January 15, 2022

Omicron: o início do fim?

 

 A fila de espera nos prontos-socorros chega a seis horas. O governo federal retardou a vacinação das crianças

Um número crescente de cientistas acredita que a nova cepa precipita o fim da pandemia, mas os críticos alertam para o colapso dos hospitais e o risco de novas mutações agressivas


Por Rodrigo Martins e Fabíola Mendonça 

 A Terra é plana ou esférica? Além de matar piolho, a Ivermectina combate o Coronavírus? As máscaras trazem mais prejuízos que benefícios? As vacinas são realmente seguras ou provocam graves reações adversas? Quem tomar o imunizante da Pfizer corre o risco de se transformar em jacaré? Sob o governo de Jair Bolsonaro, a comunidade científica precisou unir-se para enfrentar o tsunami de fake news e falsas controvérsias alimentadas pelas milícias digitais bolsonaristas. A profusão de bobagens nas redes sociais era tão grande que, em certo momento, o brasileiro viu-se forçado a escolher um lado: ou abraçava o negacionismo do xamã do Planalto ou se guiava pela “ciência”. Passados dois anos e 615 mil mortos, o elevado porcentual de brasileiros que tomou ao menos uma dose da vacina, 78%, é um forte indício da vitória desse segundo grupo. Ufa!

A ciência não é, porém, o território de
certezas imutáveis. É impossível disso-
ciar a produção do conhecimento da dú-
vida, da divergência. Não por acaso, a co-
munidade científica, dentro e fora do Bra-
sil, hoje está dividida em torno de uma te-
se, segundo a qual a passagem da varian-
te Ômicron pode representar, no futuro
próximo, o fim da pandemia que provo-
cou a morte de mais de 5,5 milhões de in-
divíduos. À primeira vista, a hipótese de-
safia o senso comum. O noticiário não se
cansa de apontar os impactos da nova ce-
pa, capaz de contagiar mais de 3 milhões
de pessoas em um único dia pelo mundo
afora. Hoje responsável por 98% das infec-
ções por Covid nos EUA, segundo o Cen-
tro de Controle e Prevenção de Doenças,
a Ômicron provocou mais de 1 milhão de
infecções no país somente na segunda-fei-
ra 10. O número de internações aumentou
20% na comparação com o início do ano
anterior. Identificada em 50 das 53 nações
europeias, a variante deve infectar mais
da metade da Europa nas próximas seis ou
oito semanas, estima a Organização Mun-
dial da Saúde. Segundo um relatório divul-
gado pela entidade na terça-feira 11, a nova
cepa já é predominante, sendo responsá-
vel por 58,5% dos casos de Covid-19 ana-
lisados no mundo.

No Brasil, é impossível saber a re-
al dimensão do estrago. Primeiro, por-
que o governo federal negligencia, des-
de o início da pandemia, a testagem de
casos suspeitos com a identificação da
variante causadora. Segundo, porque os
sistemas do Ministério da Saúde estão fo-
ra do ar ou com instabilidade há mais de
um mês, em decorrência de um ataque
hacker. O Painel da Covid, por exemplo,
não é atualizado desde a primeira sema-
na de dezembro. Por ora, os poucos da-
dos disponíveis são do Instituto de Mé-
tricas e Avaliação em Saúde (IHME) da
Universidade de Washington, a estimar
que o País já registra mais de 1 milhão de
infecções de Covid por dia, quase a totali-
dade causada pela Ômicron, e pode che-
gar a 2,3 milhões em fevereiro (gráfico
à pág. 13). A projeção leva em conta não
só os casos confirmados por testes, mas
também a gigantesca subnotificação.

Apesar de ser altamente trans-
missível e ter se alastrado pe-
lo mundo numa velocidade
sem precedentes, como ob-
servou a OMS, a Ômicron re-
velou-se bem menos agressiva
que as variantes anteriores. Não por aca-
so, a explosão de casos tem pressionado
os serviços de emergência e lotado os lei-
tos de enfermaria, mas não chegou a lotar
as UTIs nem disparar o número de óbitos
nos países com vacinação mais avançada.
E são exatamente essas duas característi-
cas, o fato de ser mais contagiosa e menos
agressiva, que levam um crescente gru-
po de cientistas a acreditar que a varian-
te pode, em curto espaço de tempo, tor-
nar a Covid uma doença endêmica, com
ciclos sazonais de infecção, a exemplo do
que ocorre com o vírus da gripe.

