local onde publico os textos & artigos maiores citados no BLOG0NEWS
de modo que os posts de lá não fiquem enormes.
January 5, 2020
Divergencias Patentes: O que pensa a cúpula militar brasileira
Foto Orlando Brito
ANA CLARA COSTA
Era junho de 2018, em uma cobertura no bairro da Asa Norte, em
Brasília, quando os três generais que desenhavam o programa de governo
de Jair Bolsonaro abandonaram suas planilhas e cronogramas sobre a mesa
para debater uma situação que os intrigava. Eles, que haviam chegado às
mais altas patentes antes de saírem para a reserva, agora trabalhavam
para a eleição de um ex-militar que, sem ter ascendido nas Forças
Armadas, tinha mais chances de se tornar presidente da República do que
qualquer um deles jamais teria.
“Fôssemos nós os candidatos, quantos votos teríamos?”, indagaram
entre si. “Não adianta qualquer um de nós ter conhecimento se não
atendemos à realidade”, argumentou um deles. Enquanto o outro arrematou,
categórico: “Não sei nem se eu votaria em mim”. A conclusão da conversa
foi a seguinte: eles não estavam diante de um candidato que era a soma
de “Madre Teresa, De Gaule, Churchill e Rui Barbosa”, disse um deles.
Mas reconheciam que Bolsonaro atendia às necessidades do momento. “O
Brasil estava diante de um precipício, prestes a cair”, avaliou um dos
generais, ao se referir à possibilidade de um candidato petista vencer. À
época, Fernando Haddad ainda não havia sido oficializado e Lula, mesmo
preso, dizia-se candidato.
A cena descrita acima dificilmente teria ocorrido, não fosse o
contexto político peculiar em que o Brasil se encontrava em 2018. Jair
Bolsonaro era o candidato que entoava o timbre mais forte contra o PT e
tudo que o partido representava. Só se tornara o representante da
maioria das altas patentes quando as demais candidaturas deram sinais de
que não vingariam.
“O general Pujol foi aconselhado a promover uma reaproximação com as
tropas tão logo assumiu o posto. Pujol não tem contas em redes sociais,
não dá entrevistas e não se pronuncia publicamente, exceto por meio de
comunicados ou portarias”
No Exército, a rejeição que coronéis e generais desenvolveram em
relação ao então candidato tinha origem em um conjunto de condutas
intrínsecas à formação militar — e que Bolsonaro, apesar de fazer a
defesa irrestrita da classe, por vezes se negou a cumprir. Ao deixar os
quartéis, em 1988, o hoje presidente havia golpeado alguns dos
principais pilares que sustentam a cartilha da caserna, ao proceder com
indisciplina e insubordinação — este último comportamento é considerado
crime militar. Em 1987, o então capitão de artilharia e paraquedista foi
acusado de planejar ataques a bomba em quartéis do Rio de Janeiro em
protesto contra os baixos salários da corporação. Em depoimento prestado
à época, reconheceu ter cometido uma “transgressão disciplinar” e
“deslealdade”.
A expulsão de Bolsonaro do Exército foi requerida pelo Alto-Comando,
mas ele terminou absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM). Saiu da
Força para a reserva obrigatória ao se eleger, em 1988, vereador pelo
Rio de Janeiro. Como ex-militar, era visto fazendo piquetes frequentes
contra as condições de trabalho e os salários pagos às patentes mais
baixas, muitas vezes insuflando sargentos e tenentes contra coronéis e
generais. Chegou a ser proibido de entrar em quartéis e não se
incomodava em fazer críticas públicas ao então ministro do Exército,
Leônidas Pires Gonçalves.
Ao mesmo tempo que os generais reservistas refletiam sobre a
candidatura na qual haviam se envolvido, na alta cúpula do Exército, o
tucano Geraldo Alckmin era visto como alternativa conveniente. Então
comandante-geral da Força, o general Eduardo Villas Bôas havia
recomendado ao general João Camilo Pires de Campos, ex-comandante
militar do Sudeste e recém-ingressado na reserva, que auxiliasse o
candidato paulista em sua campanha. As preferências dos generais da
ativa se dividiam entre Ciro Gomes e Alckmin. Mas o pedetista dinamitou
pontes com o Exército ao dizer, em sabatina promovida pelo Globo,
que uma declaração dada por Villas Bôas — de que a legitimidade do
próximo presidente poderia ser questionada por adversários — tinha o
intuito de “acalmar cadelas no cio que, embaixo dele, estão se
animando”. A frase, que fazia referência aos radicais das Forças, foi
recebida com indignação pelos comandos e implodiu os votos que Ciro
poderia vir a ter entre os mais graduados.
