No segundo dia de
seu mandato, Jair
Bolsonaro deu
uma enigmática
declaração na ce-
rimônia de pos-
se do ministro da
Defesa, general Fernando Azevedo e Sil-
va. Dirigindo-se a outro oficial presente
na solenidade, prometeu levar um segre-
do para o túmulo: “General Villas Bôas,
o que já conversamos ficará entre nós. O
senhor é um dos responsáveis por eu es-
tar aqui”. O comentário instigou a curio-
sidade de todos. Qual teria sido a confi-
dência do então comandante do Exérci-
to para o presidente? E, principalmente,
por que o militar seria um dos responsá-
veis pela chegada do capitão reformado
ao Planalto? O mistério persiste até ho-
je, a despeito dos esclarecimentos cobra-
dos, à época, pela deputada Gleisi Hoff-
mann, presidente do PT.
Uma contribuição era de conheci-
mento público, não faria sentido guar-
dar segredo. Em abril de 2018, às véspe-
ras do julgamento de um habeas corpus
que poderia libertar Lula, líder nas pes-
quisas de intenção de voto, Villas Bôas fez
uma ameaça velada ao Supremo Tribunal
Federal. “Asseguro à Nação que o Exérci-
to Brasileiro julga compartilhar o anseio
de todos os cidadãos de bem de repúdio
à impunidade e de respeito à Constitui-
ção, à paz social e à Democracia, bem co-
mo se mantém atento às suas missões ins-
titucionais”, escreveu no Twitter. Impos-
sível saber se algum ministro se sentiu in-
timidado a ponto de mudar o próprio voto,
mas um fato não pode ser negado: a deci-
são da Corte satisfez o desejo do general.
Derrotado pelo placar de 6 votos a 5, o ex-
-presidente permaneceu preso e impedi-
do de disputar as eleições.
Passados quase tres anos, o ex-coman-
dante confessa, no livro-entrevista Gene-
ral Villas Bôas: Conversa com o Coman-
dante, recém-lançado pela Editora FGV,
que o controverso tuíte não apenas visa-
va influenciar o Supremo, como foi discu-
tido com integrantes da cúpula das For-
ças Armadas. “O texto teve um ‘rascunho’
elaborado pelo meu staff e pelos integran-
tes do Alto-Comando residentes em Bra-
sília. No dia seguinte da expedição, reme-
temos para os comandantes militares de
área. Recebidas as sugestões, elaboramos
o texto final, o que nos tomou todo expe-
diente, até por volta das 20 horas”, relata
Villas Bôas, acrescentando que a mensa-
gem era apenas “um alerta”.
Villas Bôas parece não compreender
bem o significado das palavras, comen-
ta Celso Amorim, ex-chanceler de Lula
e ministro da Defesa de Dilma Rousseff.
“Quando alguém faz um alerta com a ar-
ma na mão, você tem escolha? Para mim
está claro que foi ameaça, e ela surtiu
efeito”, afirma o diplomata. “Essa deci-
são não mudou apenas o destino do ex-
-presidente, mas também o do Brasil.
Naquele momento, Lula liderava as pes-
quisas de intenção de voto e tinha gran-
des chances de se eleger. Isso abriu ca-
minho para a ascensão da extrema-di-
reita”
O livro de Villas Bôas acirrou os âni-
mos em Brasília. Com três anos de atra-
so, fato lembrado pelo próprio general nas
redes sociais, o ministro Edson Fachin
disse ser “intolerável e inaceitável” qual-
quer tentativa de pressionar o Judiciário.
Relator do caso, ele votou contra o habeas
corpus de Lula e, talvez, queira demons-
trar que não foi por medo da reação mili-
tar. Gilmar Mendes engrossou o coro: “Di-
tadura nunca mais”. Foi o que bastou pa-
ra o deputado bolsonarista Daniel Silveira
gravar um vídeo com insultos e ameaças
aos juízes da Corte (leia mais à pág. 32).
Chamado de “Xandão do PCC” pelo parla-
mentar, o ministro Alexandre de Moraes
decretou a prisão do valentão e caberá à
Câmara dos Deputados decidir se revoga
ou mantém a decisão judicial. A eventual
intervenção do Planalto em prol do alia-
do só abalaria ainda mais as tensas rela-
ções do governo com o Supremo.
