companhia para 22 de fevereiro, destinada a autorizar a privatização, apesar de o TCU, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo, ainda estar com a palavra. Essa sucessão de fatos não se explica só pela convicção ultraliberal do Chicago Boy. Quatro dos oito maiores ricaços do País têm interesse na coisa. Jorge Paulo Lemann (fortuna de 96 bilhões), Marcel Telles (64 bilhões) e Carlos Alberto Sicupira (49 bilhões) são do fundo 3G Capital, detentor de 10% das ações da Eletrobras. André Esteves (39 bilhões) é do BTG (ex-Pactual), banco que é um dos líderes de um sindicato montado sem licitação pela estatal de energia para operar a privatização. Montado, diga-se, pela diretora-financeira, Elvira Presta, ex-executiva da Ambev, cujos donos são os endinheirados do 3G.

Se Guedes tenta materializar sua visão

de Estado mínimo e se o “mercado” sali

va, o povão tem motivos para assombrar-

-se. O plano privatizador, desenhado pe-

lo time do ministro de Minas e Energia,

o almirante Bento Albuquerque, contém

dispositivos capazes de levar o patrimô-

nio público a ser vendido a preço de ba-

nana e de encarecer (mais) a conta de luz

a partir de 2023.


Técnicos do TCU e do gabinete

de Vital Rêgo identificam, con-

forme apurou CartaCapital,

omissão nos cálculos governa-

mentais usados para definir o

valor a ser pago como bônus de

outorga pelos futuros controladores da

Eletrobras, quando eles assinarem com

a Agência Nacional de Energia Elétrica,

a Aneel, contratos de exploração de usi-

nas por 30 anos. Os cálculos excluíram a

possibilidade de uma terceira casa de for-

ça funcionar na Hidrelétrica de Tucuruí,

no Pará. Tucuruí, uma das maiores usinas

do planeta, opera com duas casas de força,

geradoras de 8,3 mil megawatts. O plano

de uma terceira remonta a 2013 e amplia-

ria a capacidade em 25%, o que valoriza-

ria a usina e, portanto, deveria ser consi-

derado no valor da outorga, em princípio,

de 25 bilhões de reais.


Há outra questão que agita os bastido-

res do TCU quanto ao valor da Eletrobras,

uma discussão sem um número pronto,

mas com potencial bilionário. O uso cres-

cente de fontes de energia renováveis, co-

ta afirmou que o que está em questão é a

“precificação da energia”.


O que se desenha na Eletrobras lem-

bra o modelo de venda da Vale, em 1997.

A mineradora foi leiloada por 3,3 bilhões

de reais (corrigindo-se pela inflação, 25 bi-

lhões hoje) sem que o governo levasse em

consideração que a companhia tinha jazi-

das para quatro séculos. “Sim, é verdade

Vital do Rêgo, do TCU, vê riscos ao Erário e

potencial prejuízo aos consumidores. Técnicos

do tribunal estranham os cálculos do valor da

empresa , que teria omitido informações

mo a eólica e a solar, levanta mundo afo-

ra o debate sobre a constância dessas fon-

tes. São geradoras intermitentes, que, pa-

ra funcionar, dependem de vento e sol, não

disponíveis o tempo todo. Daí que se dis-

cute: os negócios no setor elétrico deve-

riam ser feitos com base na energia entre-

gue pelas usinas? Ou seria melhor ter co-

mo base a capacidade de cada geradora?

Nessa segunda hipótese, uma hidrelétri-

ca vale mais. Embora sempre haja risco

de crise hídrica, a oferta é mais certa, fir-

me, como se diz no mercado, do que aque-

la de uma eólica, por exemplo.


Essa nova fronteira teórica e mercado-

lógica já dá as caras aqui. Em 21 de dezem-

que é difícil medir o valor da ‘potência’, da

‘capacidade’. Mas a Aneel acaba de reali-

zar um leilão de potência, algum parâme-

tro já existe”, diz o engenheiro Mauricio

Tolmasquim, ex-presidente da Empre-

sa de Pesquisa Energética, a EPE. “O fato

de se ter dificuldade de medir esse servi-

ço não significa que não se deva medir. De

alguma forma isso tem de ser incorpora-

do ao preço (da Eletrobras e da outorga).”


