O exercício de imaginação ajuda a dimensionar quanto a ciência avançou nestas três décadas e como a vida mudou de lá para cá
O ano é 1990. Um vírus misterioso começa a se espalhar a partir de um surto localizado e, pouco a pouco, ganha bairros, cidades, estados, países e continentes inteiros. A trajetória exponencial do patógeno lota hospitais com pacientes com insuficiência respiratória. Cientistas especulam a partir dos quadros mais severos a ação de um novo agente de transmissão respiratória, mas, com a tecnologia disponível, levariam meses para identificá-lo.
Até lá, centenas de milhares mortes, talvez milhões, dessa hipotética “Covid-90” teriam se acumulado ao redor do planeta. As primeiras nações a receber o vírus pelas fronteiras aéreas ou terrestres sofreriam com a carência de informações sobre a evolução da doença. Sem testes do tipo RT-PCR, capazes de detectar o vírus, seria ainda mais difícil executar o rastreamento de contatos e a transmissão assintomática se daria de forma avassaladora.
O exercício de imaginar uma pandemia de coronavírus há 30 anos ajuda a desenhar a dimensão dos avanços científicos nas últimas três décadas nas medidas de combate ao sars-CoV-2. Especialistas não têm dúvidas de que o mundo enfrentaria a doença com as ferramentas disponíveis à época, mas certamente a um custo humano ainda mais alto do que agora.
Mesmo com todo o poderio tecnológico disponível em 2020, a ciência ainda não encontrou todas as respostas para a Covid-19, nove meses após a notificação do primeiro caso em Wuhan, na China. Mas a trajetória deste período tem carregado símbolos e vitórias, como o sequenciamento do genoma do sars-CoV-2 em tempo recorde, seu compartilhamento instantâneo na internet por cientistas chineses e a promessa da vacina mais rápida da história.
Especula-se que o novo coronavírus circulava no organismo de animais há um tempo indeterminado até desenvolver a capacidade de infectar seres humanos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) conduz uma investigação acerca da origem do patógeno na China e, até o momento, a tese mais popular entre pesquisadores é que o paciente zero contraiu o vírus em um mercado de Wuhan. Se a janela de oportunidade fosse aberta há 30 anos, os desafios seriam ainda maiores, afirmaram especialistas ouvidos por ÉPOCA.
“As técnicas de sequenciamento ficaram muito mais rápidas e baratas. Sequenciar um organismo como um vírus atualmente demora um dia. Há 30 anos, isso demoraria alguns meses. Era uma época de sequenciamento manual”, explicou a microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natalia Pasternak.
Essa demora, afirmou a pesquisadora, poderia atrasar diagnósticos e as medidas subsequentes, como o rastreamento de contatos e o isolamento de quem está doente.
“A técnica PCR é de 1984. Mas o teste RT-PCR, que é nosso único diagnóstico do sars-CoV-2, não existia ainda. Há vários outros vírus respiratórios, como o influenza, que sempre estiveram no radar. Teríamos demorado mais a entender qual vírus era e a avaliação seria só clínica. Isso poderia atrasar os diagnósticos, o rastreamento de contato”, completou Pasternak.
No entanto, é consenso que o sars-CoV-2 não se espalharia na mesma velocidade. Ainda que o fluxo internacional de pessoas fosse incomparável com a era da gripe espanhola, no início do século XX, a pandemia de 2020 foi agravada pelo mundo ultraglobalizado.
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Universidade de São Paulo (USP), afirmou que é impossível calcular como se daria o avanço. “Basta ver a diferença de voos entre o que tínhamos em 2003, quando a sars surgiu, e o que tínhamos antes da pandemia”, disse Lotufo. “Teríamos também uma outra pirâmide populacional, em certos termos o impacto seria menor, mas os cuidados hospitalares seriam bem piores”.
Mas isso significa que estaríamos preparados? Gonzalo Vecina Neto, professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, é categórico: no Brasil, o abalo seria muito forte.
“Teríamos saudades da gripe espanhola”, comparou o médico. “Seria um desastre muito pior do que a pandemia atual. Quanto mais voltarmos para trás, pior será o cenário. Você já tinha um pré-SUS (Sistema Único de Saúde) funcionando desde 1987. Mas tínhamos muitos problemas. A rede melhorou muito de lá para cá, embora ainda não seja o suficiente.”
Com a consolidação do SUS na Constituição Federal de 1988, sua estrutura e organização ainda eram incipientes em 1990. A expansão da rede em diferentes estados brasileiros, com hospitais, centros e ambulatórios de especialidades, ocorreu justamente ao longo daquela década e foi reforçada pelas reformas conduzidas pelo então ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Outro diferencial foi o fortalecimento da regulação.
