Quadrinistas se inserem no meio cultural independente ilustrando a política brasileira, relacionamentos LGBT+ e o cotidiano. Para elas, a representação feminina nos quadrinhos ainda é sexista, hipersexualizada e estereotipada
A jornalista e pesquisadora em quadrinhos Gabriela Borges fundou a Mina de HQ, um selo independente sobre gênero e representação a partir de HQs feitos por mulheres cisgênero, pessoas transexuais e não binárias. A professora de Letras Daniela Mariano também resolveu agir e criou a coletânea ‘Mulheres e Quadrinhos’. Já Ellie Irineu é autora do "Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário", feito por artistas LGBT+. Como as três, muitas outras mulheres estão trabalhando para aumentar a representatividade feminina na indústria dos quadrinhos, que, segundo elas, ainda é feita de forma estereotipada e hipersexualizada, especialmente na grande indústria. Elas ressaltam a ausência de autoras nas grandes editoras e eventos, apesar de avanços como a vencedora do prêmio Eisner de 2019 (conhecido como o Oscar dos Quadrinhos), Emil Ferris, com "Minha Coisa Favorita é Monstro".
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A jornalista e pesquisadora em quadrinhos, Gabriela Borges, fundou a plataforma Mina de HQ há cinco anos. O selo independente e feminista tem como objetivo fazer com que cada vez mais pessoas leiam histórias em quadrinhos feitas por artistas mulheres e não binárias. E para ampliar a proposta, Gabriela também criou a revista Mina de HQ, que será lançada em dezembro. A publicação independente contém 20 quadrinhos inéditos sobre a pandemia da Covid-19 e tem financiamento coletivo pelo Catarse.
— Os projetos são trabalhos com perspectiva de gênero sobre histórias em quadrinhos. O mercado das HQs é masculino e mainstream. Para quebrar esse ciclo, contrato artistas independentes e incentivo a representatividade e a representação feminina no formato das HQ's — comenta.
Para a pesquisadora, a representação das mulheres na grande indústria fomenta a misoginia:
— A representação feminina nos quadrinhos ainda é sexista. Ela acontece de forma hipersexualizada com quadrinhos privilegiando os personagens masculinos e tornando as mulheres coadjuvantes. Outro obstáculo é a falta de diversidade nos grandes eventos, editoras e prêmios como reflexo da sociedade machista. No mercado independente, o olhar é diferente. Existe maior comunicação com o público e auto representação pelas artistas — afirma Gabriela.
Com a mesma intenção de aumentar a visibilidade feminina nas HQ'S, a professora de Letras e pesquisadora de cultura pop Daniela Marino criou em parceira com historiadora Laluña Machado o livro "Mulheres & Quadrinhos", um dos concorrentes ao prêmio HQMix, a maior premiação dos quadrinhos no Brasil:
— O material reúne mais de 120 mulheres envolvidas com quadrinhos no Brasil. Esse projeto prova várias coisas: há mulheres de diferentes etnias e padrões produzindo e estudando quadrinhos no país. Elas possuem traços únicos e abordam temas variados. Isso subverte uma série de estereótipos sobre a produção feminina de quadrinhos no contexto nacional — comenta Daniela.
'Personagens estereotipadas, hipersexualizadas e mal representadas'
A quadrinista e ilustradora Helô D'Angelo, de 26 anos, trabalha no mundo das HQ's há 3. Ela fez jornalismo na Faculdade Casper Líbero, em São Paulo, e, durante a graduação, entrou em contato com a área. Helô fez sua monografia no formato de quadrinhos. O tema foi mulheres que abortaram em contextos sócio-econômicos diferentes.
— Apesar de pouco tempo na profissão, já lidei com a discriminação de gênero. No entanto, tenho privilégios por ser uma mulher de classe média, branca e moradora de São Paulo. As pessoas não respeitam quando você é uma mulher quadrinista. Muitas vezes estive em feiras e as pessoas parabenizaram o meu namorado (que estava me ajudando) ou comentaram na internet assumindo que eu era homem — diz Helô, para quem a maioria das pessoas pressupõe que os espaços de destaque são ocupados por um corpo masculino: — Sei que recebo menos que os homens da área. Já falaram que meu traço é feminino, não o conteúdo, o que não entendo.
Quadrinista há oito anos, Ivana Amarante Bombana (conhecida como Dilemas da Ivana) começou na profissão com as tirinhas.