Quanto mais valiosa for a companhia,

maior teria de ser a cobrança de outorga.

E quanto maior o bônus, maior será o im-

pacto nas futuras tarifas elétricas, pois os

compradores da estatal vão botar tudo na

conta de luz. Tentar evitar disparadas ta-

rifárias foi a principal alegação de Vital do

Rêgo ao pedir, em 15 de dezembro, para

interromper a deliberação do TCU sobre

o modelo da desestatização, julgamento

que será retomado na terça-feira 15. Ele

queria tempo para examinar a papelada.

Sem o aval da Corte de contas, o governo

não pode concluir o negócio.


Um dia antes, o ministro almoçara com

o presidente do Banco Central, Roberto

Campos Neto, na casa de um colega de

tribunal, Walton Alencar. “Ele nos dis-

se ontem que o maior problema que im-

põe essa escalada inflacionária chama-

-se energia elétrica. Será que hoje, em sã

consciên cia, nós podemos ir com a priva-

tização sem que essas questões sejam es-

tudadas?”, relatou Rêgo na ocasião. A ele-

tricidade ficou 21% mais cara em 2021, o

dobro da inflação oficial, por obra da crise

hídrica. Foi um dos fatores responsáveis

pelo estouro do limite máximo de 5,25%

da meta de inflação. O preço da energia,

como o dos combustíveis, encarece qua-

se todas as mercadorias, pois é um custo

de produção. O estouro obrigou Campos

Neto a enviar uma carta a Guedes sobre o

ocorrido. O documento de 14 páginas cita

nove vezes a expressão “energia elétrica”

e quatro, “escassez hídrica”.


O “Posto Ipiranga” começou a pressio-

nar Rêgo dois dias após a suspensão do

julgamento. Em um café com jornalistas,

afirmou que o procuraria para conversar.

Questionado por CartaCapital se houve a

conversa, o gabinete do ministro do TCU

não respondeu. Em 28 de janeiro, Guedes

aproveitou o anúncio de dados fiscais de

2021 para voltar à carga contra Rêgo: “Sa-

bemos do apoio dele à causa (privatiza-

dora)”. No Estadão de terça-feira 8, insis-

tiu: “Quero crer que o TCU está apenas

dando uma ajuda para que a coisa corra

de uma forma mais suave”.


O CONTROLADOR

PRIVADO TERÁ NAS

MÃOS 48% DO

ESTOQUE

HIDRELÉTRICO E

50% DAS LINHAS

DE TRANSMISSÃO


A Corte de contas paralisou a delibe-

ração, mas permitiu ao governo manter

os estudos sobre a privatização. Esta terá

duas etapas. Na primeira, a Eletrobras lan-

ça novas ações na Bolsa, e o governo não

pode comprá-las. O naco federal diluir-

-se-á, e o maior sócio será privado. Na se-

gunda, assinam-se novos contratos de con-

cessão, por 30 anos, entre a Eletrobras e a

Aneel. Essa operação deverá ser aprovada

em 22 de fevereiro em uma assembleia ex-

traordinária de acionistas convocada pe-

la estatal em 20 de janeiro. A convocação

violou a decisão de dezembro do TCU, que

autorizara os estudos, mas condicionara

“a eficácia de medidas concretas” à “apre-

ciação do mérito do processo” pela Corte.

Diante da violação, não surpreende que

o ministro do TCU Jorge Oliveira, ami-

go de Bolsonaro e ex-chefe do Jurídico

da Presidência, tenha agido para o julga-

mento ser retomado antes da assembleia

da Eletrobras. Graças a ele, na quarta-fei-

ra 9 a Corte marcou a sessão para o dia 15.


Em 23 de fevereiro, um dia depois da reu-

nião dos acionistas, a estatal divulgará seu

balanço de 2021, outro capítulo esquisi-

to. A contabilidade costuma ser apresen-

tada no fim de março. Na segunda-feira

7, a companha comunicou a antecipação.

