Renato Grandelle
Avenida dos Astronautas, São José dos Campos, São Paulo. Um comitê formado por cientistas e engenheiros encerrou, na semana passada, uma série de entrevistas com os nove candidatos ao cargo de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A comissão enviará uma lista tríplice ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, que escolherá, em um prazo indeterminado, o novo comandante do órgão. É um processo burocrático, mas, agora, carregado de uma tonalidade política. Reconhecido internacionalmente pela comunidade científica, o instituto foi empurrado para o ringue dos embates entre a oposição e o governo federal, ao mesmo tempo que vê sua estrutura minguar.
Nos últimos dez anos, o número de servidores caiu 28,6%. Entre os 761 remanescentes, 197 já têm condições de se aposentar. O orçamento despencou na última década, passando de R$ 385 milhões em 2010 para R$ 118 milhões neste ano. A Agência Espacial Brasileira (AEB), vinculada ao Ministério Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), pretende zerar os repasses para pesquisa e desenvolvimento do instituto em 2021.
Não bastassem os números desfavoráveis, a direção do Inpe enfrenta resistência de uma parcela crescente dos servidores. O coronel da Aeronáutica Darcton Policarpo Damião está à frente do instituto desde agosto, quando o físico Ricardo Galvão foi exonerado por Jair Bolsonaro, após um bate-boca em que defendeu os dados do desmatamento averiguados em boletins mensais e contestados pelo presidente. Damião foi apelidado por seus opositores de “interventor militar”. A crítica foi reforçada em julho, quando anunciou uma reestruturação interna que começou justamente na área responsável por diagnosticar a devastação da Amazônia.
Procurada por ÉPOCA para comentar a seleção do novo diretor, a assessoria de imprensa do instituto afirmou que Damião “não falará sobre esses assuntos”.
Damião, que foi defendido pelo ministro Marcos Pontes, é um dos nove candidatos à direção do órgão e tido por alguns de seus adversários como um sinal de que o governo federal pretende impor sua agenda ao Inpe. Por isso, há grupos do instituto que pressionaram o comitê de seleção a divulgar a lista tríplice que será enviada ao MCTI. A ideia era que a eventual presença do nome de Damião fosse condenada pela opinião pública, o que aumentaria a possibilidade de Pontes escolher um de seus concorrentes. A divulgação da lista, porém, depende da autorização do ministro, e a expectativa é que ele manterá o processo em sigilo.
Diretor do Inpe entre 2005 e 2012, o cientista da computação Gilberto Câmara é considerado o principal adversário de Damião. Em sua gestão foi criado o Deter, uma ferramenta que envia alertas do desmatamento na Amazônia, cujos elevados índices têm dado dor de cabeça ao governo federal.
Câmara decidiu participar da seleção quando faltavam apenas três dias para o encerramento das candidaturas. Define-se, no entanto, como “anticandidato”, por considerar que suas chances de vitória são remotas. Ainda assim, assegurou que está disposto a fazer as malas e deixar Genebra, onde é secretário executivo do Group on Earth Observations, ligado à Organização Meteorológica Mundial.
“Sou candidato, mas sem ilusão. Hoje temos ministros militares na Saúde e na Ciência, diretores militares na AEB e no Inpe”, disse Câmara. “O atual interino (Damião) nunca participou de um projeto de pesquisa, nunca publicou um trabalho científico. Acho que entro na lista tríplice, mas aí entra a linha ideológica do governo, que é uma lógica burra. A sinalização mais recente foi o investimento zerado em pesquisa e desenvolvimento. O Inpe é reconhecido internacionalmente. Só não é respeitado na Esplanada dos Ministérios.”
“O número de servidores do Inpe caiu 28% e o orçamento desabou de R$ 385 milhões para R$ 118 milhões nos últimos dez anos, e agora a Agência Espacial Brasileira pretende zerar os repasses para pesquisa e desenvolvimento em 2021”
O cientista da computação enfileira críticas à gestão do Inpe. Teme a manipulação dos dados sobre desmatamento e que o cofre vazio comprometa a capacidade operacional do instituto. O maior alvo de sua artilharia, porém, é a reestruturação interna anunciada por Damião, cujo principal enfoque é a redução do número de coordenadorias.
