May 31, 2021

A VERDADE A GALOPE

 

 

 


p or A N DRÉ BA R RO C A L

 No governo do presidente
Pinóquio, mentir é virtu-
de. Eduardo Pazuello e Er-
nesto Araújo não são mais
ministros da Saúde e das
Relações Exteriores, mas
seguem virtuosíssimos.


Na CPI da Covid, esbalda-
ram-se em lorotas e cinismo. Na semana
anterior, outro ex-colaborador de Jair Bol-
sonaro mentira, e o presidente da comis-
são, Omar Aziz, do PSD, fraquejara diante
do pedido do relator, Renan Calheiros, do
MDB, para prender Fábio Wajngarten, ex-
-chefe da propaganda governamental. Re-
sultado: um liberou geral para inverdades,
queixa feita nos bastidores da CPI por Otto
Alencar, colega de partido de Aziz.


Alencar, que é ortopedista, atendeu Pa-
zuello no primeiro dia de depoimento do
general da ativa, a quarta-feira 19, e diag-
nosticou-o com síndrome vasovagal, a
falta momentânea de sangue no cérebro.
Imagine-se se o fardado não tivesse ido à
CPI munido de um habeas corpus do Su-
premo Tribunal Federal que lhe permitia
calar para não se incriminar. Seu advoga-
do invocou o direito ao silêncio uma vez no
dia 19, quando Pazuello fora confrontado
com contradições quanto à falta de oxigê-
nio em Manaus em janeiro, episódio que é
uma das razões de ser da CPI e de um pro-
cesso criminal contra o general.

Calheiros cobra de Aziz a criação de um
grupo de assessores capaz de pegar no ato
mentiras de depoentes. Que tal um polí-
grafo? Apesar das inverdades, a CPI já
delineia os crimes do presidente e de Pa-
zuello, prenúncio de um relatório final
duro – Calheiros fará nos próximos dias
um relatório sobre o primeiro mês da co-
missão. O que não significa que o ex-capi-
tão cairá. As conclusões dos senadores só
virarão processo criminal contra Bolso-
naro na Justiça se o procurador-geral da
República, Augusto Aras, quiser. E só le-
varão ao impeachment no Congresso, por
crime de responsabilidade, se o presiden-
te da Câmara, Arthur Lira, do PP, quiser.
E nenhum dos dois deseja jogar Pinóquio
ao mar. Aras até espera ser reconduzido
ao cargo, em setembro, pelo ex-capitão

“Esta é uma CPI diferente das outras,

pois é construída em cima de fatos sa-
bidos e os responsáveis por esses fatos
igualmente são sabidos. Nosso trabalho
é confirmar o desleixo, o descuido, a
omissão do governo, do presidente, do
Ministério da Saúde”, diz o senador
Humberto Costa, do PT, membro titular
da comissão. “O que foi apurado até ago-
ra aponta claramente que governo falhou
absurdamente. O relatório final vai apon-
tar crime comum contra a saúde pública,
os direitos humanos e genocídio indígena,
e crime de responsabilidade.” Por causa
do genocídio de indígenas, tratados com
desdém e cloroquina por Brasília, o rela-
tório deverá ser enviado ao Tribunal Pe-
nal Internacional, onde há uma denúncia
contra Bolsonaro por incitar o genocídio
antes da pandemia.

Para colaborar com as investigações,
a CPI pediu a professores da Faculdade
de Saúde Pública da USP e a advogados 

da ONG de direitos humanos Conectas a atu-
alização de um estudo de janeiro. O docu-
mento do início do ano examinava 3 mil
normas federais editadas na pandemia e
concluía: o governo trabalhou para disse-
minar o vírus, em busca da imunidade de
rebanho (contágio de uns 70% da popu-
lação e a consequente produção de anti-
corpos). E agiu assim para manter a eco-
nomia aberta. Duas ilustrações da políti-
ca pró-vírus: o veto presidencial à lei do
uso obrigatório de máscaras no País e um
decreto que ampliou a lista de atividades
essenciais (que não poderiam parar), pa-
ra incluir construção civil, salão de bele-
za e academia de ginástica.


A atualização do estudo será en-
tregue à CPI até o dia 28. Se-
gundo um dos autores, Fer-
nando Aith, professor de Po-
lítica, Gestão e Saúde da USP,
foram mapeadas mais 600 ou-
tras iniciativas federais pró-vírus adota-
das em 2021. “Imunidade de rebanho só
existe com vacinação. Por contágio é um
absurdo, nunca se aplicou em lugar ne-
nhum do mundo, porque significa mortes
em massa. E não apenas mortes por Covid,
mas também mortes indiretas, em razão
do colapso do SUS”, afirma.