É, parece, uma forma de tornar seus nú-

meros conhecidos pelos interessados na

privatização. É, também, uma temerida-

de, diz um funcionário da Eletrobras habi-

tuado a se debruçar sobre os dados da ca-

sa. O balanço incluirá os dados das subsi-

diárias Furnas e Eletronorte? É o que ele

questiona. Não custa lembrar, diz a fonte,

que fraude contábil levou à falência uma

megaempresa de energia norte-america-

na em 2001, a Enron.


Com correrias e atropelos,

Guedes e companhia estran-

gulam o espaço para discutir

pontos obscuros da privatiza-

ção. Debatê-los era o pretendi-

do por Vital do Rêgo ao brecar

uma decisão em dezembro. Ali, o minis-

tro mencionara três aspectos que mere-

ciam lupa. Um era o fim da cotização, me-

canismo que o governo Dilma Rousseff

instituiu em 2012, a fim de baixar tari-

fas para a população e a indústria. Essa

regra permitiu adiantar a renovação de

contratos de usinas da Eletrobras com a

Aneel que venceriam até 2017 e esticá-los

até 2042. As geradoras que entraram na

cotização são antigas, o investimento pa-

ra construí-las está amortizado, caso de

Furnas, em Minas Gerais. Por essa razão

produzem energia barata, uns 70 reais o

megawatt-hora. Segundo um documento

de 2016 da Aneel, intitulado “Por Dentro

da Conta de Luz”, a cotização tinha re-

duzido as tarifas em 20,2%, em média.



A privatização da Eletrobras aca-

ba com a cotização. As usinas

da estatal poderão cobrar os

preços praticados no mercado

livre. Neste, o valor médio do

megawatt-hora no ano passa-

do foi de 158 reais. Se a cotização diminuiu

tarifas, é de se supor que seu fim provoca-

rá o oposto. Para a Aeel, a Associação dos

Empregados da Eletrobras, será uma que-

bra de contrato com 110 milhões de lares,

aqueles abastecidos por energia de usinas

cotizadas que deveriam ter benefícios por

mais 20 anos, até 2042. Detalhe: Tucuruí

poderia entrar na cotização em 2024 e co-

locar mais energia barata na praça.


Para a descotização não empurrar as

tarifas, o Conselho Nacional de Políti-

ca Energética, comandado pelo minis-

tro Albuquerque, definiu em agosto que

a Eletrobras privatizada terá de recolher

64 bilhões de reais, até 2047, à Conta de

Desenvolvimento Energético, fundo que

subsidia a população de baixa renda. Um

pagamento que será fixo em 2,6 bilhões a

partir de 2027. “Provavelmente, o valor

do aporte anual não amenizará os acrés-

cimos tarifários advindos da privatização.

Até porque esse impacto também é des-

conhecido”, disse Rêgo em dezembro. Se-

gundo ele, apesar de a cotização represen-

tar 15% do consumo nacional, a Aneel não

apresentou estudos satisfatórios a respei-

to de tarifas após a privatização.


Sob Bolsonaro, o regulador joga na re-

tranca. Em um relatório de 2017, tempos

de Michel Temer, a agência apontava que

a privatização teria “efeito perverso sobre

o custo de energia”, uma alta de até 16%.

Em 2018, seu então diretor-geral, Romeu

Rufino, disse que descotizar traria “um

impacto significativo e por um longo perí-

odo”. No atual governo, a Aneel e o Minis-

tério de Minas e Energia só apresentaram

certos números às vésperas da votação da

lei da privatização no Senado, em junho de

2021. A conta residencial cairia 6,34%. O

pressuposto era de que a energia custaria

no mercado livre 155 reais. Dois meses de-

pois, o Conselho de Política Energética su-

biu a estimativa para 233 reais entre 2022

e 2025. Um engodo e uma bomba-relógio

para o próximo governo. A propósito: o di-

retor-geral da Aneel, André Pepitone, se-

rá diretor-financeiro de Itaipu, indicado

por Albuquerque, prova de que é da con-

fiança do governo.


“As contas do governo estão totalmen-

te erradas”, diz a economista Clarice

Campelo de Ferraz, diretora do Instituto

de Desenvolvimento Estratégico do Setor

Energético, o Ilumina. “Mas o mais im-

portante a salientar é o amanhã: como a

gente fica sem esses ativos? Estão criando

um monstro. Você vai ter um agente pri-

vado que detém 48% do estoque hidrelé-

trico do País, além de 50% de linhas de

transmissão. É ele que vai definir o pre-

ço da eletricidade do País, no limite vai

estar controlando o nosso índice de in-

flação. É uma loucura.”


