"Quem gosta de Covas é de-
funto. O povo gosta é do
Boulos”, repete, aos bra-
dos, um histriônico apoia-
dor do candidato do PSOL
à prefeitura de São Paulo,
em frente a uma padaria
na Estrada do M’Boi Mi-
rim, via estrutural de 16
quilômetros de extensão
que liga o Jardim Ângela ao Jardim São
Luís, na divisa com o município de Ita-
pecerica da Serra. Na chuvosa manhã da
terça-feira 17, dezenas de militantes es-
premem-se na calçada à espera do Celti-
nha 2010 prata, o “veículo oficial do novo
prefeito”, como define um risonho profes-
sor presente no ato, sem deixar de sacudir
a bandeira da campanha por um segundo.
A algazarra só é interrompida após o
anfitrião da festa desembarcar do carro
popular e tomar o microfone. “Não dá pa-
ra aceitar que a cidade mais rica do Brasil
tenha gente, como eu vi agora no trajeto
para cá, revirando lixo à procura de co-
mida”, discursa. “Isso vai mudar. A par-
tir de janeiro, vai ter renda solidária para
quem precisa, vai ter frentes de trabalho
nas subprefeituras. Vamos inverter prio-
ridades. A periferia vai ser ouvida e es-
tará no centro do orçamento da cidade.”
Após conquistar mais de 1 milhão de
votos no domingo 15, Guilherme Bou-
los, de 38 anos, fazia o seu primeiro ato
de campanha nas ruas do segundo turno.
A escolha do local não foi aleatória. Em
uma das regiões mais populosas da capital
paulista, ele prometeu duplicar a avenida
e instalar um corredor de ônibus exclusi-
vo, de ponta a ponta. “O custo é de 450 mi-
lhões de reais, existe projeto aprovado, as-
sim como tem projeto aprovado de esten-
der o metrô do Capão Redondo para o Jar-
dim Ângela, mas o PSDB nunca tirou do
papel”, afirma. “Para fazer isso, basta re-
ver as prioridades. A prefeitura gastou 100
milhões de reais numa reforma desneces-
sária no Vale do Anhangabaú, está gastan-
do outros 250 milhões de reais para reme-
xer em calçadas do Centro. Por que não
investiu esse dinheiro na M’Boi Mirim?
Aqui, passa gente do Fundão, do Jardim
Aracati, do Vera Cruz, do Horizonte Azul,
do Capela, um pessoal que demora até três
horas para chegar ao trabalho em ônibus
lotados. É desumano.”
Boulos aposta todas as fichas no voto
da periferia para virar o jogo em São Pau-
lo. Às vésperas do primeiro turno, o can-
didato despontava na segunda colocação,
mas aparecia tecnicamente empatado
com o ex-governador Márcio França, do
PSB, e o deputado federal Celso Russo-
manno, do Republicanos, partido nascido
das costelas da Igreja Universal do Reino
de Deus. Com apenas 17 segundos no pro-
grama eleitoral gratuito, o coordenador
do Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto atropelou os rivais na reta final. Ter-
minou a disputa com 20,24%, bem à fren-
te de França (13,64%) e com quase o do-
bro do porcentual obtido por Russoman-
no (10,5%), que liderava a corrida eleitoral
até Jair Bolsonaro, seu cabo eleitoral, “sa-
botar” a campanha. Além da constrange-
dora derrota imposta ao bolsonarismo,
Boulos conseguiu eleger seis vereadores
do PSOL, a terceira maior bancada da ci-
dade, atrás do PT e do PSDB.
]
“O resultado das urnas consagra Bou-
los como um grande líder do campo pro-
gressista”, avalia o cientista político Cláu-
dio Couto, professor da FGV de São Pau-
lo. “Nesse campo da esquerda, vejo um
entusiasmo com ele que talvez eu não
veja desde a primeira eleição do petista
Fernando Haddad. Mesmo não ganhan-
do a prefeitura, ele ganhou a eleição em
um certo sentido. Ele sai muito maior do
que entrou, assim como o PSOL.”