O empenho da cúpula das
Forças Armadas em in-
viabilizar a candidatu-
ra de Lula foi regiamen-
te recompensado. Dos
23 ministros de Bolsonaro, 11 têm his-
tórico militar. A banda fardada nunca
teve tanto prestígio, desde o fim da dita-
dura. Segundo um levantamento divul-
gado pelo Tribunal de Contas da União
em julho de 2020, mais de 6,1 mil mi-
litares da ativa e da reserva ocupavam
cargos civis no governo federal, o dobro
do contingente antes de o ex-capitão
assumir a Presidência. Nem mesmo a
Venezuela de Nicolás Maduro, sempre
criticada, tem gestão tão militarizada.
Na verdade, os números do TCU estão
subestimados. Na mesma época, o site
Poder 360 divulgou outro levantamen-
to, obtido por meio da Lei de Acesso à In-
formação, a revelar a existência de 8.450
oficiais e praças da reserva entrincheira-
dos em ministérios, comandos e tribunais
militares. Nessa conta foram incluídos os
inativos contratados em uma nova moda-
lidade, batizada de “tarefa por tempo cer-
to”, que pode durar até dez anos. Soma-
dos aos 2.930 militares da ativa, o núme-
ro passaria de 11,3 mil.
Tantos militares no car-
go desfizeram uma falá-
cia alimentada pelos ofi-
ciais das Forças Armadas
e de parte da mídia: a falsa
imagem de competência e probidade atri-
buída aos fardados. Nestes dois anos de
governo, afloram denúncias de mau uso
do dinheiro público, sinecuras diversas,
benefícios a parentes e despreparo puro
e simples. Neste último item, o caso mais
vistoso é o do general Eduardo Pazuello,
ministro da Saúde, investigado por negli-
gência no combate à pandemia.
Além do loteamento de cargos no go-
verno, as Forças Armadas receberam
numerosas benesses de Bolsonaro. Em
2019, quando a Reforma da Previdência
obrigou os brasileiros a trabalhar por
mais tempo para ter direito à aposenta-
doria, a turma fardada conseguiu barga-
nhar uma reforma mais branda, atrelada
a um generoso plano de reestruturação
de carreiras que aumentou o salário dos
militares na ativa em até 43%. Resultado:
a economia com os vencimentos de pra-
ças e oficiais foi reduzida a 10,5 bilhões
de reais em dez anos, o equivalente a 1,3%
dos 800 bilhões de reais que o governo
tirou dos aposentados em geral. A maior
parte dos privilégios permaneceu into-
cada, como a aposentadoria com salário
integral e sem idade mínima.
O projeto tampouco pôs fim à farra das
pensões vitalícias para filhas de milita-
res. A benesse foi extinta em 2000 para
novos servidores, mas quem antes esta-
va nas Forças Armadas pode pagar um
adicional de 1,5% na contribuição pre-
videnciária para manter o privilégio
.
“Muitas beneficiárias acabaram se ca-
sando e, após a morte do marido, acu-
mularam pensões, uma por ser viúva e
outra por ser filha de militar falecido. E
o pior é que o STF tem autorizado a con-
cessão desse duplo benefício”, comenta
o deputado Paulo Pimenta, do PT. “Com
Bolsonaro, as benesses foram ampliadas.
Ele dobrou, por exemplo, o valor da ajuda
de custo paga aos militares transferidos
para a reserva. Agora, quem se aposenta
recebe o equivalente a oito salários, isso
não existe em nenhum lugar do mundo.”
Em junho de 2020, o ex-capitão tam-
bém reajustou em 73% a bonificação sa-
larial paga aos militares que fazem cur-
sos ao longo da carreira. O penduricalho,
chamado de “adicional de habilitação”,
custará aos cofres públicos mais de 26,5
bilhões de reais em cinco anos. Para su-
portar tantos privilégios, Bolsonaro tur-
binou o orçamento do Ministério da De-
fesa. Em 2021, pretende gastar 110 bilhões
de reais. É quase o mesmo valor que o go-
verno se dispôs a gastar com a pasta da
Educação ao longo deste ano, 114 bilhões.
Nem mesmo a pandemia reduziu o ape-
tite da turma. No fim de janeiro, o site Me-
trópoles causou alvoroço ao revelar as des-
pesas do governo com alimentos e bebi-
das, que teriam totalizado 1,8 bilhão de re-
ais no ano passado, segundo um levanta-
mento feito pelo portal no painel de com-
pras do Ministério da Economia. Entre as
mais controversas, figuravam os 15,6 mi-
lhões de reais gastos com leite condensado
e os 2,2 milhões usados na compra de chi-
cletes. A Defesa concentrava a maior parte
dos gastos, ao menos 632 milhões de reais.
