Depois da Amazônia, é a vez de o Pantanal ser
consumido pelas chamas em meio ao descaso do governo
POR RODRIGO MARTINS
O Pantanal agoniza. Fora de
controle, os incêndios flo-
restais consumiram mais
de 2,3 milhões de hecta-
res do bioma, território
superior ao de Israel ou equivalente a
dez vezes as áreas das cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro somadas, atesta
o Laboratório de Aplicações de Satélites
Ambientais da UFRJ. Quem percorre os
145 quilômetros da Rodovia Transpan-
taneira descreve um cenário desolador.
Às margens da estrada, um vasto cemi-
tério de espécies, com cobras, jacarés, ja-
butis e outros animais carbonizados. Ao
adentrar na mata, os ambientalistas não
enfrentam dificuldade para encontrar
onças prostradas, imóveis, com as patas
queimadas, em carne viva. As cenas es-
candalizaram o mundo. Com longo his-
tórico de engajamento em causas am-
bientais, o ator norte-americano Leo-
nardo DiCaprio aderiu à campanha De-
fund Bolsonaro, que sugere um boicote
aos produtos brasileiros associados ao
avanço do desmatamento.
Trata-se da maior devastação da his-
tória do Pantanal, que perdeu ao menos
15% de sua cobertura vegetal para as
chamas. Até 15 de setembro, o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais iden-
tificou 15.477 focos ativos de incên-
dio, o maior número da série histórica,
iniciada em 1998. Para piorar, a re-
gião enfrenta uma de suas maiores se-
cas. Segundo a Marinha, o nível do Rio
Paraguai, principal do bioma, chegou a
2,10 metros em junho, a menor marca
dos últimos 47 anos. De outubro de 2019
a março deste ano, o volume de chuvas
na Bacia Pantaneira foi 40% menor que
a média dos anos anteriores.
A estiagem é influenciada por mu-
danças na temperatura do oceano, um
fenômeno conhecido como Oscilação
Multidecadal do Atlântico, explica a geó-
grafa Ane Alencar, diretora de Ciência
do Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia. “Uma parte das águas da re-
gião amazônica vem do Atlântico. Essa
água percorre a floresta, é reciclada pe-
los rios voadores e segue para o Centro-
Oeste. Se a água do oceano está mais
quente, ela evapora com mais facilida-
de, reduzindo o volume de todo o siste-
ma.” Não por acaso, o recorde anterior de
queimadas no Pantanal foi registrado em
2005, com 12.536 focos ativos de incên-
dio. Naquele ano, as águas do Atlântico
também aqueceram, provocando uma
onda de furacões no Caribe e nos EUA,
além de um severo período de seca no su-
doeste da Amazônia e no Pantanal.
Nem por isso as recentes queima-
das podem ser atribuídas à combustão
espontânea da vegetação nativa, como
Jair Bolsonaro declarou em agosto.
A região pantaneira
perdeu 15%
da vegetação, a
maior devastação
de sua história
“Esses incêndios naturais costumam
ser provocados por descargas elétricas
no fim da estação seca. Mas ainda não
há sinal de chuvas na região, não hou-
ve tempestades com raios. Tudo indica
que o fogo teve origem na ação huma-
na”, observa Alencar. “Claro que a es-
tiagem favorece a propagação das cha-
mas, mas não podemos alterar o clima.
No que podemos intervir? Na realiza-
ção de queimadas prescritas logo após
a temporada de chuvas, para reduzir a
quantidade de material orgânico com-
bustível, e na fonte de ignição dos in-
cêndios. Em tese, a moratória das quei-
madas na estação seca deveria cumprir
esse papel, mas ela está sendo desres-
peitada. Pudera, um dia após proibir o
uso do fogo em território nacional por
120 dias, o presidente criticou o próprio
decreto que assinou em uma live, dizen-
do não concordar.”