“A grande maioria deve contrair o ví-
rus em curto espaço de tempo, mas sem
desfechos graves. Teremos um gran-
de contingente populacional com uma
imunidade recente, gerada pela infec-
ção, somada a outro de vacinados”, avalia
o epidemiologista Pedro Hallal, titular da
Universidade Federal de Pelotas e pro-
fessor visitante da Universidade da Ca-
lifórnia, em San Diego (box à pág. 15). Se-
gundo o especialista, as variantes ante-
riores eram muito mais agressivas, razão
pela qual não seria possível adotar uma
estratégia de imunização coletiva por ex-
posição ao vírus. “Se tivéssemos deixado
todo mundo se infectar, a pandemia po-
deria ter matado 3 milhões de brasilei-
ros, em vez das 615 mil vítimas registra-
das até o momento.”

Com a passagem da Ômicron, o cená-
rio é diferente, observa o epidemiologis-
ta. A maioria dos brasileiros possui al-
gum grau de imunidade ao Coronavírus
em decorrência de uma infecção prévia
ou da vacinação. A variante tem a capa-
cidade de escapar dessa barreira de pro-
teção, mas a infecção manifestará sinto-
mas leves, semelhantes aos de uma gri-
pe, como cefaleia, coriza, dores no corpo,
febre, mal-estar e tosse. A teoria não po-
de, porém, ser aplicada em lugares com
baixa cobertura vacinal – a exemplo da
África, com apenas 11% da população
imunizada às vésperas do Natal. “Ain-
da assim, acredito que a Ômicron pode
ser o primeiro passo para o fim da pan-
demia por aqui. Ela é de quatro a cinco
vezes menos agressiva que as cepas an-
teriores. Esse número diminui conside-
ravelmente entre vacinados e, no Bra-
sil, 68% estão completamente imuniza-
dos. Entre os idosos, o porcentual chega
a 95%. E estamos falando de uma popu-
lação com alto porcentual de indivídu-
os com infecção prévia. Por esses fato-
res, acredito que a população brasileira
está mais protegida que outras.”

A avaliação é compartilhada pelo in-
fectologista Marcos Boulos, professor da
Faculdade de Medicina da USP e ex-inte-
grante do Centro de Contingenciamento
ao Coronavírus em São Paulo. “Há tem-
pos sabemos que a Covid tende a se tor-
nar endêmica, pois o vírus se alastrou
pelo mundo inteiro e as vacinas não se
mostraram capazes de evitar novas in-
fecções, embora reduzam muito o risco
de hospitalização e morte. Ou seja, não
há possibilidade de se erradicar a doen-
ça e teremos de conviver com ela, como
convivemos com a Influenza, que matou
dezenas de milhões de pessoas em 1918
e nos anos seguintes, mas depois perdeu
a força”, avalia. Um indicativo de que o
Brasil estaria próximo dessa transição,
de pandemia para endemia, foi o fato de
a variante Delta ter provocado um estra-
go muito maior na Europa e nos EUA do
que por aqui. “Seja por conta da vacina-
ção ou por uma infecção prévia, os brasi-
leiros parecem mais protegidos.”

Não são apenas os compatriotas que po-
dem se favorecer com a Ômicron. Na ter-
ça-feira 11, a Agência Europeia de Medi-
camentos, a exercer um papel regulador
semelhante ao da Anvisa, manifestou dú-
vidas sobre a necessidade de uma segun-
da dose de reforço nos cidadãos do bloco.
“Com a Ômicron, haverá muita imunidade
natural além da vacinação. Avançamos pa-
ra um cenário próximo da endemicidade”,
disse Marco Cavaleri, diretor de estratégia
vacinal da EMA, com sede em Amsterdã.
“Ninguém sabe quando veremos a luz no
fim do túnel, mas chegaremos lá.”
 
 
Otimista, Mike Tildesley, espe-
cialista em modelagem mate-
mática de doenças infecciosas
e professor da Universidade de
Warwick (Inglaterra), acredi-
ta que a Ômicron pode favore-
cer o surgimento de uma cepa ainda mais
branda. “No longo prazo, a Covid-19 se
tornaria endêmica, com uma versão me-
nos severa, muito semelhante ao resfria-
do comum”, disse, em entrevista ao britâ-
nico The Guardian. “Ainda não chegamos
lá, mas a Ômicron é o primeiro indício a
sugerir que isso pode acontecer.”

A tese está, porém, longe de ser consen-
sual na comunidade científica. Na pas-
sagem do ano, o diretor-geral da OMS,
Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a
publicar nas redes sociais a esperançosa
previsão de que a pandemia acabaria em
2022. Agora se demonstra bem mais cau-
teloso e reticente. “Assim como as varian-
tes anteriores, a Ômicron está hospitali-
zando e matando. Na verdade, o tsunami
de casos é tão grande e rápido que está so-
brecarregando os sistemas de saúde em
todo o mundo”, afirmou o ex-ministro da
Saúde etíope, doutor em Saúde Pública
pela Universidade de Nottingham (Rei-
no Unido). Segundo a OMS, o número de
casos globais de Covid aumentou 71% na
última semana. Nas Américas, houve alta 
de 100%. Entre os registros de casos gra-
ves, 90% são de pacientes não vacinados
ou sem o ciclo completo de imunização.

