January 8, 2022

Circo Voador: A estreia do picadeiro que marcou a virada democrática no Brasil

 Caetano Veloso durante show na estreia do Circo Voador, em 1982
Caetano Veloso durante show na estreia do Circo Voador, em 1982 

| Foto de Ney Robson/Divulgação

 

William Helal Filho

Uma lona azul-rei cobria o palco de 40 metros quadrados e a estrutura de tubos de ferro, revestida de lonas verdes e amarelas. Lá dentro, rodeado pelo público, um Caetano Veloso "semi-quarentão", vestindo calças de cetim amarelas e camiseta vermelha, compunha o cenário mágico erguido às custas de muito suor e sonho na ponta do Arpoador, um pedaço de paraíso na Zona Sul do Rio. "Este circo está lindo, tem tudo para levantar voo", vaticinou o tropicalista baiano ao microfone, durante um intervalo entre uma canção e outra. 

Passava da meia-noite daquele domingo de verão quando as pessoas que assistiam ao espetáculo do lado de fora, através de uma fresta lateral, foram autorizadas a entrar e se somaram às mais de 500 já presentes. Era um público misturado, de hippies, surfistas, estudantes e turistas, todos queimados de sol e pedindo mais. Caetano, então, puxou os versos de "Outras palavras", que havia se tornado um hit no ano anterior. Foi a senha para começar um pequeno carnaval. Na plateia e no picadeiro, havia a sensação de que aquela energia podia durar pra sempre.

O Circo Voador na Praia do Arpoador, em janeiro de 1982

Aquela era a terceira noite do fim de semana de estreia do Circo Voador, um empreendimento que marcou profundamente o verão de 1982 no Rio e, mantendo-se vivo desde então, misturou-se à própria identidade carioca. Um espaço com oficinas e espetáculos, dedicado à cultura de vanguarda, que abrigou grupos de teatro experimental, companhias de dança calcadas na arte circense, coletivos capoeiristas e muito rock n' roll. Bandas antológicas como Barão Vermelho, Blitz e Paralamas do Sucesso estouraram depois de se apresentar debaixo da lona. 

Inaugurado em 15 de janeiro de 1982, o picadeiro ficou no Arpoador até março e, em outubro do mesmo ano, aterrizou no seu endereço atual, nos Arcos da Lapa. 

"Eu voei tanto com esse circo na minha cabeça que hoje, ao me ver aqui, embaixo dessa lona, fico me beliscando com medo de acordar. Quando o grupo de teatro Tá Na Rua fez o espetáculo aí em frente e entrou para nos dar a chave da cidade, quase chorei de tanta emoção", desabafou, na época, o empreendedor cultural Perfeito Fortuna, idealizador e realizador do projeto, hoje à frente da Fundição Progresso.

Desfile que anunciou a chegada do Circo Voador, em janeiro de 1982

O Rio conheceu o plano de voo do Circo no dia 10 de janeiro de 1982, há 40 anos. Na tarde daquele domingo, um cortejo de artistas arrastou centenas de pessoas pela orla de Ipanema, partindo da Praça Nossa Senhora da Paz, até o Arpoador, anunciando a contagem regressiva de cinco dias para a abertura do picadeiro à beira-mar. No fim de semana seguinte, a inauguração da lona deu início a uma série de apresentações de grupos teatrais formados por membros do Asdrubal Trouxe o Trombone, um coletivo seminal que, formado em 1974, está no DNA voador.

Entre os integrantes do Asdrubal, havia artistas como Regina Casé, Hamilton Vaz Pereira, Evandro Mesquita, Luiz Fernando Guimarães, Patricya Travassos e Perfeito Fortuna. Em 1981, alguns deles começaram a dar cursos de atuação que levaram à criação de grupos teatrais, como o Corpo Cênico Nossa Senhora dos Navegantes, o Vivo Muito Vivo e Bem Disposto, o  Baduendes Por Acaso Estrelados e o Sem-Vergonha. Essa geração, que ficou conhecida como os "filhotes do Asdrubal",  encontrou no Circo Voador o palco ideal para mostrar seu trabalho.