— Elas foram uma ferramenta que utilizei para conseguir expressar minhas emoções e documentar em forma de desenho o processo que é se transformar em mulher adulta nos dias atuais. A ideia de ser quadrinista surgiu de maneira despretensiosa em uma página do Facebook. Nunca imaginei trabalhar com essa área, pois cresci com a ideia de que “quadrinhos eram pra meninos”. A partir daí, eu me encorajei, assumi meu traço, estilo de desenho e humor, dando-me a chance de desenvolver a mim e ao meu personagem — diz.
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Ivana relata que o machismo no universo dos quadrinhos interferiu em seu trabalho como um agente limitador:
— Por muito tempo sofri do “complexo de boa menina”. Falar de política, sexo, vulnerabilidades e machismo eram assuntos fora de cogitação... até que um dia transbordei. Entendi recentemente que posso ser autêntica, espontânea, imperfeita e política — afirma ela. — Ser mulher e poder expressar todas as facetas de luz e sombra, sentimentos, opiniões, experiências e dores é cura, não só pra quem cria, mas também pra quem acompanha.
A quadrinista, ilustradora e editora independente Ellie Irineu, de 26 anos, trabalha como quadrinista desde 2015. Ela conta que começou na carreira sendo incentivada pelas organizadoras do projeto Lady's Comic:
— Sempre foi claro que alguns espaços do universo dos quadrinhos eram feitos por e para homens cisgêneros e héteros (e o quanto esses ambientes eram tóxicos). No entanto, meu trabalho não é para eles e nem depende deles. Por estar desde o início em contato com pessoas que vinham quebrando cada vez mais com esse ciclo "clássico", consegui evitar muita frustração ao não perder tempo tentando agradar uma indústria e público que nunca iria aceitar alguém ou um trabalho como o meu — diz.
Organizadora da 'Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário', que relata a trajetória dela e de outras três autoras LGBT+, Ellie reflete sobre a importância de ilustrar essas narrativas:
— A produção de conteúdo com representatividade é muito importante. Se não fizermos o conteúdo que gostaríamos de consumir, ninguém mais vai, ou pior, vão fazer e não nos acolherá. Há pouco tempo, parte das histórias com personagens LGBTI+ eram escritas por pessoas cisgênero e héteros, quase sempre com uma visão trágica e estereotipada das nossas vivências. Um dos focos do meu trabalho é mostrar que a vida dessas pessoas não precisa ser sofrida — relata.
Marília de Azevedo Correa e Moreira, conhecida como Marz, autora de Indivisível, que discorre sobre a identidade negra presente no bairro da Liberdade, em São Paulo, trabalha como quadrinista há três anos. Ela destaca a importância de combater o machismo no segmento dos quadrinhos:
— O universo dos quadrinhos ainda é extremamente masculino e isso é refletido diretamente no tipo de conteúdo produzido e comercializado, o que nos leva a personagens femininas estereotipadas, hipersexualizadas e mal representadas em diversas narrativas e publicações.Quanto mais mulheres inseridas no mercado de quadrinhos, não só como desenhistas e roteiristas, mas presentes em todas as etapas necessárias para se publicar uma HQ, mais força teremos para questionar esse tipo de conteúdo, contar nossas próprias histórias e usar nossa voz para transformarmos esse meio em algo no mínimo mais realista, respeitoso e diverso do ponto de vista da representatividade feminina — diz.
'Poucos avanços'
A pesquisadora em quadrinhos e gênero Natália Rosa Muniz Sierpinski, de 26 anos, explica que começou a estudar sobre histórias em quadrinhos em 2014 com uma análise da personagem Jean Grey, da saga Fênix Negra. Ela analisa o avanço da representação feminina nas HQ's:
— Comparando a Fênix Negra, que é dos anos 80, com o cenário atual, tivemos poucos avanços. Hoje é menos naturalizado personagens hiperssexualizadas. No entanto, ainda temos histórias em que as personagens femininas não possuem arcos narrativos com a mesma complexidade que os masculinos. Isso reforça os estereótipos em volta das mulheres — diz.
Natália pontua que, apesar da existência de autoras mulheres nas histórias em quadrinhos, essas mulheres não aparecem nas posições de destaque da indústria:
— A mulher nos quadrinhos apareceu a partir de autores homens, sendo colocada de maneira sexualizada, planificada e a serviço do personagem masculino na história. Apesar de termos autoras mulheres nas HQ'S, elas não estão ocupando os livros, enciclopédias e premiações. Ao termos mulheres representando outras nos quadrinhos, vemos múltiplas formas de representação, que são plurais e importantes para romper com estereótipos visuais e narrativos — ressalta.
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