Se tudo correr conforme o script gover-

namental, esse pessoal que vai se esbal-

dar ouvirá a boa-nova da certeza da pri-

vatização da boca de Bolsonaro e Guedes

nos dias 22 e 23 deste mês, em um even-

to do BTG. Banco que, como se viu, é in-

teressado na Eletrobras e em energia. Ele

lançou há pouco um investimento que, na

prática, significa apostar na alta do preço

da eletricidade no mercado livre. Antes de

integrar o sindicato montado pela estatal

para operar a própria privatização, tinha

sido agraciado pela companhia com outro

contrato sem licitação, em maio de 2017.

O objetivo era auxiliar a venda de ativos

da holding. O conselho de administração

da Eletrobras era comandado pela econo-

mista Elena Landau. Que, aliás, tem feito

críticas à privatização a caminho, apesar

de ser fanática por desestatizações. O con-

selho do BTG era chefiado pelo ex-mari-

do de Elena, Pérsio Arida. O BTG contro-

la uma empresa térmica, a Eneva, e com-

prou a maior consultoria privada do setor

elétrico em 2020, a PSR.


Tem mais conflitos de interesse na

Eletrobras e sua privatização. A diretora

financeira, Elvira Presta, fez carreira no

grupo empresarial dos ricaços sócios do

3G, fundo dono de 10% das ações da esta-

tal. Outro caso de conflito de interesses,

situação para a qual há uma lei de 2013 a

caracterizar esse tipo de situação como

improbidade, é o do Grupo Genial. Este

possui uma corretora de valores que con-

trola um fundo detentor de 5% das ações

da Eletrobras. Outra firma do grupo foi

contratada pelo BNDES para um pente-

-fino pré-privatização. Um terceiro bra-

ço do grupo recomenda a clientes que

comprem papéis da estatal. E um quar-

to tem uma comercializadora de energia,

conforme revelado por um representan-

te do Genial em janeiro, em uma audiên-

cia pública do BNDES. O homem por trás

do Genial é o empresário Lirio Parisotto,

de 2011 a 2018 suplente do senador Edu-

ardo Braga, do MDB do Amazonas, ex-

-ministro de Minas e Energia.


HÁ INÚMEROS

CONFLITOS DE

INTERESSE QUE

ENVOLVEM

EMPRESAS

CONTRATADAS

PARA AUXILIAR NO

PROCESSO DE

PRIVATIZAÇÃO


Conflitos à parte, a privatização

vai vingar? O jogo de forças no

plenário do TCU pende para o

lado do “sim”, mas a esperada

contundência do voto de Vital

do Rêgo pode mudar tudo. No

“mercado”, há opiniões divididas. Um

analista político diz que na Faria Lima

pouca gente crê em revés. Um outro pen-

sa o contrário, especialmente após ter ou-

vido de um líder governista no Congresso

nos últimos dias que seria melhor não

concluir a venda, por causa da eleição. No

PT, que vê Lula folgado à frente nas pes-

quisas, o economista Nelson Barbosa, ex-

-ministro da Fazenda e do Planejamento,

disse ao site de CartaCapital: “Espero que

essa privatização não vá para frente, é um

ato lesivo ao consumidor brasileiro e ao

contribuinte”.


A presidente petista, Gleisi Hoffmann,

prega ser “urgente” que o TCU barre a de-

sestatização, diante da subavaliação do

governo no valor da Eletrobras. Ela lem-

bra que algo similar ocorreu na Petrobras,

com a venda da refinaria baiana de Lan-

dulpho Alves, hoje rebatizada de Matari-

pe. O negócio foi selado com árabes por 10

bilhões de reais, mas uma ação popular

questiona o negócio e aponta que o valor

deveria ser entre 17 bilhões e 21 bilhões.

Essa refinaria, aliás, tem cobrado preços

mais caros do que a Petrobras, sinal de

que privatização costuma ser sinônimo

de peso maior no bolso dos consumidores.

Com a palavra, o TCU. •


CARTA CAPITAL



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