À CPI, Luiz Henrique Mandetta, minis-
tro da Saúde no início da pandemia, con-
firmou que Bolsonaro namorou a imuni-
dade de rebanho. Uma das teorias sopra-
das ao presidente, segundo Mandetta,
por conselheiros paralelos. Quantos bra-
sileiros estariam vivos se o governo hou-
vesse tido bom senso na crise sanitária e,
além disso, apostado na vacina? Respon-
der esta pergunta é um dos próximos pas-
sos da CPI, segundo os senadores Alessan-
dro Vieira, do Cidadania, e Rogério Carva-
lho, ambos suplentes da comissão.


O epidemiologista Pedro Hallal, co-
ordenador de estudos sobre Covid-19 na
Universidade Federal de Pelotas, tem um
número na ponta da língua: 3 de 4 mor-
tes eram evitáveis. Ou seja, 330 mil pes-
soas não teriam sido enterradas – esta-
mos com 440 mil falecidos. Hallal fez es-
timativas para um cenário em que o Bra-
sil aceita as primeiras ofertas de vacina da
Pfizer, em agosto de 2020. Essas propos-
tas previam 4,5 milhões de doses a mais
até o fim de junho de 2021, na compara-
ção com a quantidade do contrato de mar-
ço do governo com o laboratório, uma das
informações dadas à CPI pelo presidente
da Pfizer na América Latina, o boliviano
Carlos Murillo. Segundo Hallal, escapa-
riam de 5 mil a 25 mil pessoas.


Na avaliação de Aziz, está claro, a

partir dos depoimentos, que de início
o governo não quis comprar vacinas e
abraçou a imunidade de rebanho e a clo-
roquina. Para dimensionar quantas vi-
das teriam sido salvas com a vacinação
em massa, Carvalho quer a ajuda do epi-
demiologista matemático Eduardo Mas-
sad, da FGV e da USP.

Massad fez alguns cálculos logo após o
início da vacinação, em 17 de janeiro. Es-
timava que 130 mil morreriam este ano de
Covid, mas, se toda a população fosse imu-
nizada em fevereiro, 89 mil escapariam. O
SUS, segundo Massad, consegue vacinar
a população toda em um mês. Se o fizesse
em março, 57 mil se salvariam. Em abril,
33 mil. Em maio, 19 mil. Números obtidos
a partir de um modelo matemático defa-
sado, que não leva em conta, por exemplo,
a variante P1 surgida no Amazonas, mais
contagiante e letal, daí a decisão de Mas-
sad de atualizar os cálculos.


A falta de vacinação ainda custará mui-
tas vidas. A imunização vai a passo de tar-
taruga. Em números absolutos, tínhamos
aplicado 54 milhões de doses até a terça-
-feira 18, quinta maior quantidade – somos
a quinta maior população mundial, ressal-
te-se. Em termos relativos, porém, estáva-
mos em 13o poosição no ranking global. 

Entre os vacinados a cada
cem habitantes, estávamos em 61o lugar.

O ritmo de vacinação caiu por falta de
doses. Em abril, a média diária tinha sido
de 822 mil. Em maio, estava em 682 mil
até o dia 18. O governo reviu de maio pa-
ra setembro a previsão de imunizar todos
os 77 milhões de brasileiros prioritários. O
Instituto Butantan, fabricante da Corona-
Vac, parou a produção dia 14 e, segundo o
governador paulista, João Doria Jr., do PS-
DB, retomará dia 26. O insumo importado
da China, o chamado IFA, acabou. O em-
baixador chinês, Yang Wanming, se reuni-
ria na quinta-feira 20 com o governador do
Piauí, Wellington Dias, do PT, represen-
tante do consórcio de governadores, pa-
ra conversar sobre o tema. Teria a China
de o início. Em 5 de maio, o presidente não
citou a China, mas deixou claro que se re-
feria a ela ao apontar uma “guerra quími-
ca” por trás do surgimento do Coronaví-
rus e ainda que tal “guerra” favoreceu a
economia chinesa. Na época, Aziz co-
mentou que a China daria o troco. Não é
a primeira vez que há dificuldade na che-
gada de insumos chineses ao Butantan e
à Fiocruz. Em janeiro, o então presidente
da Câmara, Rodrigo Maia, foi a Wanming,
tratar do assunto, pois no governo federal
havia quem fizesse corpo mole.


Na última entrevista como ministro da
Saúde, em 15 de março, Pazuello afirmou
que tinha havido um “hiato” em janeiro
e fevereiro na fabricação de vacinas pe-
la Fiocruz, órgão federal. “Estávamos no
cronograma extremamente positivo e per-
demos aí de 30 a 40 dias nesse cronogra-
ma por um atraso dessa entrega do IFA. E
até hoje nós não compreendemos por que
atrasou. Não há um posicionamento do
governo chinês.” Não entendeu, general?