Nem por isso, Boulos se dá por satis-
feito com o desempenho obtido até aqui,
em uma pequena coligação com os nani-
cos PCB e UP, este último estreante nas
eleições. “Bruno Covas achou que iria
ganhar no primeiro turno, mas chegou
a 32%. Se a maioria quisesse a continui-
dade do projeto tucano, ele não teria me-
nos de um terço dos votos válidos na cida-
de”, afirma. Virar o jogo em São Paulo se-
rá, porém, uma tarefa complicada. Com
o apoio das máquinas municipal e esta-
dual, o candidato do PSDB venceu com
uma vantagem de mais de 673 mil votos,
liderando em todas as 58 zonas eleitorais
da cidade. Os melhores resultados foram
nos abastados bairros do Jardim Paulis-
ta, com 44,52% dos votos, e Indianópolis,
com 44,05%. O tucano também teve bom
desempenho em áreas periféricas, como
Capela do Socorro (33,15%), Cidade Ade-
mar (33,28%) e Rio Pequeno (33,54%).
Uma pesquisa Datafolha do fim
de outubro apontou, ainda, que
46% dos paulistanos conside-
ram a gestão do prefeito boa ou
ótima durante a pandemia do
coronavírus, ao passo que 18%
a classificaram como ruim ou péssima.
Claro que o tucano tem as suas fragilida-
des. Sem grandes realizações para apre-
sentar, Covas tenta a todo custo esconder
o padrinho João Doria, cuja gestão é con-
siderada ruim ou péssima por 49% dos
moradores da capital paulista. Não por
acaso, uma das estratégias da campanha
de Boulos é lembrar, sempre que possível,
que Covas só se tornou prefeito porque era
vice de Doria, e este abandonou a cidade
para disputar o governo estadual.
Uma conjunção de outros fatores ali-
menta as esperanças do campo progres-
sista. As sondagens eleitorais indicam
uma diferença menor que a projetada
antes de os paulistanos comparecerem
às urnas. De acordo com uma pesquisa
divulgada pelo Ibope na quarta-feira 18,
Covas iniciou o segundo turno com 58%
dos votos válidos, contra 42% de Boulos.
Além disso, 21% dos entrevistados res-
ponderam que ainda podem mudar o vo-
to. Ou seja, virar o jogo pode ser difícil,
mas não impossível.
Não por acaso, a tão sonhada frente
de esquerda materializou-se no segun-
do turno das eleições paulistanas. PT,
PCdoB, PDT e Rede anunciaram apoio a
Boulos. Somente o PSB ainda não havia
tomado a sua decisão até o fechamento
desta edição. “Esse apoio será fundamen-
tal para avançar sobre redutos de outros
partidos e manter a mobilização nas ruas,
até para o Boulos ter tempo de se prepa-
rar para os debates e gravar os programas
do horário eleitoral”, explica Juliano Me-
deiros, presidente do PSOL. Do outro la-
do, Covas só conseguiu angariar a adesão
de Russomanno, que terminou a dispu-
ta com menos votos que os conquistados
por ele mesmo em eleições anteriores.
Orlando Silva, do PCdoB, foi
um dos primeiros a unir-se
a Boulos. Mesmo contraria-
do com as pressões de inte-
grantes do próprio partido
para desistir da candidatura
no primeiro turno em favor do candidato
do PSOL, o petista Jilmar Tatto deixou o
ressentimento de lado e subiu no palan-
que com a dupla. “Não existe qualquer
mágoa nem nada do tipo. Ao contrário,
vamos entrar com tudo na campanha”,
tratou de esclarecer. Lula, Ciro Gomes
e o governador do Maranhão, Flávio Di-
no, devem marcar presença no programa
eleitoral, agora com uma divisão igualitá-
ria de tempo. “No primeiro turno, tínha-
mos apenas 17 segundos. Agora, teremos
10 minutos de tevê, quase um debate por
dia. Isso vai fazer com que a nossa men-
sagem chegue a todos”, anima-se Boulos.
Extremamente bem-sucedida no pri-
meiro turno, a estratégia nas redes so-
ciais seguirá a mesma. “Foi graças às
ações que desenvolvemos nessa área
que Boulos passou a liderar entre os
eleitores de 16 a 24 anos”, comenta Jo-
sué Rocha, coordenador da campanha
do PSOL. Para dialogar com os jovens,
Boulos chegou a participar de um reality
show de um dia, transmitido ao vivo pelo
YouTube, disputou partidas de Among
Us, popular jogo da internet, enquanto
respondia perguntas de seus oponentes,
e marcou presença no podcast Flow, que
atrai milhares de aficionados por video-
-games, uma turma não muito politizada
e pouco identificada com a esquerda.