O neurocientista Miguel Nicolelis, pro-
fessor do Departamento de Neurobiolo-
gia da Duke University e ex-integrante do
Comitê Científico de Combate ao Coro-
navírus do Consórcio Nordeste, também
demonstra preocupação com o avanço da
Ômicron. Na avaliação dele, não existe
nenhum dado científico concreto ou um
modelo matemático seguro a indicar que
a variante possa precipitar o fim da pan-
demia. “De repente, pode aparecer uma
mutação na Indonésia muito mais grave
e letal. Não tem como prever, porque o ví-
rus não segue uma trajetória linear”, aler-
ta (leia mais à pág. 15). “Os especialistas
mais renomados que eu conheço deixa-
ram muito claro que não faz sentido fa-
lar em fim da pandemia neste instante.”

Nicolelis alerta para a existência de
três epidemias concomitantes no Brasil.
“Tem a Ômicron, que virou dominante,
tem a Delta ainda e tem a Influenza. E eu
já me preocupo com a dengue, porque es-
se é o período sazonal de crescimento da
doença.” Em sua avaliação, os serviços
de saúde podem entrar em colapso com a
avalanche de casos de Covid prevista para
as próximas semanas pela Universidade
de Washington. “E o pior: o Ministério
da Saúde está completamente perdido.
Não temos liderança, não temos estraté-
gia. Temos um ministro que não fala coi-
sa com coisa, que retardou vacinas para
crianças sem a menor necessidade. Nós
não testamos, as pessoas ficam horas pa-
ra fazer um teste e podem se infectar na
fila, de tanta gente que tem. E não temos
números, vivemos um apagão estatístico.”

José Gomes Temporão, ex-ministro
da Saúde e pesquisador da Fiocruz, une-
-se aos críticos da tese do fim iminente
da pandemia. “Vejo muita gente batendo
palmas porque o Brasil conseguiu imu-
nizar 68% da população, mas com mui-
ta heterogeneidade. Na Região Norte,
temos estados com cobertura vacinal de
duas doses na casa dos 40%”, observa. É
o caso de Roraima, com 39,6% da popula-
ção completamente imunizada, e do Acre,
com 47,7%. Além disso, enfatiza Tempo-
rão, a tese de que a Ômicron veio para tor-
nar a Covid endêmica é apenas uma hipó-
tese, que pode ou não se confirmar. Outra
hipótese, “igualmente plausível”, é de ela
favorecer o surgimento de uma variante
mais agressiva, devido à intensa circula-
ção do vírus pelo planeta. “Não é o mo-
mento de fazer afirmações tão categóri-
cas. A variante é nova, ainda estão sain-
do os primeiros estudos sobre o seu com-
portamento, fisiopatogenia, período de
incubação, transmissibilidade. Precisa
mos aguardar as conclusões para fazer
prognósticos mais seguros.”
Apesar do otimismo da Agência Euro-
peia de Medicamentos, a Ômicron tem de-
safiado os governos do continente. No Rei-
no Unido, as companhias privadas foram
acionadas para atuar no controle da cepa,
caso a ausência de profissionais doentes
comprometa o Sistema Nacional de Saúde.
No fim de dezembro, um em cada 20 tra-
balhadores da saúde estava afastado por
infecção de Covid. Além disso, militares
foram convocados para atuar nos hospi-
tais, devido ao aumento dos casos.

 
Na Espanha, a rede primária
está sobrecarregada e apo-
sentados foram convidados
a voltar a trabalhar para aju-
dar no atendimento. Para mi-
nimizar o déficit de profissio-
nais da linha de frente no atendimento
ao Coronavírus, a França resolveu abo-
lir, em caráter extraordinário, a quaren-
tena e o isolamento dos profissionais in-
fectados que estão com sintomas leves ou
nenhum sintoma, fazendo com que eles
continuem atendendo outros pacien-
tes. Um risco sem precedentes e que es-
tá servindo de base para o governo brasi-
leiro, que reduziu para cinco dias o isola-
mento de trabalhadores assintomáticos.
A Confederação Nacional de Saúde tam-
bém defende que os profissionais com
Covid-19 assintomáticos não sejam afas-
tados do trabalho, desde que tenham to-
mado a terceira dose da vacina.