A tese de combustão espontânea foi
desmentida pelas investigações em cur-
so. No início de setembro, o governo de
Mato Grosso divulgou os resultados de
perícias realizadas em cinco áreas da re-
gião do Pantanal, no sul do estado. Os
laudos concluem que os incêndios fo-
ram provocados pela ação humana, de
forma intencional ou não. Na região de
Barão de Melgaço, a queimada serviu ao
propósito de abrir “área de pasto para
o gado”. Em outro local, denominado
Fazenda São José, produtores queima-
ram raízes para produzir fumaça, com
a finalidade de retirar favos de mel de
abelhas silvestres. Em outra proprie-
dade rural, uma máquina agrícola reco-
lhia feno quando pegou fogo. Na Rodovia
Transpantaneira, um acidente de trân-
sito teria iniciado o incêndio florestal.
Na Rodovia Helder Cândia, por sua vez,
a queimada começou com faíscas de um
cabo de alta-tensão rompido.
Em Mato Grosso do Sul, a Polícia
Federal afirma que o incêndio que des-
truiu 25 mil hectares de áreas de pre-
servação ambiental não foi acidental. A
suspeita é de que o fogo tenha sido uti-
lizado para remover a vegetação natu-
ral com o objetivo de aumentar a área
de pastagem para gado em cinco fazen-
das na região de Corumbá. Os suspei-
tos poderão responder pelos crimes de
danos a floresta de preservação perma-
nente, danos diretos e indiretos a uni-
dades de conservação, incêndios e po-
luição, cujas penas somadas podem ul-
trapassar 15 anos de reclusão.
Os infratores confiam, porém, na
impunidade. Até 31 de julho, o Ibama
gastou apenas 20,6% dos 66 milhões de
r eais autorizados para ações de fiscali-
zação no País em 2020, revela um levan-
tamento do Observatório do Clima, com
base em dados do sistema
de execução orçamentária
do governo federal. A con-
sequência é nítida. No pri-
meiro semestre deste ano,
agentes do instituto aplica-
ram 3.421 autos de infra-
ção, uma queda de 52,1%
na comparação com o mes-
mo período do ano passa-
do. Detalhe: em 2019, ha-
via ocorrido uma redução
de quase 17% das multas.
A despeito das queima-
das que ameaçam o Pan-
tanal, o governo Bolso-
naro tem promovido sucessivos cortes
nos recursos destinados à contratação
de profissionais especializados no com-
bate ao fogo em áreas florestais, bem co-
mo para o pagamento de diárias de bri-
gadistas. A verba despencou de 23,7 mi-
lhões, no ano passado, para 10 milhões
neste ano, uma redução de 58%, de
acordo com dados do Portal da Trans-
parência. O orçamento global para pre-
venção e controle de incêndios em áre-
as federais era de 53,8 milhões de reais
em 2018, mas caiu para 45,5 milhões em
2019 e para 38,6 milhões neste ano. Não
é tudo. O Projeto de Lei Orçamentária
de 2021 proposto pelo Executivo pre-
vê um corte de 4% nas verbas destina-
das ao Ibama e de 12,8% para o ICM-
Bio. Além disso, uma série de políticas
ambientais morre de inanição na gestão
do ministro Ricardo Salles, revela outro
levantamento do Observatório do Cli-
ma. Dos 2,6 milhões de reais autoriza-
dos para ações de educação ambiental
foram gastos míseros 4,3 mil, ou 0,1%
do total. A Política Nacional sobre Mu-
dança do Clima, cujo plano de metas
deveria ser entregue às Nações Unidas
neste ano, consumiu apenas 6,3 mil
r eais, ou 2,5% dos 253,4 mil previstos.
O Fundo do Clima, com dotação de 6,2
milhões, teve desembolso zero.
Embora o governo insista em negar
a realidade, os dados são irrefutáveis.
O desmatamento na Amazônia, igual-
mente ameaçada por incêndios flores-
tais, cresceu 34% de agosto de 2018 a ju-
lho de 2019, revelam imagens de satéli-
tes do Deter, o sistema de monitoramen-
to do Inpe. O compilado do último ano
ainda não foi divulgado, mas especialis-
tas preveem a repetição do quadro, pois
o número de alertas de desmatamento
cresceu 34,5% de agosto de 2019 a ju-
lho deste ano. Mas, na peculiar visão de
mundo do general Hamilton Mourão, vi-
ce-presidente da República, o problema
está no Inpe, responsável pela aferição
dos dados. “É alguém lá de dentro que
faz oposição ao governo. Eu estou dei-
xando muito claro isso aqui. Quando o
dado é negativo, o cara vai lá e divulga.