“Nós tivemos o fortalecimento muito grande da vigilância sanitária com a criação da Anvisa e uma melhoria dramática do setor privado com a criação da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Havia opções de plano de saúde sem UTI. Muitos pacientes teriam de ser despejados dos hospitais sem poder pagar por um leito semi-intensivo”, lembrou. “Estávamos reestruturando o sistema de saúde em função do processo de urbanização, com a expansão da rede dentro de uma nova organização, que era a proposta pelo SUS, universalização, equidade e integralidade.”
Símbolos do processo de colapso dos sistemas de saúde no Brasil e no mundo, os respiradores e ventiladores, essenciais para a sobrevivência de casos graves da Covid-19, também seriam um importante empecilho para uma pandemia respiratória há 30 anos, recordou Vecina Neto.
“Já tínhamos bons respiradores, mas convivíamos com modelos que funcionavam por pressão. Não tinham motores. A pressão do oxigênio e do ar comprimido fazia o aparelho injetar no pulmão e esperar a saída do ar. Era um sistema que, apesar de salvar vidas, destruía pulmões”, disse o médico. “A capacidade de monitoramento era ruim, os antibióticos eram muito menos eficazes que os que apareceram depois. Foi um belo de um caminhar. Estávamos começando a viver uma revolução tecnológica.”
É praticamente consenso entre cientistas que a Covid-19 não será a única pandemia respiratória deste século. Para Natalia Pasternak, é difícil precisar em números se uma pandemia há 30 anos seria mais letal, mas o progresso científico deixa lições para a próxima.
“Temos de adaptar nossas vidas ao potencial epidêmico de um vírus respiratório. Vamos precisar de um normal vigilante, preparado, que não seja vulnerável na próxima vez. Tem muita coisa boa para investirmos. Mesmo com pouca atenção à ciência temos a tecnologia RT-PCR, vacinas, celulares e GPS, que permitiram acompanhar o isolamento. Como teria sido essa pandemia se tivéssemos investido um pouco mais?”, questionou a presidente do Instituto Questão de Ciência.
A microbiologista pontuou que o avanço científico ao longo das últimas décadas permite uma resposta muito mais veloz do que uma crise de proporção comparável em 1990. Técnicas de alteração genética que estão sendo testadas a todo vapor pelas líderes da corrida global por uma vacina, como as farmacêuticas AstraZeneca, Moderna e Sinovac Biotech, são muito recentes e se tornaram peças-chave na pandemia.
“Há 30 anos as vacinas eram de primeira geração, com o vírus atenuado, desativado, que são mais simples de fazer. Basta pegar o organismo, cultivar, enfraquecer ou inativá-lo. Mas as técnicas de clonagem de hoje permitem que tenhamos vacinas mais rápidas”, afirmou a microbiologista, lembrando que esse método exige laboratórios de altos níveis de segurança. “Não poderíamos, por exemplo, trabalhar com o sars-CoV-2 na USP, que não tinha um laboratório desse tipo na época.”
“O genoma do novo coronavírus foi decifrado em questão de dias na China, prazo que, há três décadas, levaria meses. Se a pandemia fosse em 1990, levaríamos tempo para saber o que estava acontecendo”
A rapidez nas pesquisas por uma vacina — o prazo médio antes da pandemia girava em torno de dez anos — e a expectativa por uma imunização eficaz em 2021 também colaboram para as perspectivas da recuperação econômica, um ponto crucial na resposta de governos à pandemia. Em 1990, o processo de retomada seria muito mais vagaroso, com consequências para economias muito menos globalizadas e interdependentes à época, na avaliação de Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos.
“A velocidade com que o mercado se refez da queda de março, no início da pandemia, é forte. Esse contexto tecnológico de um tempo de resposta mais rápido e um mundo conectado também fez o processo de retomada mais célere”, afirmou.
Arbetman argumentou que os governos teriam muito mais dificuldade de coordenar pacotes fiscais para atenuar o impacto da pandemia há 30 anos. Para tanto, comparou a proporção das crises que abalaram as Bolsas há três décadas com o tamanho do desafio do novo coronavírus.
Parte da economia mundial ficou paralisada em decorrência das quarentenas nacionais e medidas de distanciamento social adotadas mundo afora, inclusive nos estados brasileiros. Uma fração das atividades, no entanto, pôde se adaptar ao isolamento graças às novas ferramentas. Em 1990, o home office seria impensável, na avaliação de Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). “Não seria possível trabalhar de casa ou ter aulas remotas. Sem internet não é possível tornar sua casa produtiva. Ela é essencial para uma atividade coordenada. Isso não significa que as pessoas não desenvolveriam alternativas como parte da resiliência à crise”, disse Steibel.
Em 1990, é bom lembrar, além de internet, também não havia telefone celular em quase nenhuma parte do país. O serviço foi lançado naquele ano no Rio, e só chegaria a São Paulo em 1993. Por um lado, seria mais difícil matar a saudade de filhos, netos e amigos; por outro, a avalanche de fake news teria mais dificuldade de circular. Uma escolha difícil.
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