Apontados como um dos países onde
o movimento antivacina é mais forte, os
EUA são palco de uma guerra jurídica en-
volvendo alguns estados governados por
republicanos e a administração de Joe Bi-
den. Negacionistas, esses governadores
brigam na Justiça para derrubar a obri-
gatoriedade da vacina. A França é outro
país onde o movimento cresce, a ponto
de o presidente Emmanuel Macron ame-
açar transformar a vida dos não vacina-
dos em “um inferno” e restringir o acesso
a trens e cinemas. Na Itália, cidadãos aci-
ma de 50 anos serao obrigados a se vacinar
nar, enquanto os trabalhadores não imu-
nizados podem ser suspensos do empre-
go a partir de 15 de fevereiro.
Sede das Olimpíadas de Inverno pre-
vistas para ocorrer no início de feverei-
ro, a China volta a impor o lockdown em
algumas cidades, diante do avanço da
Ômicron, deixando mais de 20 milhões de
chineses em isolamento e estabelecendo
o fechamento do comércio. Está em cur-
so uma campanha de testagem em massa,
com o objetivo de zerar o número de casos
e garantir a realização do evento esporti-
vo com relativa segurança.

Em meio ao cenário assustador, os
brasileiros iniciaram uma corri-
da pela vacina em vários estados.
Na Bahia, segundo a Secretaria
Estadual de Saúde, mais de 80%
dos internados nas UTIs não se
vacinaram. No Rio de Janeiro, a demanda
dos serviços de emergência aumentou
mais de 200%. “As UTIs estão com ca-
sos de Covid só entre os não vacinados.
Os imunizados dificilmente passam do
atendimento ambulatorial”, comentou,
ao jornal O Globo, a intensivista Ludhmila
Hajjar. Na avaliação da especialista, os
sistemas de saúde podem entrar em co-
lapso em uma semana.

Em alguns estados, como o Ceará, ci-
rurgias eletivas foram suspensas para as-
segurar leitos de UTI a pacientes com Co-
vid. São Paulo está reinstalando tendas
para atender os doentes e, na terça-feira
11, mais de 1,7 mil pacientes estavam in-
ternados em UTIs, um aumento de mais
de 90% comparado ao início de janeiro.
Apenas na capital, perto de 270 mil pro-
fissionais de saúde estão infectados. Be-
lo Horizonte alcançou 100% de lotação
em leitos de enfermaria para atendimen-
to às infecções respiratórias na rede pú-
blica. Em Pernambuco, mais de 80% das
UTIs estão ocupadas por pacientes com
síndrome respiratória aguda grave. Na
Grande Florianópolis, em Santa Catari-
na, quase 80% dos leitos para Covid estão
em uso. Em Goiânia, a ocupação nas en-
fermarias dobrou entre o fim de dezem-
bro e a primeira semana de janeiro. Em
Manaus, cerca de 50% dos leitos clínicos
estão com pacientes com Coronavírus.
Salvador, Olinda, Recife, Belo Hori-
zonte, Rio de Janeiro e São Paulo anun-
ciaram que não vão permitir o Carnaval
nas ruas, mas a iniciativa privada está li-
berada para oferecer uma programação
para quem pode pagar. No Rio, inclusi-
ve, existe a possibilidade de haver o tradi-
cional desfile das escolas de samba na Sa-
pucaí, assim como deve acontecer em São
Paulo. Mesmo com a liberação para festas
privadas no Carnaval, alguns estados vol-
taram a adotar medidas restritivas. Na se-
gunda-feira 10, os governos de Pernambu-
co e Bahia decidiram limitar a 3 mil o pú-
blico em shows e eventos, além de exigir o
passaporte vacinal para ter acesso aos lo-
cais. “Estamos lidando com uma situação
de pré-colapso nas emergências munici-
pais, UPAs, postos de saúde e nas emer-
gências dos hospitais estaduais”, justifi-
ca o governador baiano, Rui Costa, do PT.
“Esperamos que essa medida sirva de aler-
ta também para quem organiza eventos e
que passem a exigir o atestado de vacina-
ção com maior rigor.”

Diante desse cenário, Júlio Croda, pes-
quisador da Fiocruz e professor associado
da UFMS e da Yale School of Public Health
(EUA), diz nutrir um “otimismo cautelo-
so” em relação à Ômicron. “Existe, de fa-
to, um bom prognóstico após a passagem
da variante, mas não temos garantia de
que não aparecerá uma nova cepa capaz
de quebrar essa barreira imunológica e
 causar infecções mais graves”, pondera.
“Além disso, um número tão elevado de
infecções ao mesmo tempo vai sobrecar-
regar os serviços de saúde. Nas emergên-
cias, já vemos filas de quatro a seis horas,
falta de profissionais, falta de atendimen-
to médico. Por menor que seja a sua letali-
dade, a Ômicron pode, sim, provocar um
colapso na saúde pública.” •

CARTA CAPITAL





 
 
 


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