À época, a pasta disse que os valores
efetivamente gastos com esses itens eram
muito inferiores à cifra divulgada na re-
portagem e lembrou que o governo preci-
sa alimentar mais de 370 mil servidores
das Forças Armadas, além de apresen-
tar justificativas plausíveis para o con-
sumo dos itens mais polêmicos. O leite
condensado faz parte da dieta dos mili-
tares, devido ao seu elevado valor energé-
tico. A goma de mascar, por sua vez, auxi-
lia na higiene bucal, quando a tropa está
impossibilitada de fazer a escovação ade-
quada. Deputados do PSB decidiram, po-
rém, investigar melhor esse carrinho de
compras. Descobriram que a Defesa com-
prou nada menos que 700 toneladas de
picanha, 140 toneladas de lombo de ba-
calhau e 80 mil cervejas em 2020
.
Em denúncia encaminhada para a
Procuradoria-Geral da República, os
parlamentares apontaram, ainda, nu-
merosos indícios de superfaturamento.
Em uma das compras, o quilo da picanha
saiu por 118 reais. Em outra, o quilo do
bacalhau custou 150 reais. As cervejas,
quase sempre das marcas mais caras dis-
poníveis no mercado, chegavam a apre-
sentar sobrepreço de até 48,6%. Se o go-
verno gasta apenas 9 reais por dia com a
alimentação de cada militar, como diz o
Ministério da Defesa, por que desperdi-
çar recursos em itens supérfluos? Aliás,
como explicar gastos tão elevados com
carnes nobres caras se “o País está que-
brado”, como repete Bolsonaro, ao esqui-
var-se das cobranças pela renovação do
auxílio emergencial?
Pazuello é investigado por omissão
na crise do oxigênio em Manaus e por
propagandear a cloroquina, produzida com
sobrepreço no Laboratório do Exército
nos estados e municípios. Em algumas ci-
dades, como Blumenau, em Santa Catari-
na, o estoque disponível daria para aten-
der a demanda por cem anos, denuncia a
mídia local. Não por acaso, o Tribunal de
Contas da União deu um prazo de 15 dias
para o Ministério da Saúde, o Exército e a
Fiocruz justificarem o esforço de produ-
ção e distribuição da droga.
As Forças Armadas não desperdiçam
recursos apenas para satisfazer o próprio
paladar. Em dezembro, a Aeronáutica as-
sinou um contrato de 33,8 milhões de dó-
lares, mais de 150 milhões de reais, com
uma empresa finlandesa para comprar
um satélite de monitoramento da Ama-
zônia. Especialistas dizem que a aquisi-
ção é inútil, pois o País dispõe de equipa-
mentos suficientes para supervisionar a
região. O contrato foi classificado como si-
giloso e o comando da Aeronáutica recu-
sou-se a prestar esclarecimentos.
Em setembro, a CNN Brasil revelou que
o Laboratório do Exército pagou quase o
triplo do valor para adquirir insumos pa-
ra a fabricação de cloroquina. Incontáveis
pesquisas atestam que o medicamento an-
timalárico não tem eficácia contra o Coro-
navírus, além de causar arritmia cardía-
ca e outros efeitos colaterais. Ainda assim,
Bolsonaro fez uma gigantesca encomenda
da droga para oferecer nos hospitais como
“tratamento precoce” da Covid-19.
Resultado: o remédio está encalhado
nos estados e municípios. Em algumas ci-
dades, como Blumenau, em Santa Catari-
na, o estoque disponível daria para aten-
der a demanda por cem anos, denuncia a
mídia local. Não por acaso, o Tribunal de
Contas da União deu um prazo de 15 dias
para o Ministério da Saúde, o Exército e a
Fiocruz justificarem o esforço de produ-
ção e distribuição da droga.
Na verdade, Bolsonaro e
Pazuello estão na mira
do Ministério Público
Federal. O procurador-
-geral da República,
Augusto Aras, abriu uma investigação pre-
liminar para apurar a eventual omissão da
dupla na crise do oxigênio em Manaus, que
resultou na morte de dezenas de pacientes
por asfixia. O Ministério da Saúde ignorou
uma série de alertas sobre a falta do insu-
mo antes do colapso nos hospitais. A pro-
dução e distribuição da cloroquina tam-
bém fazem parte do escopo das diligên-
cias. Difícil saber se a apuração vai, de fato,
deslanchar. Nomeado por Bolsonaro e de
olho em uma vaga no STF, Aras sempre se
mostrou leal ao governo, fazendo jus ao tí-
tulo de “engavetador-geral da República”,
jocoso apelido que, nos anos FHC, perten-
cia a Geraldo Brindeiro.
