ESCÁRNIO Bolsonaro ignorou por meses as ofertas de vacinas,
mas deu aval ao torneio de futebol em tempo recorde
POR VICTOR CALCAGNO
Em agosto de 2020, a Pfizer
encaminhou ao Ministério
da Saúde três ofertas para
fornecimento de 70 milhões
de doses de vacina. Todas
elas previam entregas ainda no ano
passado, mas foram ignoradas pelo gover-
no. Em 12 de setembro, quando o CEO do
laboratório, Abert Bourla, encaminhou
carta ao presidente Jair Bolsonaro e seus
principais ministros, a indústria farma-
cêutica colecionava dez e-mails não
respondidos. Em depoimento à CPI da
Pandemia, o ex-secretário de Comunica-
ção da Presidência, Fábio Wajngarten,
confirmou que a missiva ficou sem res-
posta por outros dois meses. Apenas em
novembro a equipe de Jair Bolsonaro
começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano.
Aparentemente, o governo tinha – e
ainda tem – outras prioridades em meio
a uma pandemia que matou 460 mil bra-
sileiros. Para realizar uma competição
esportiva rejeitada por outros dois pa-
íses, a Conmebol não precisou de mais
que dois ou três telefonemas para obter
o aval presidencial. Na segunda-feira 31,
a entidade comunicou que o Brasil vai se-
diar a Copa América, com início previs-
to para 13 de junho. O anúncio foi feito
dois dias após dezenas de milhares de ci-
dadãos ocuparem as ruas das principais
capitais do País por mais vacinas e pelo
impeachment de Bolsonaro, “mais pe-
rigoso que o vírus”, como bradavam os
Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeonato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.
Originalmente planejada para ter jogos
divididos entre Argentina e Colômbia, a
Copa América foi descartada pelos gover-
nos de ambos os países, que alegaram ra-
zões diferentes. O governo colombiano pe-
diu que o torneio fosse adiado em decor-
rência dos violentos protestos que deixa-
ram ao menos 17 mortos desde as primei-
ras mobilizações contra as reformas do
presidente Iván Duque. Diante do pedido,
a Conmebol preferiu excluir de vez o país-
-sede e realizar todos os jogos em estádios
argentinos. No domingo 30, o governo de
Alberto Fernández anunciou, porém, que
não mais levaria a ideia adiante. O moti-
vo alegado é o aumento recente no núme-
ro de infecções e mortes por Covid entre
os argentinos – o país tem 80 mil óbitos
acumulados desde o início da pandemia.
começou a negociar com a Pfizer, e o acor-
do só foi celebrado em março deste ano.
Sem ter a quem recorrer e com ape-
nas duas semanas para organizar um
campeonato com patrocinadores e con-
tratos estabelecidos, a entidade pergun-
tou à CBF, na manhã da segunda-feira 31,
se o Brasil não poderia receber o torneio.
O presidente da confederação brasileira,
Rogério Caboclo, falou diretamente com
Bolsonaro. Com relação amistosa, a dupla
aproximou-se quando o ex-capitão defen-
deu a retomada das partidas de futebol no
ano passado, mesmo com a pandemia fo-
ra de controle. Com a resposta positiva
em mãos, a Conmebol celebrou a decisão
“O Brasil receberá a Copa América 2021!
A Conmebol agradece ao presidente Jair
Bolsonaro e sua equipe”.
A reação veio de imediato. O governo
de Pernambuco, que administra uma das
arenas que abrigaram partidas da Copa de
2014, foi enfático ao dizer em comunicado
que “o atual cenário epidemiológico não
permite a realização de eventos do porte
da Copa América”. Da mesma forma, o go-
verno do Rio Grande do Norte, onde está a
Arena das Dunas, disse que o estado não
tem “segurança epidemiológica” para os
jogos. No Rio Grande do Sul, a opção de
sediar a competição foi considerada “ino-
portuna e inconsequente” pelo governa-
dor Eduardo Leite, do PSDB. Parlamen-
tares da CPI da Pandemia também criti-
caram a decisão. O relator Renan Calhei-
ros, do MDB, chamou o torneio de “cam-
peonato da morte”, e o vice-presidente da
comissão, Randolfe Rodrigues, da Rede,
classificou a iniciativa como “afronta às
mais de 450 mil vidas perdidas”.