No mês passado, durante sua apresentação, o projeto foi chamado pelos servidores de improvisado e autoritário, já que poucos representantes da cúpula do instituto tiveram acesso a ele. Outra crítica feita à proposta é que ela não deveria ter tamanha projeção, já que veio de um diretor interino.
“É uma reforma ilegal, porque o estatuto do Inpe manda que todas as reestruturações sejam avaliadas pelo conselho técnico-científico do órgão”, protestou Câmara. “O Damião se julgou na capacidade de impor um plano usando a lógica da guerra, em que um general conversa com três coronéis, cinco majores, até chegar ao soldado, que é o menos qualificado. Na ciência não é assim. O soldado é o pesquisador que está no laboratório e muitas vezes tem tanta ou mais experiência que o diretor.”
Coordenador-geral de Ciências Espaciais e Atmosféricas, Clezio Marcos De Nardin, que também concorre à direção, discorda de Câmara. Ele defendeu uma reforma que reorganizaria o quadro de servidores para que deem conta de todas as tarefas do Inpe, considerando que o contingente do órgão está abaixo do ideal. Também negou que o Inpe esteja passando por um processo de militarização, destacando, inclusive, que o comitê responsável por elaborar a lista tríplice é formado por civis.
Na semana passada, Nardin enviou uma moção de apoio a Damião, questionando a decisão da AEB de zerar o orçamento para pesquisa e desenvolvimento científico. A agência, segundo Nardin, comete um ato “descabido, desproporcional e imprudente”, e ele disse que prefere imaginar que houve “um erro de digitação e que o MCTI saberá reverter esta situação”.
A falta de recursos, porém, não é um fardo apenas da pesquisa e desenvolvimento, disse Nardin. E pode provocar o colapso do instituto em poucos meses.
“Se os recursos não vierem, minha estimativa é que o Inpe não tenha dinheiro para pagar as contas de energia elétrica”, alertou. “Ou seja, vai parar de funcionar em maio de 2021. Imagine termos de desligar o supercomputador e o país ficar sem previsão numérica do tempo, por exemplo. Pergunte a algum agricultor o que ele faz sem esse dado ou como atuará um funcionário do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) para salvar vidas.”
Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, acredita que o sucessor de Damião terá à frente “problemas seríssimos”. Entre eles, evitar a interferência do governo nos boletins sobre devastação da Amazônia, o que pode arranhar a imagem do país no exterior e decidir o futuro da reforma anunciada por Damião.
Entre as questões seculares está a redução drástica no quadro de servidores, que, segundo ele, está levando o órgão a “quase uma situação de não prestação de serviços para a sociedade”.
“O atual diretor é interino. O próximo pode ter problemas de enfrentamento com o governo”, cogitou. “Temos um satélite sino-brasileiro para sensoriamento remoto para a Amazônia. Não sei se essa colaboração será renovada, por questões ideológicas do governo com a China.”
A integridade da floresta também está na mira de outros países. A Nasa e a Agência Espacial Europeia mantêm satélites monitorando a Amazônia em tempo integral. A China, segundo Galvão, consegue cobrir 70% do território brasileiro com uma resolução de 9 metros quadrados, melhor que a dos equipamentos nacionais.
Portanto, na ausência de boletins do Inpe, seja por deliberação do governo federal ou em consequência de sua infraestrutura cada vez mais negligenciada, outros países podem assumir a divulgação de dados relacionados à Amazônia. Empresas estrangeiras também estariam disponíveis a exercer o mesmo papel. Para os pesquisadores brasileiros, seria como dizer ao mundo que a produção científica nacional não é confiável. O próximo diretor do instituto, civil ou militar, terá muito trabalho empilhado em seu gabinete.
EPOCA
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