Além de Bolsonaro, Ernesto
Araújo, que deixou o governo
duas semanas após Pazuello,
colecionou manifestações
hostis à China quando chan-
celer. Apesar disso, afirmou à
CPI, na terça-feira 18, que não havia “hos-
tilidade” sua, que não fez “nenhuma de-
claração anti-chinesa” e que não há rela-
ção entre essas posições e o atraso na vin-
da de insumos asiáticos. Um dia depois,
Pazuello também chafurdava em menti-
ras na CPI, e uma delas foi sobre a China.
“Nunca o presidente da República man-
dou eu desfazer qualquer contrato, qual-
quer acordo com o Butantan.” Um debo-
che, a fim de proteger o ex-chefe, de quem,
aliás, disse jamais ter recebido ordem pa-
ra coisa alguma.


Pazuello anunciou a governadores,
em 20 de outubro de 2020, a compra da
CoronaVac. No dia seguinte, Bolsonaro

dizia em entrevista: “Já mandei cance-
lar. O presidente sou eu e não abro mão
da minha autoridade”. Pouco antes, es-
crevera no Twitter: “Não será compra-
da”. Foi esse episódio que levou Pazuello
a dizer, ao lado do presidente, em 22 de
outubro: “É simples assim: um manda, o
outro obedece”. Na CPI, ignorou a decla-
ração do presidente em entrevista e falou
só da tuitada presidencial: “Uma posta-
gem na internet não é uma ordem”, é uma
posição de “agente político”.


O “aconselhamento paralelo” – expres-
são usada por Mandetta – recebido por
Bolsonaro na pandemia parece ter servi-
do aos propósitos do “agente político”. En-
tre os próximos passos da CPI, está iden-
tificar quem fazia parte desse grupo, cha-
mado por Renan Calheiros de “Ministério
da Morte”. Já foram mencionados na co-
missão alguns nomes que integrariam o
time, e o destaque é para um dos filhos de
Bolsonaro, o vereador Carlos.


Mandetta contou ter partici-
pado de reuniões governa-
mentais sobre Coronaví-
rus, das quais Carlos par-
ticipava e fazia anotações.
O rapaz apareceu em outra
quando Mandetta havia deixado o cargo.
Foi em 7 de dezembro de 2020, uma con-
versa no Palácio do Planalto do então che-
fe da Comunicação Social da Presidência,
Fábio Wajngarten, com duas diretoras da
Pfizer, Shirley Meschke (Jurídico) e Eliza
Samartini (Relações Governamentais),
conforme depoimento de Carlos Murillo.
Wajngarten havia topado fazer lobby no
governo pela vacina da empresa ao saber
que ninguém, Bolsonaro incluído, havia
respondido, dois meses depois, uma car-
ta de 12 de setembro.


Por que Carlos se metia nesse assun-
to? É o que Humberto Costa e Alessandro
Vieira, proponentes da convocação dele,
querem saber. Não é difícil imaginar a ra-
zão. Bolsonaro decidiu desde o início po-
litizar a pandemia. Para fidelizar apoia-
dores radicais, atacava a China, Doria,
vacinas, OMS. Como afirmou um dia após
Mandetta depor, Carlos é seu “marque-
teiro”. Tradução: seu termômetro quan-
to ao humor no bolsonarismo. Ainda não
há, porém, consenso no G7, o bloco que dá
as cartas na CPI, para botar o filho do pre-
sidente no banco de depoentes. Aziz, por
exemplo, por ora, é contra.


Outro do “Ministério da Morte” na
mira é o deputado Osmar Terra, do MDB
gaúcho, igualmente mencionado por
Mandetta. Vieira e Carvalho querem con-
vocá-lo. Apesar de médico, Terra sempre
fez prognósticos que minimizavam a gra-
vidade do Coronavírus e mostrava-se a
favor da imunidade de rebanho. Em 7 de
abril de 2020, com menos de um mês de
pandemia, disse que morreriam 950 bra-
sileiros por ano. Recorde-se: terminamos
2020 com 195 mil cadáveres.


Seria o conselho paralelo capitanea-
do pelo bilionário curitibano Carlos Wi-
zard? É a desconfiança de Calheiros e
Vieira. Em 2 de julho de 2020, Wizard
despontou na TV Brasil, do governo, ao
lado da imunologista Nise Yamaguchi,
grande cloroquinista. Ali, disse que ha-
via passado cerca “de um mês em Brasí-
lia, juntamente com o (então) ministro
Pazuello, atuando como conselheiro do
Ministério da Saúde” e que tivera então
“a oportunidade de conhecer autoridades
médicas” que “participam desse conse-
lho científico independente”. Disse ainda
que “nós criamos esse conselho científico
independente para conscientizar a popu-
lação, a comunidade médica, os gestores
públicos que a Covid-19 tem tratamento
sim, quando atendido logo”. Em suma, um
bando de cloroquinistas. À CPI, Pazuello
admitiu ter se reunido com o grupo uma
vez, só uma, a pedido de Wizard.