General da ativa do Exército, Pazuello
é motivo de constrangimento para as For-
ças Armadas. Para agradar ao chefe, ele
chegou a criar um aplicativo que reco-
mendava “tratamento precoce” para a Co-
vid com drogas sem eficácia comprovada,
o popular “Kit Cloroquina”. À frente do
Ministério da Saúde, mostrou-se incapaz
até mesmo de organizar uma licitação pa-
ra a aquisição de agulhas e seringas. Com
meses de atraso, lançou um edital às pres-
sas no fim de 2020, e só conseguiu com-
prar 3% dos 331 milhões de unidades pre-
tendidas. Apresentado como “especialista
em logística”, apostou todas as fichas em
uma única vacina e, depois, teve de correr
para celebrar contratos com outros labo-
ratórios. Na desesperada tentativa de si-
lenciar as críticas pelo atraso na campa-
nha de imunização, chegou a fretar um
avião para buscar vacinas na Índia, sem
antes consultar a disponibilidade do ma-
terial. A aeronave não chegou a decolar do
Recife. As autoridades indianas só despa-
charam as doses uma semana depois.
O resultado não poderia ser outro. Na
terça-feira 16, o Brasil superou a mar-
ca de 240 mil óbitos por Covid-19. Man-
tém a vice-liderança no ranking mundial,
atrás apenas dos EUA. Além disso, o País
Our World in Data, mantido por pesqui-
sadores de Oxford. Com esse porcentual,
o Brasil nem sequer figurava entre as 50
nações que mais avançaram na imuniza-
ção da própria população.
Mourão teve de abortar a operação na Amazônia
está prestes a completar um mês com mé-
dia superior a mil mortes por dia. Não há
o mais pálido sinal de arrefecimento da
pandemia. Para piorar, a campanha de
vacinação avança a passos de tartaru-
ga, fato que levou a Confederação Na-
cional de Municípios a pedir a cabeça do
ministro Pazuello. Até a quarta-feira 17,
apenas 2,6% dos brasileiros receberam a
primeira dose da vacina, segundo o site
O fim precoce
precoce da operação
Verde Brasil 2, destina-
da a combater as quei-
madas na Amazônia,
é outro vexame para o
Exército. Repetidas vezes, o vice-pre-
sidente Hamilton Mourão prometeu
manter os militares na região até o fim
de 2022. Depois de consumir ao menos
410 milhões de reais, valor muito supe-
rior ao orçamento do Ibama para a fisca-
lização ambiental em todo o País (cerca
de 70 milhões de reais), o general anun-
ciou a retirada da tropa até 31 de abril.
Segundo ele, o governo pretende focar
nos 11 municípios que mais desmatam
A lista das cidades foi atribuída a “fon-
tes de inteligência”. Na verdade, a ultras-
secreta relação está disponível no site do
Inpe a qualquer cidadão há mais de 13
anos, quando Lula assinou um decreto
regulamentando a estratégia de comba-
te ao desmatamento focada em municí-
pios prioritários.
A despeito dos gastos milionários, os
resultados da Verde Brasil 2 foram pífios.
Nos oito primeiros meses de atuação, de
maio de 2020 a janeiro de 2021, o número
de multas aplicadas pelo Ibama na Ama-
zônia por infrações contra a flora caiu
36,7% em relação aos mesmos meses de
2019/2020, revela um levantamento fei-
to pelo Observatório do Clima. Na compa-
ração com 2015/2016, a queda foi de 60%.
Além disso, a taxa oficial de desmatamen-
to, medida pelo Inpe, aumentou 9,5% em
2020 em relação a 2019, num período par-
cialmente coberto pela operação militar.
Mas o fator determinante para a reti-
rada da tropa parece ser outro, bastante
mesquinho. Como não pode demitir o seu
vice, com quem teve uma série de atritos
públicos, Bolsonaro tratou de esvaziar o
seu poder. “O que nós podemos falar pa-
ra aqueles que nos criticam é o seguinte,
olha: nós não temos condições, por ques-
tões econômicas, de atender nessa área.
Venha nos ajudar”, desconversou o presi-
dente uma semana antes de a operação ser
abortada. Os militares devem deixar a flo-
resta exatamente um mês antes do período
de seca na Amazônia, quando as queima-
das costumam se alastrar pelo bioma.
Uma pergunta crucial para o futuro do
País se impõe: os militares abrirão mão
das sinecuras e voltarão pacificamente
para os quartéis se Bolsonaro perder a
eleição em 2022? •
RODRIGO MARTINS
Carta Capital
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