Luiz Fernando Vianna
Aldir Blanc morreu na segunda-feira 4 após 23 noites lutando contra a Covid-19. Fica uma obra de mais de 600 canções, construída, em grande medida, com os pés na rua da realidade e a cabeça na lua da liberdade poética. “O corona não tem como comer a obra dele”, disse seu parceiro Guinga. “Quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças”, prometeu outro parceiro, João Bosco.
ÉPOCA montou um ABC inevitavelmente parcial, sem a audácia de propor “o melhor de”. Muitos versos soberbos ficaram de fora. É uma compilação, à guisa de homenagem, para exemplificar a excelência das letras de Blanc.
Amor
O amor é estar no inferno
ao som da Ave Maria
“Nem cais nem barco”, com Guinga
O amor é a patada da fera
na cara do domador
“Falso brilhante”, com João Bosco
Acho que o amor é a ausência
de engarrafamento
“Transversal do tempo”, com Bosco
O amor é meu pastor:
tudo me faltará
“Oração perdida”, com Jayme Vignoli e Luiz Flavio Alcofra
Boemia
Todo boêmio é feliz/Porque quanto mais triste, mais se ilude
“Me dá a penúltima”, com Bosco
Eu não resisto aos botequins
mais vagabundos/mas
não pretendia te envergonhar
“Pra que pedir perdão?”, com Moacyr Luz
Mas a tarde começa a cair e eu perco o sossego/Sentindo correr
no meu sangue de negro/O chamado do samba e do botequim
“Mãos de aventureiro” (sem parceria)
Carnaval
Por um bloco que aumente/o movimento/que sacuda e arrebente/ o cordão de isolamento
“Plataforma”, com Bosco
Carnaval, missa campal/
do povo brasileiro/onde a hóstia sagrada é o pandeiro
“Vitória da ilusão”, com Luz
Imaginar o Salgueiro,/lua sobre o sangue de linda mulher.../é preciso
o universo inteiro/pra mostrar o que o Salgueiro é
“Lua sobre sangue”, com Cláudio Jorge
Delírios
Estrela é só um incêndio na solidão
“Pra que pedir perdão?”, com Luz
A terra onde nasceu o Peter Pan/
fica entre a Vila e o Maracanã
“Ramo de delírios”, com Guinga
No Rio: mar./Ouço Netuno assoviar/
Um Gershwin Clara Nunes/que faz vibrar feito flauta/os túneis
“Delírio carioca”, com Guinga
Elas
Bem que eu queria dar com fé uma cacarecada/Mas minha nega é maior e vacinada
“Feminismo no Estácio”, com Bosco
Um mulherão, balangandãs, cerâmica e sisal/Língua assim, a conta certa entre a baunilha e o sal
“Coisa feita”, com Bosco e Paulo Emílio
Fascínio tenho eu/por falsas louras/
(ai, a negra lingerie)/Com sardas,/
sobrancelha feitas a lápis/
e perfume da Coty
“Miss Sueter”, com Bosco
Família
Mãe,/arranha o vidro da janela/onde a sujeira vela/por nós dois/porque eu não sei/quem anda mais sozinho./ Aí eu perdi o ninho, a casa/o colo, a crença/Só nossa doença não me abandonou
“Choro-réquiem”, com Guinga
Ponho a mão na testa do meu neto/
e é meu avô que está estendendo
a mão./Nessa comunhão dos três/ eu sou avô do meu avô
“Acalanto pros netos”, com Cristovão Bastos
Galos de briga
O rubro das brigas duras/dos galos de fogo puro/rubro gengivas de ódio/antes das manchas no muro
“Galos de briga”, com Bosco
Meu companheiro/tá armado até
os dentes/já não há mais moinhos/
como os de antigamente
“O cavaleiro e os moinhos”, com Bosco
Mas, ovelha negra me desgarrei/
o meu pastor não sabe que eu sei/
Da arma oculta na sua mão
“Agnus sei”, com Bosco
História negra
Rubras cascatas/jorravam das
costas dos santos/entre cantos
e chibatas/inundando o coração/
do pessoal do porão
“O mestre-sala dos mares”, com Bosco
Preso,/marca a rebeldia/traz pra senzala/a luz do amanhã
“Da África à Sapucaí”, com Bosco
O escuro do negreiro/O açoite
pardo do feitor/E um clarão enganador/A liberdade sonhada ainda não chegou
“Rainha negra”, com Luz
Irmãos
Perder um amigo/Perder o sentido/ Perder a visão/As mãos, os ouvidos
“Perder um amigo”, com Maurício Tapajós
Os irmãos Francisco, Herbert, Henrique/são muito engraçados./ São marujos de um navio/várias vezes posto a pique/nem por isso perdem o riso
“Quatro irmãos”, com Leandro Braga
Jobim
Toco piano e a Virgem canta,/diz pro Menino: Tio Tom./Senta à vontade
e a coxa santa me dá saudade
do Leblon
“Jobiniana”, com Guinga
O Jobim, sabiá, bem-te-vi
“Querelas do Brasil”, com Tapajós
Lua