O Brasil vivia, no início dos anos 1980, os últimos anos da ditadura militar, que começara em 1964 e afundara o país na censura, na ausência de eleições diretas e na perseguição, tortura e morte de presos políticos. Eventos culturais ao ar livre praticamente não existiam. Apenas na segunda metade dos anos 1970, teve início o processo de abertura. Em 1982, aconteceriam as primeiras eleições diretas para governador desde os anos 1960. O Brasil rumava de volta para a democracia, e as pessoas reconquistavam o direito de falar o que queriam. O sentimento de "virada" permeava as muitas formas de expressão manifestadas no Circo Voador.

Circo Voador. Show do Barão Vermelho, com Cazuza à frente do palco, na Lapa

O próprio Perfeito Fortuna havia sido preso sem explicação, dias depois da edição do Ato Institucional de número 5 (AI-5), em dezembro 1968, quando dividiu a cela com Caetano Veloso por alguns dias. Chegou a passar o Natal e o réveillon daquele ano ano na cadeia. Treze verões depois, já com o clima menos tenso, conseguiu, com muito sufoco, a autorização pública para montar seu circo na orla do Rio. 

No primeiro domingo de funcionamento da lona, uma hora antes da abertura dos portões, um pequeno público se reunia em frente às duas bilheterias para comprar as camisetas-ingresso com estamparia do circo e pegar um exemplar do jornal "Expresso Voador". No picadeiro, integrantes de grupos teatrais como o Manhas e Manias e o Beijo na Boca ensaiavam seus números. Fantasias de lamê se confundiam com meias listradas e instrumentos musicais nos bastidores, enquanto cada artista ajudava o outro a se maquiar ou a se vestir. 

Apresentação de teatro no Circo Voador em janeiro de 1982

Cada coletivo levou ao picadeiro a sua arte. Do Manhas e Manias, faziam parte atrizes como Andrea Beltrão e Debora Bloch, que mais tarde se tornariam famosas na TV. Naquela noite, ainda eram jovens de vinte e poucos anos se descobrindo no palco, em espetáculos repletos de mímica, improviso, humor e esquetes inspiradas nas artes circenses.

Com 28 integrantes, o grupo Cobra Coral apresentou músicas de Caetano Veloso, Hamilton Vaz Pereira e até  um canto indígena. Num determinado momento, o coral cantava iluminado apenas por um facho de luz azul, levando às lágrimas um senhor grisalho que assistia ao espetáculo do lado de fora, pela fresta da lona. "Isso tudo parece matéria dos sonhos", disse ao GLOBO a atriz Bianca Byngton, então aos 16 anos de idade e recém-eleita musa do verão carioca.

O Cobral Coral ainda estava no palco quando Caetano entrou para apresentar com eles "Um canto de afoxé para o Bloco do Ilê", música que estaria no seu LP "Cores, nomes" (1982). O baiano de Santo Amaro da Purificação também cantou "Meu bem, meu mal", "Menino do Rio", "Leãozinho" e "Surpresa". Ao dedilhar os primeiros acordes de "Outras palavras", a plateia se levantou para dançar em ritmo de carnaval. O baile só acabou depois de "Odara" e "Lua de São Jorge", com o artista alegando que não tinha mais nenhuma música de animação para apresentar. 

"Foi a confusão mais maravilhosa e organizada que já vi na vida", avaliou Perfeito Fortuna, ao final da noite. Era só o começo.

Circo Voador. Artistas se apresentando na lona do Arpoador, em 1982
Circo Voador. Desfile na orla de Ipanema que anunciou chegada da lona
Adrubal. Ex-integrantes do grupo teatral que deu origem ao Circo Voador

 

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