Agora, um de seus mais aguerridos ca-
bos eleitorais é o youtuber Felipe Neto,
que tem mais de 40 milhões de inscri-
tos em seu canal. O jovem influenciador
chegou a bater boca com Covas pelas re-
des sociais e divulgar uma lista com 28
razões para não votar no atual prefeito.
As ações nas redes sociais não se res-
tringiram, porém, a esse público. Vídeos
curtos, mas muito bem elaborados, sua-
vizaram a imagem que o líder dos sem-
-teto tinha no imaginário de eleitores de
todas as idades. Em um deles, os pais de
Boulos, ambos infectologistas e profes-
sores da Faculdade de Medicina da USP,
contam a trajetória do filho, desde que ele
decidiu, aos 16 anos, abandonar o Colé-
gio Equipe, um dos mais tradicionais de
São Paulo, hoje com mensalidades supe-
riores a 2 mil reais, para matricular-se em
uma escola pública do bairro. Um mês de-
pois, o adolescente havia fundado um grê-
mio e liderado um motim dos estudantes
contra a obrigatoriedade do uso de uni-
forme. Tirou cópias do Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente, que impede a proibi-
ção da entrada de alunos sem uniforme, e
seguiu com os colegas até a Delegacia Re-
gional de Ensino para protestar. Foi a sua
primeira mobilização vitoriosa.
Da escola pública, Boulos passou di-
reto para o curso de Filosofia da USP.
Depois fez especialização em Psicolo-
gia Clínica e mestrado em Psiquiatria.
Na sua tese, dissertou sobre os efeitos
da participação em movimentos so-
ciais na redução dos sintomas da depres-
são. Àquela altura, havia participado de
programas de alfabetização de jovens e
adultos e estava engajado na luta por mo-
radia popular. Ainda com 19 anos, saiu
da casa dos pais, no bairro de Pinheiros,
para viver com os sem-teto em um acam-
pamento em Osasco. “Foi uma opção de-
le para sentir na pele a dificuldade que
aquelas pessoas estavam sentindo”, co-
menta o pai, Marcos Boulos.
Não se tratava de uma mera aventura.
O jovem Boulos dedicou a vida à luta por
moradia popular. Foi na ocupação Chi-
co Mendes, em Taboão da Serra, que ele
conheceu a sua esposa, Natalia Szerme-
ta, em 2005. Recém-casados, eles chega-
ram a morar próximo do córrego Piraju-
çara, que costuma transbordar sob chu-
va intensa. Depois, mudaram-se para o
Campo Limpo, onde os pais dela vivem.
Até hoje, o casal mora no mesmo bairro
periférico, com as filhas Sofia e Laura,
de 10 e 9 anos. Com a “sensibilidade so-
cial” adquirida em duas décadas de atua-
ção no movimento sem-teto, o candidato
do PSOL acredita ser possível conquis-
tar os votos dos moradores da periferia.
“Os tucanos estão habituados a tratá-los
como números, como estatísticas. Eu os
conheço pelo nome, são meus vizinhos,
meus companheiros de luta.”
Logo após a apuração dos votos no pri-
meiro turno, Covas fez um discurso que
entregou, logo de partida, uma das suas
estratégias na etapa decisiva: associar
Boulos ao radicalismo, de forma a insu-
flar o sentimento antipetista que preva-
leceu nas eleições de quatro anos atrás. No
debate promovido pela CNN Brasil, o tu-
cano voltou a insistir na tese. “O radicalis-
mo ideológico sabe criticar, mas não sabe
salvar vidas”, disse o candidato ainda no
primeiro bloco, ao falar sobre a pandemia
do novo coronavírus. “Ontem, fiquei até
assustado quando vi o seu discurso após
a apuração. Discurso cheio de raiva”, rea-
giu o adversário do PSOL. “Não sei. Talvez
porque você achou que a eleição estava ga-
nha, ficou preocupado com o crescimen-
to que nós tivemos, e agiu dessa forma.”
Em entrevista à Folha de S.Paulo,
Covas observou que o PSOL de
Boulos tomou o espaço antes
ocupado pelo PT, mas não se di-
ferencia muito dele. “É a mesma
raiz, a mesma linha, a mesma
matriz ideológica. Eles têm uma atuação
conjunta”, afirmou, sem perder a opor-
tunidade de expor a falta de experiência
administrativa do concorrente. O psolis-
ta rebate: “Tenho 20 anos de atuação no
movimento sem-teto, o que me deu uma
sensibilidade social que ele não tem. Além
disso, está ao meu lado Luiza Erundina,
que foi a melhor prefeita que esta cidade
teve. Com todas as dificuldades, ela criou
políticas públicas que geram frutos até ho-
je. E, obviamente, eu não vou governar so-
zinho, estarei com os especialistas que
ajudaram a construir o meu programa”.
