Talvez no futuro seja necessário ler o gibi "Depois que o Brasil Acabou" com um livro de história ao lado para entender todas as referências do autor João Pinheiro. Hoje, porém, o leitor não carece de ajuda. A memória dos eventos e personagens dos últimos anos segue fresca e viva.
Num dos capítulos, por exemplo, Pinheiro conta a história de um funcionário de boteco chamado Kim. O rapaz está absorto na leitura de um livro de um tal de Olavão de Carvalho. Tropeça, leva um choque e vomita em cima de um estoque de carne adulterada. Kim serve esse prato para o cliente, um jacaré irritadiço. Mais tarde, o animal tem uma dor de barriga daquelas no meio da rua. O resultado é uma pilha de fezes que grita "vai pra Cuba, feminazi!". O cocô acaba eleito presidente.
Fica claro, ao longo da leitura, que o recém-lançado "Depois que o Brasil Acabou" é uma espécie de manifesto político em HQ. Pinheiro se apossa de personagens da história recente do país e, com nanquim, desenha suas facetas menos lisonjeiras.
Como bem afirma no prefácio o premiado quadrinista Marcello Quintanilha, autor de "Tungstênio", Pinheiro bebe de uma tradição nacional. Segue a linha do ítalo-brasileiro Angelo Agostini, um dos pais dos gibis brasileiros, que registrou o declínio do Império no fim do século 19. Trilha também o caminho das histórias em quadrinhos populares dos anos 1950.
Pinheiro é um dos grandes nomes das HQs nacionais. Fez fama em 2011 com "Kerouac,", sobre o escritor do movimento beat Jack Kerouac —a vírgula no título é proposital. Em 2015, publicou "Burroughs", sobre William Burroughs, outro beat. Em 2016, lançou "Carolina", sobre a escritora Carolina de Jesus. Mais recentemente, tem produzido quadrinhos digitais sobre a pandemia da Covid-19 e seu impacto nas periferias —um cenário recorrente na sua obra. Entre suas influências estão artistas nacionais como Flavio Colin, Júlio Shimamoto e Jayme Cortez.
O volume "Depois que o Brasil Acabou" é uma coletânea de histórias que Pinheiro publicou desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Os capítulos tratam de narrativas diferentes, todas elas amarradas a essa ideia de que a transição para o governo de Michel Temer —que Pinheiro claramente chama de golpe— empurrou o país ladeira abaixo, rumo à catástrofe.
As histórias, como o título deixa claro, acontecem após o fim do país. Têm um ar apocalíptico não difícil de imaginar, num presente marcado pela violência do debate público. Num trecho, Pinheiro menciona um dilúvio supostamente ocorrido neste ano, quando o prefeito decidiu inundar partes da cidade para "eliminar" o excedente populacional e otimizar os recursos. O quadrinista também fala da transformação da sociedade em zumbis pelo flúor e pelo capitalismo.
Alguns dos personagens são claramente inspirados na realidade. Há alguém com uma máscara do ex-juiz Sergio Moro, por exemplo. O ex-presidente Michel Temer aparece dizendo que "a guerra contra a pobreza acabou, e os pobres perderam". Mas há também pessoas imaginadas, como a Preta Maravilha, que luta contra uma conspiração chamada de União Golpista nessa história.
A crítica social é afiada e atual na maior parte do gibi. Em outras, elementos mais gastos do vocabulário de protesto se infiltram na trama —como alusões ao FBI, à TV Globo e ao mercado financeiro. Pinheiro ilustra também alguns personagens da Disney, como o Pato Donald e o Mickey, na constelação de metáforas sobre o capitalismo.
O estilo das ilustrações depende de cada capítulo. A variação no traço e no material é proposital e parece partir da convicção de Pinheiro de que a forma tem de refletir e priorizar o conteúdo. Isto é, que cada história exige a sua própria estética.
hama bastante a atenção o uso constante —e sofisticado— que Pinheiro faz do nanquim no papel, criando cenas detalhadas de uma profundidade excepcional. Outra técnica que aparece em boa parte do gibi são as retículas, nome dado aos padrões quadriculados tradicionalmente usados em quadrinhos para dar a sensação de sombreamento.
Numa das cenas da HQ, Pinheiro copia propositalmente o estilo do quadrinista John Romita Jr., famoso por ter desenhado super-heróis estrangeiros como o Homem-Aranha. Um personagem questiona a escolha dessa referência e ouve a seguinte resposta "quadrinho bom mesmo é o americano". Pinheiro, é claro, está ironizando. Seu trabalho é, afinal, clara evidência da qualidade da produção nacional.
FOLHA
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