“Ser negacionista ou idiota não é crime,
mas tomar decisões administrativas com
base em negacionismo e idiotia é crime de

responsabilidade, no mínimo”, diz Viei-
ra, proponente da convocação de Wizard.
Bolsonarista da gema, o bilionário orga-
nizou, ao lado do colega Luciano Hang, a
tentativa de arrancar, em Brasília, a per-
missão para empresários comprarem va-
cinas por conta própria e as aplicarem nos
funcionários. A causa teve aval presiden-
cial, foi aprovada pelos deputados, mas
não no Senado – por enquanto. Teria Wi-
zard financiado o “Ministério da Morte”?
É o que Vieira quer averiguar, ao propor
a quebra dos sigilos bancário, fiscal e co-
municacional do bilionário desde março
de 2020, início da pandemia.


Maçom, Wizard é amigo de Pazuello.
Conheceu-o em 2018, ambos em Roraima
em razão da Operação Acolhida, de recep-
ção de refugiados venezuelanos. Quan-
do o general assumiu a Saúde, em maio
de 2020, convidou-o para ser secretário
de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insu-
mos. A nomeação não se confirmou, se-
gundo Pazuello, devido aos negócios de
Wizard. O cargo prometido ao empresá-
rio é o principal representante do Minis-
tério da Saúde na Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias ao SUS. Pa-
ra ser comprado pela Saúde, um medica-
mento precisa de aval da Conitec. À CPI,
Mandetta disse que o colegiado jamais
aprovaria a aquisição de cloroquina para
Covid, por motivos científicos. Na quinta-
-feira 20, a comissão decidiria sobre o re-
médio, e seu ponto de partida era um do-
cumento contrário à prescrição.


Naquele dia, iria à CPI Mayra Pinhei-
ro, secretária de Gestão do Trabalho e
da Educação do Ministério da Saúde. O
depoimento ficou para a terça-feira 25,
em razão do prosseguimento do teste-
munho de Pazuello. Mayra é conheci-
da como “capitã” cloroquina. Ela re-
quereu ao Supremo habeas corpus pa-
ra silenciar na CPI, mas não conseguiu.
Um documento obtido por CartaCapital
mostra o cloroquinismo dela na crise
amazônica. Em 11 de janeiro, Mayra pe-
diu à Secretaria de Saúde de Manaus pa-
ra ir a postos do SUS pregar o “tratamen-
to precoce”. Para Aziz, ex-governador do
Amazonas, o estado foi “cobaia” federal
na cloroquina. O atual vice-governador,
Carlos Almeida Filho, disse à Folha em
5 de maio que o Amazonas foi “laborató-
rio” da imunidade de rebanho, por deci-
são do governador bolsonarista Wilson
Lima, do PSC, com quem rompeu.


Almeida deverá ser chamado a
depor à CPI. A comissão tam-
bém logo ouvirá médicos e
acadêmicos sobre cloroquina,
entre outros assuntos, com a
presença, inclusive, de profis-
sionais bolsonaristas favoráveis ao dito
tratamento precoce. “Hitler também ti-
nha seus médicos, como o Mengele”, diz
Humberto Costa. Para Rogério Carva-
lho, apostar na cloroquina no início da
pandemia, em março de 2020, até pode-
ria ser um caminho, pois ainda não havia
posição internacional a respeito. Em ju-
nho de 2020, porém, os Estados Unidos
e a OMS cancelaram testes e desistiram
desse caminho. E por aqui?


Em 5 de maio, já com a CPI em curso,
Bolsonaro chamou de “canalha” quem é
contra o tratamento precoce, sinônimo de
cloroquina. Em uma transmissão na web
dia 13, criticou o uso de máscaras, que se-
riam uma “ficção” como proteção à con-
taminação por Coronavírus. A apoiado-
res na porta do Palácio da Alvorada, dia
17, disse que eram “idiotas” aqueles que
ainda ficam em casa. “A CPI já tem ele-
mentos suficientes para provar crime
contra a saúde pública”, diz Carvalho. “E
o que temos visto são crimes em flagran-
te, continuados. O presidente continua fa-
zendo propaganda contra todas as medi-
das de combate à pandemia. A Procurado-
ria- Geral da República pode até não fazer
nada com o relatório final, mas esses cri-
mes vão prescrever em cinco anos e ou-
tros procuradores poderão agir.” •

CARTA CAPITAL








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