Quando é positivo, não divulga.”
O governo prefere
perseguir “inimigos”
internos e externos,
entre eles Leonardo
DiCaprio, a lidar
com a realidade
A tentativa de esconder os dados é es-
candalosa. Antes de Mourão, o ministro
Salles moveu uma irracional campanha
contra o instituto. A crise resultou na
demissão do físico Ricardo Galvão, en-
tão presidente do Inpe, que viria a ser es-
colhido como um dos dez cientistas do
ano pela revista Nature. “O maior opo-
sitor do governo é a verdade”, rebate o
ambientalista Marcio Astrini, secretá-
rio-executivo do Observatório do Clima.
“De 2004 a 2012, conseguimos reduzir
em 84% o desmatamento na Amazônia.
Depois houve um enfraquecimento da
agenda ambiental. Mas Bolsonaro virou
completamente o disco, oferecendo uma
espécie de salvo-conduto para as qua-
drilhas que lucram com a devastação. O
Brasil tinha protagonismo no debate so-
bre desenvolvimento sustentável, mas
se tornou um pária ambiental.”
Agora, o governo parece ter elegido
DiCaprio como alvo prioritário. Mourão
chegou a convidar o ator para “uma mar-
cha de oito horas pela selva, entre o ae-
roporto de São Gabriel e a estrada de
Cucuí”, na qual o general se dispõe a
A tentativa de esconder os dados é es-
candalosa. Antes de Mourão, o ministro
Salles moveu uma irracional campanha
contra o instituto. A crise resultou na
demissão do físico Ricardo Galvão, en-
tão presidente do Inpe, que viria a ser es-
colhido como um dos dez cientistas do
ano pela revista Nature. “O maior opo-
sitor do governo é a verdade”, rebate o
ambientalista Marcio Astrini, secretá-
rio-executivo do Observatório do Clima.
“De 2004 a 2012, conseguimos reduzir
em 84% o desmatamento na Amazônia.
Depois houve um enfraquecimento da
agenda ambiental. Mas Bolsonaro virou
completamente o disco, oferecendo uma
espécie de salvo-conduto para as qua-
drilhas que lucram com a devastação. O
ensinar, “em cada socavão” pelo trajeto,
“como funcionam as coisas nesta imen-
sa região”. Mais recentemente, foi a vez
de Salles perder as estribeiras, após o
astro de Hollywood manifestar apoio à
campanha Defund Bolsonaro. “O Brasil
está lançando o projeto de preservação
‘Adote um Parque’, que permite a você ou
qualquer outra empresa ou indivíduo es-
colher um dos 132 parques da Amazônia
e patrociná-lo diretamente a 10 euros
por hectare por ano. Você vai colocar seu
dinheiro onde está sua boca?”, escreveu
o ministro no Twitter, postagem depois
compartilhada por Bolsonaro.
Compreensível o desespero da turma.
Além dos alertas emitidos por fundos de
investimentos estrangeiros, Mourão re-
cebeu na terça-feira 15 uma carta assi-
nada pelos embaixadores de oito países
europeus a alertar que os governos de
Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França,
Holanda, Itália, Noruega e Reino Unido
não estão dispostos a fechar os olhos pa-
ra o avanço do desmatamento no Brasil.
No mesmo dia, mais de 200 entidades e
empresas enviaram ao governo um con-
junto de propostas para a redução efe-
tiva do desmatamento no curto prazo,
a começar pela retomada das ações de
fiscalização. A Coalizão Brasil Clima,
Florestas e Agricultura, por sinal, con-
seguiu o incrível feito de unir ONGs am-
bientalistas, como a WWF e o Imazon,
com gigantes do agronegócio, a exemplo
de Amaggi, JBS e Marfrig. As empresas
temem que o descaso do governo com o
meio ambiente resulte na criação de bar-
reiras comerciais aos produtos brasilei-
ros, com gigantescos prejuízos ao País. •
CARTA CAPITAL
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