January 21, 2020

“Regimes autoritários inventam inimigos”


TUDO QUE SE PARECE COM
UM PENSAMENTO CRÍTICO
INCOMODA O BOLSONARISMO,
AFIRMA FLÁVIO PINHEIRO, DO IMS




Superintendente-execu-
tivo do Instituto Morei-
ra Salles, uma das mais
importantes institui-
ções culturais do Brasil,
Flávio Pinheiro prepa-
ra-se para deixar o car-
go após 11 anos de exercício (será subs-
tituído, em abril, por Marcelo Araújo).
Em entrevista a CartaCapital, ele fala
sem reservas do impacto do bolsonaris-
mo na cultura brasileira: “O governo tem
uma obra de demolição. Ele dedica-se a
desmontar o que enxerga como inimigo”.

CartaCapital: Como o senhor vê as
novas nomeações do governo para a
área cultural?
Flávio Pinheiro: Era previsível, mas
uma lástima, no sentido de que temos
um governo que trata a cultura como
inimiga, que leva longe demais o seu
anti-intelectualismo. Qualquer coisa
que se pareça com pensamento crítico

incomoda terrivelmente o governo, que
tem uma obra de demolição, não de cons-
trução. Ele dedica-se a desmontar o que
enxerga como inimigo. O governo tem
uma posição litigante em relação à cul-
tura, com todas as consequências que is-
so tem. Isso é ruim, obscurece o cenário
cultural. Mas é um cenário com enorme
vivacidade, que se tem renovado. Acho
que poderá resistir a esse tipo de ataque.
Há setores muito dependentes de recur-
sos, de decisões de governo. Esses vão so-
frer bastante.

CC: Este governo elege a classe
cultural como inimigo preferencial?
Por quê?
FP: De modo geral, regimes autoritários
inventam inimigos. Precisam inventar
inimigos, mesmo que o inimigo não exis-
ta ou não seja tão nítido como inimigo.
Em outros governos autoritários inven-
tam-se inimigos étnicos. E este também,
de certa maneira, com as nomeações que
tem feito. Durante a campanha foi ao ar
uma entrevista do candidato e hoje pre-
sidente, dizendo “nunca houve nenhum
risco de um filho meu casar com uma ne-
gra, porque eles foram bem educados”. E
ele virou presidente da República. Isso
afronta 56% da população brasileira, que
se declara parda e negra. Em todos os ca-
sos, isso é um horror, mas no nosso caso
é cabuloso, uma coisa horrível. Pensar
faz mal. Acho que agora, de fato, o Brasil
enxerga o verdadeiro “nós e eles”, ou um
“nós e eles” mais veemente. Por que dar
dinheiro para gente que vai votar con-
tra mim? Você começa a ter um raciocí-
nio desse tipo. É uma linha demarcató-
ria vulgar. Tirar verba de universidade
não é fazer economia. O momento não
tem nada a ver com educação, com me-
ta disso ou daquilo, com nada.

CC: A elite cultural está paralisada
diante de tudo que se passa. Por quê?
FP: Isso é o pior, por isso é preciso não
transigir com a intransigência. Eu não
sei. Os brasileiros não reagem de ma-
neira geral. Onde está a oposição? Para
mim, confesso, é um mistério. Houve al-
go que desmobilizou. Entendo que afe-
ta muito ter o maior partido de oposi-
ção com o principal líder na situação em
que está, primeiro preso, agora solto. Isso
afeta muito, cria um clima de paralisia,
algumas inibições. Quando há um ata-
que, quando o cara diz que a Fernanda
Montenegro é desprezível, ela reage, ou-
tros em nome dela reagem. Mas acho que
preexistia uma certa falta de articulação.

CC: Quando Michel Temer era pre-
sidente, ele ameaçou acabar com o
Ministério da Cultura, a comunidade
cultural reagiu e ele voltou atrás. Isso
não acontece neste momento.
FP: Não, não acontece. Eu confesso que
não sei por quê. Acho que em alguma
hora vai acontecer, talvez muito breve-
mente. Mas eu não sei, não consigo achar
causas que justifiquem esse comporta-
mento, até porque houve vários momen-
tos nos quais a combatividade foi posta à
prova e apareceu.

“EM UM GOVERNO
COMO ESTE, VOCÊ
TER A PRESUNÇÃO
DE QUE PODE
INFLUIR NA
FORMULAÇÃO DE
POLÍTICAS É INÚTIL”

CC: Outra pergunta é como fazer
frente a tudo. O senhor teria alguma
ideia?
FP: É o mais difícil. Como fazer frente? É
produzindo cultura, produzindo cultura
carregada de pensamento e espírito crí-
tico. Não vejo outra maneira. Em um go-
verno como este, você ter a presunção de
que pode influir na formulação de políti-
cas é inútil. Em outros governos foi possí-
vel. Tinha uma decisão da Ancine, os ar-
tistas se mobilizavam, iam ao presidente
da República. Havia essa margem insti-
tucional, mas hoje não existe. A melhor
esperança é que surge uma cultura de pe-
riferia que se estende, se amplia, é viva,
tem vida e tônus. Ela em si é uma reação e
uma novidade. Ela quer reagir a um mas-
sacre que as periferias sofrem e ao mes-
mo tempo quer produzir coisas.

CC: O episódio de Paraisópolis não
mostra que essa vertente também es-
tá sob ataque?
FP: Exatamente. E está muito sob ata-
que. Mas esta reage. Acho que daqui a
uma ou duas semanas vai ter outro bai-
le funk. Isso veio para ficar, tende a ficar
na paisagem. Mas são manifestações vul-
neráveis, vulneráveis à pancadaria da
polícia, por exemplo. Não digo que elas
não possam até, aqui e ali, recuar pelo
fato de sofrerem ataques às vezes muito
brutais. Mas elas existem. E não é só is-
so, tem muitas frentes da cultura brasi-
leira em que se está produzindo conteú-
do relevante, presente.

CC: Mais especificamente, como o
IMS enfrenta esse estado de coisas?
FP: O IMS tenta fazer frente, ou faz fren-
te, por meio da promoção de boas expo-
sições, cultura, muitas vezes uma cultu-
ra de resistência. Em 2020 vamos fazer,
em setembro, duas exposições autôno-
mas, não vinculadas uma à outra, uma
de Clarice Lispector e outra de Carolina
Maria de Jesus. É isso, é mostrar isso. É
fazer uma cultura de uma mulher tão de-
finida como foi Carolina, ou até fascinan-
temente indefinida em algumas coisas,
como foi Clarice. Carolina é uma primei-
ra voz de periferia, uma primeira voz de
percepção da vida pela escrita de uma fa-
velada. O instituto tem de botar em mo-
vimento a roda da circulação de ideias
contrastantes e relevantes. •

CARTA CAPITAL

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