Estrela, no adeus/faz com que/tua luz me proteja,/me beija de leve/azul serenata ao luar Moonlight serenade, versão para música de Glenn Miller
Mulher lunar,/hoje eu te louvo no momento em que te pões
“Mulher lunar”, com Luiz Carlos da Vila
Machismo
Ele vai voltar tarde/Cheirando
a cerveja/Se atirar de sapatos
na cama vazia/E dormir na hora murmurando: Dora/E você é Maria
“Bodas de prata”, com Bosco
Eu não posso me queixar/
pra Delegacia da Mulher/
ninguém pra testemunhar/
como é a violência em meu lar
“Delegacia da Mulher”, com Luz
Noite
Ah, vida noturna/eu sou
a borboleta mais vadia/na doce flor/
da tua hipocrisia
“Vida noturna”, com Bosco
Um cuba libre treme na mão fria/ao striptease da agonia/de cada um que deixa o cabaré/lá fora, a luz do dia fere os olhos
“Cabaré”, com Bosco
Oceanos
Eu, teu corsário preso/vou partir
a geleira da solidão/E buscar
a mão do mar
“Corsário”, com Bosco
O dom de acariciar/Profundamente feito o mar,/Remexendo o que naufragou/Lentamente na solidão
“Restos de um naufrágio”, com Luz
Pares
Sentindo frio em minh’alma/
Te convidei para dançar/
A tua voz me acalmava/
São dois pra lá, dois pra cá
“Dois pra lá, dois pra cá”, com Bosco
Nos dissemos/que o começo
é sempre,/sempre inesquecível/
e, no entanto, meu amor,
que coisa incrível,/esqueci nosso começo inesquecível
“Latin lover”, com Bosco
Querelas do Brasil
O Brazil não merece o Brasil/O Brazil tá matando o Brasil
“Querelas do Brasil”, com Tapajós
Chora a nossa pátria, mãe gentil/
choram Marias e Clarices/
no solo do Brasil
“O bêbado e a equilibrista”, com Bosco
Grampearam o menino do corpo fechado/e barbarizaram com mais de cem tiros./Treze anos de vida sem misericórdia/E a misericórdia no último tiro
“Tiro de misericórdia”, com Bosco
Se alastra entre os gurus/visões diluvianas/Carmen Miranda teme/
que não haja mais bananas
“Diluvianas”, com Guinga
Rio de Janeiro
Brasil, Brasil/tua cara ainda é o Rio de Janeiro/três por quatro na foto
e o teu corpo/precisa se regenerar
“Saudades da Guanabara”, com Luz e Paulo César Pinheiro
Um dia vi Iemanjá/cantando num dancing lá.../Me diz aí: que mal há/
em ser da Praça Mauá
“Praça Mauá: que mal há?”, com Luz
Samba
Meu samba é casa de marimbondo/ Tem sempre enxame pra quem mexer
“Casa de marimbondo”, com Bosco
Ele é um samba de quadra da Mangueira/que Deus letrou,/
dá aula sobre a cidade/e nessa universidade/é o reitor
“Flores em vida para Nelson Sargento”, com Luz
Tempo
E o tempo se rói com inveja de mim,/
me vigia querendo aprender/como eu morro de amor/pra tentar reviver
“Resposta ao tempo”, com Cristovão Bastos
50 anos são bodas de sangue/casei com a inconstância e o prazer
“50 anos”, com Bastos
Uniões estáveis
Se eu tô/Devendo dinheiro e vem um me cobrar/Dotô, a peste abre a porta e ainda manda sentar
“Incompatibilidade de gênios”, com Bosco
Eu sou teu acaso/e por acaso tu és minha sina,/somos sorte e azar,/eu sou tua relíquia/tu és minha ruína
“Siameses”, com Bosco
As sandálias, e eu batendo em teu rosto/E a queda dos saltos tão altos/
Sobre os nossos filhos
“Altos e baixos”, com Sueli Costa
Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador/Teu girassol tem de fora o escondido do Engenho de Dentro da flor
“Catavento e girassol”, com Guinga
Vila Isabel
Os netos... o quintal... Vila Isabel.../
Todo o Brasil era sol, quarador
“Tempos do onça e da fera — Quarador”, com Bosco
Zune o vento e valsam os oitis/no velho boulevard/bosques de Viena
“Viena fica na 28 de setembro”, com Bosco
X do problema
Entre amar e matar não sobra espaço/quanta lâmina rente
ao meu abraço/e cristais
de arsênico em meu beijo/
vão matar o que mais quero
“Canção do lobisomem”, com Guinga
Num lance alguém se suicida/
e a marca de uma ferida/
não sai com o apagador
“Tabelas”, com Bosco
Zona Norte
Há quem não se importe/mas a
Zona Norte/é feito cigana/lendo a minha sorte
“Só dói quando eu Rio”, com Luz
Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta./
Ô, trouxa, heroínas sem par
podem brotar na Rússia/
ou lá em Água Santa
“Lupicínica”, com Vignoli
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