Argentina e Colômbia
rejeitaram o certame
que o ex-capitão
topa abrigar
Diante das exaltadas reações, o mi-
nistro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ra-
mos, foi rápido em afirmar, ainda na
noite da segunda-feira 31, que a realiza-
ção do evento não estava completamen-
te garantida. Destacou, ainda, que os jo-
gos não teriam torcidas e todas as dele-
gações deveriam ser vacinadas. Segun-
do a pasta, as negociações ainda estavam
em estágio inicial e a CBF nem havia en-
viado um pedido oficial para o governo,
solicitando a execução do torneio. Mas,
no dia seguinte, Bolsonaro bateu o mar-
telo e confirmou que quatro estados to-
param receber os jogos: Distrito Fede-
ral, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás
Com dez seleções a desembarcar no
País, a realização da competição também
preocupa pela adoção de protocolos sa-
nitários que mantenham esses profissio-
nais seguros em seus deslocamentos, ao
mesmo tempo que protejam os cidadãos
brasileiros. Com anúncio a toque de cai-
xa, não houve detalhamento de como es-
se planejamento sanitário será feito, ou
mesmo se seria realizado. O presiden-
te da Comissão de Esportes da Câmara
dos Deputados, Felipe Carreras, protoco-
lou requerimento para que o ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, seja convoca-
do para prestar esclarecimentos sobre as
medidas sanitárias para o evento.
“É a medalha de ouro do desprezo à vi-
da que tem Bolsonaro, é mais um capítu-
lo no campeonato genocida do governo, a
continuação dessa gincana negacionista
em que vive o País”, afirma o deputado e
ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha,
do PT. Ainda na segunda-feira, o partido
apresentou ao ministro Ricardo Lewan-
dowski, do Supremo Tribunal Federal, pe-
dido para suspender a realização da Copa
América no Brasil, por meio de um aden-
do à Ação por Descumprimento de Precei-
to Fundamental (ADPF) das Va-
cinas contra a Covid. Segundo o
PT, a decisão de sediar o evento
foi “sem transparência”, “irres-
ponsável” e “põe em risco a saú-
de da população do País e das de-
legações estrangeiras”.
O documento ainda requer
a intimação de Bolsonaro e
dos ministros da Saúde, Ca-
sa Civil e Relações Exterio-
res, além do secretário nacio-
nal do Esporte, citados em co-
municado oficial da Conme-
bol. A mesma estratégia foi
adotada com os governado-
res, em ofícios que pedem pa-
ra os estados não receberem
o evento. O PSB também in-
gressou com um mandado de
segurança preventivo encaminhado ao
presidente do STF, Luiz Fux.
“Bolsonaro ignorou ofertas de deze-
nas de milhões de doses de vacinas en-
tre junho e novembro, mas aceitou a Co-
pa América em menos de 12 horas”, in-
digna-se Padilha. Segundo ele, a inten-
ção do governo ao aceitar a competição
é “a mesma desde o início da pandemia”:
deixar o vírus correr solto até que o País
alcance a suposta imunidade de rebanho.
Além disso, “a atitude defensiva” do Pla-
nalto viria para “provocar mais divisão”
no momento em que se vê acuado pela
CPI e pelas ruas. “A Argentina desistiu
do evento pela grave situação sanitária
e a Colômbia pela instabilidade política:
o Brasil reúne as duas coisas.”
No sábado 29, atos contra o presidente
foram registrados em mais de 200 cidades
brasileiras, incluindo grandes mobiliza-
ções nas 26 capitais e no Distrito Federal,
além de protestos no exterior. Apesar da
tímida cobertura da mídia nativa, os pro-
testos tiveram ampla repercussão inter-
nacional. Além do Le Monde, mencionado
no iníciodo do texto, o britânico The Guar-
dian destacou que “dezenas de milhares”
foram às ruas para pedir o impeachment
de Bolsonaro, por sua “catastrófica res-
posta” ao vírus. O New York Times, por
sua vez, enfatizou que foram “os maiores
protestos desde o início da pandemia”. A
CNN Internacional, a rede árabe Al Jaze-
era, o jornal italiano Corriere Della Sera, o
espanhol La Vanguardia, a revista alemã
Der Spiegel e várias outras publicações es-
trangeiras deram destaque aos atos.
No Recife, a repressão policial aos
manifestantes foi responsável por ferir
permanentemente duas pessoas sem re-
lação com os protestos. Daniel Campelo e
Jonas Correia foram atingidos nos olhos
por balas de borracha e perderam parte da
visão. A Polícia Militar de Pernambuco se-
rá alvo de dois inquéritos, um para apon-
tar os responsáveis pela lesão corporal
gravíssima e outro para apurar a violen-
ta conduta dos agentes nos pro-
testos. Durante os atos, poli-
ciais também dispararam spray
de pimenta contra a vereadora
Liana Cirne, do PT, arrastaram
e prenderam o cantor Afroito e
atingiram Roberto Rocha, ad-
vogado e presidente da Comis-
são de Direito Parlamentar da
OAB de Pernambuco, com qua-
tro tiros de bala de borracha.
De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
Recife. Dois atingidos por balas
de borracha perderam a visão
De forma previsível, Bolsona-
ro minimizou os atos. Segundo
o ex-capitão, eles tiveram “baixa
adesão” porque a Polícia Fede-
ral tem feito grandes operações
para conter o tráfico de drogas.
“Faltou erva”, disse para apoia-
dores na porta do Palácio da Al-
vorada em tom jocoso. •
CARTA CAPITAL
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