A campanha do PSOL pretende dar
um destaque cada vez maior a esses
profissionais, para mostrar quem esta-
rá ao lado de Boulos na administração.
Na propaganda da tevê, o médico sanita-
rista Gastão Wagner e as urbanistas Ra-
quel Rolnik e Ermínia Maricato são pre-
senças quase certas. “No primeiro tur-
no, fomos alvo de fake news e de ataques
do Russomanno por 15 dias seguidos.
Ainda assim, continuamos crescendo e
até mesmo a taxa de rejeição diminuiu”,
observa Rocha, da coordenação da cam-
panha. Na avaliação da vice Erundina,
não é muito difícil expor a “falácia” por
trás do discurso de Covas. “Quando as-
sumi a prefeitura, eu também não tinha
experiência administrativa, mas tinha
uma equipe de altíssimo padrão. Paulo
Freire na Educação, Paul Singer no Pla-
nejamento, Eduardo Jorge na Saúde,
Marilena Chauí na Cultura, Lúcio Gre-
gori nos Transportes, Paulo Sandroni
na Economia. Enfim, tínhamos um mi-
nistério dos sonhos, que nenhum outro
governo brasileiro teve”, orgulha-se. “E
Boulos, mesmo sem ter o poder da cane-
ta, conseguiu viabilizar a construção de
23 mil unidades habitacionais, por meio
de sua luta no MTST.”
Perto de completar 86 anos de idade,
Erundina chegou a anunciar que não
disputaria mais cargos eletivos, mas
mudou de ideia com o convite para in-
tegrar a chapa de Boulos. Tornou-se uma
peça central na campanha. A bordo de
seu “Cata-Voto”, uma espécie de papa-
móvel, no qual a deputada se protege do
coronavírus por uma cúpula de acrílico,
ela percorreu numerosos bairros da pe-
riferia para conversar com os eleitores
e pedir votos. “Os sonhos não envelhe-
cem, ainda tenho muito a contribuir”,
diz a candidata, que também enfrentou
muito preconceito ao eleger-se prefeita
de São Paulo, em 1988. “Como eles não
têm muita coisa a dizer sobre o Boulos,
apelam para essas falácias. Dizem que
ele é radical, vai tomar a casa dos outros.
Na minha época, foi pior. Imagina, uma
mulher, nordestina e pobre, no comando
da cidade mais rica do País... Só faltou eu
ser negra para completar o combo da ex-
clusão. A reação foi feroz. Chegaram a
mandar cartas com fezes para a prefei-
tura, e não foi só uma vez, não.”
Em seu sexto mandato na Câmara dos
Deputados, Erundina não poupa elogios
ao jovem colega de chapa. “Boulos é uma
liderança que veio para ficar, e não ape-
nas em São Paulo. É uma liderança pa-
ra o País”, afiança. “Na escassez de qua-
dros políticos com uma visão mais global,
mais sistêmica, mais política no sentido
pleno do termo, ele é um desses. Não sei
se tem mais outro, não. E o melhor: Bou-
los não tem aquela arrogância dos líde-
res. É um modesto, simples, que convive
fraternalmente com todos. É um homem
do povo, empoderado pela sua formação
e pelo seu compromisso com o povo.”
Na avaliação da cientista políti-
ca Vera Chaia, professora da
PUC de São Paulo, Boulos de-
monstrou muita habilidade
para aglutinar, em torno de
si, as principais legendas do
campo progressista. “Mesmo que isso
não se traduza em uma vitória nas elei-
ções deste ano, fica o legado dessa arti-
culação para o futuro, quem sabe para
a formação da tão sonhada frente de es-
querda em 2022”, avalia. “O estilo de li-
derança de Boulos favorece muito essa
união. Ele é muito tranquilo, tem um jei-
to de se expor que não expressa radicali-
dade. Além disso, é bastante carismáti-
co, no sentido de conquistar a confian-
ça dos outros para o que se dispõe a fa-
zer. Digo isso pensando no conceito de
carisma formulado pelo sociólogo ale-
mão Max Weber. Boulos consegue des-
pertar a esperança de um amplo setor
da sociedade, e isso não é pouca coisa.” •
CARTA CAPITAL