A indisciplina, no Exército, é falha grave sobretudo para quem está
na base, ocupando patentes mais baixas. Acredita-se, entre os generais,
que a disciplina seja fundamental não só para organizar a estrutura
militar, mas também para reprimir a agressividade das tropas mais
jovens, historicamente sujeitas a posturas intempestivas. Conclui-se,
portanto, que toda tropa violenta seja indisciplinada. Desde 1951,
quando foi criada a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em
Resende, no estado do Rio, há ênfase na disciplina como forma de atenuar
a impetuosidade entre alguns sargentos e tenentes. Esse conhecido traço
de parte da juventude do Exército inspirou o deputado Eduardo Bolsonaro
a se referir à hipótese de “um cabo e um soldado” bastarem para fechar o
Supremo Tribunal Federal (STF), no ano passado — declaração que causou
choque durante o período eleitoral. Também a essa parcela da juventude
militar o general Villas Bôas se dirigia ao postar, em uma rede social,
na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula,
em abril de 2018, uma frase que foi entendida como apelo para que o
instrumento jurídico fosse negado pela Corte. Villas Bôas havia escrito
que compartilhava “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à
impunidade e de respeito à Constituição”.
Há a convicção entre os generais de que a
anarquia que pairava sobre o Exército até os anos 50 acabou. Segundo
avaliam, desde que as primeiras turmas da Aman chegaram aos comandos
militares, não houve um caso grave de indisciplina e nunca mais oficiais
do Exército apontaram suas armas para suas próprias tropas, numa
referência aos episódios de conflitos entre militares na primeira metade
do século XX. Daí o fato de valorizarem a formação na Academia, que os
cadetes hoje deixam portando um diploma de bacharelado em ciências
militares, antes de partirem para o segundo passo da formação
obrigatória, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO).
Disciplina na Aman é acordar às 5h50 ao toque de corneta, rapidamente
fazer a higiene nos dormitórios e estar em forma para o café da manhã
às 6h20. É não ser dono do próprio tempo, chegar cinco minutos antes a
todas as aulas e se dedicar aos exercícios físicos com afinco, porque
obter más notas em atividades esportivas é tão prejudicial para o
currículo quanto falhar nas provas acadêmicas. Bebidas alcoólicas são
proibidas em qualquer hipótese. Então capitão do Exército, o general
Alberto Mendes Cardoso, que foi ministro da Casa Militar de Fernando
Henrique Cardoso, chamou Eduardo Villas Bôas, em seu quarto ano de Aman,
para uma conversa. Pousou a mão em seu ombro e lhe disse: “VB, estou
preocupado. Você sabia que tem gente tomando cachaça aqui?”. “Sério?”,
questionou o jovem aspirante. VB, como até hoje é conhecido o
ex-comandante-geral do Exército, fazia parte do grupo que eventualmente
tomava doses de cachaça contrabandeada para o quartel antes do jantar.
Depois da investida discreta do capitão, não foi mais visto na turma de
contraventores.
Após sofrer processo no Superior Tribunal Militar,
Bolsonaro deixou o Exército e decidiu se candidatar a vereador, em
1988. Foto: Luiz Pinto / Agência O Globo
Com o avançar dos anos e das condecorações, há
militares que passaram a se preocupar menos com a disciplina. Hoje
vice-presidente, o general Hamilton Mourão, já detentor de quatro
estrelas lustrando a farda, perdeu o Comando Militar do Sul, em 2015,
depois de dar declarações que constrangeram a alta cúpula perante o
governo do PT. Ao falar a oficiais da reserva, Mourão fez duras críticas
à classe política e convocou os presentes para “o despertar de uma luta
patriótica”. Em 2017, quando estava na Secretaria de Finanças do
Exército, voltou a criticar publicamente a política e insinuar uma
intervenção. “Ou as instituições solucionam o problema político, pela
ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos
em todos os ilícitos, ou então nós teremos de impor isso”, disse
Mourão, em uma palestra. A fala motivou nova saída do cargo. Em 2018,
ele foi para a reserva. O general havia sido uma liderança importante
nas Forças Armadas depois de servir em países em que a situação política
era delicada, em especial na Venezuela e em Angola.
Também a indisciplina fez o general Augusto Heleno, atual ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ser retirado do Comando
Militar da Amazônia, o de maior prestígio nas Forças, e enviado ao
Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército, depois de criticar a
política indigenista do governo Lula, chamando-a de “caótica”. De lá,
seguiu para a reserva. Ainda durante seu período de Amazônia, o general
havia cometido outras gafes. Em uma delas, instigou produtores de arroz a
se insurgir contra a demarcação de terras na área de Raposa Serra do
Sol, em Roraima. A revolta dos arrozeiros terminou com o sequestro de um
grupo de policiais que havia ido ao local para conter o conflito. Então
ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos preparou o resgate. Heleno
não teve nada a ver com o sequestro. Convicto de que a política de
demarcações era equivocada, transcendeu seu papel ao estimular a
revolta.
Ainda criança, Heleno seguia rotina militar de estudos em casa em
obediência a sua mãe, dona Edina, que era diretora de escola e rígida
com os deveres. A dedicação aos livros fez com que se tornasse um dos
poucos generais “tríplice coroados”, o que significa ter sido
condecorado como o primeiro da turma em todas as escolas pelas quais
passou. Sua trajetória na caserna foi acima da média. Antes dos 30 anos,
já servia no Palácio do Planalto. Foi adido militar em Paris e comandou
tropas duas vezes no Haiti antes de ir para a Amazônia. Em sua primeira
estada na ilha caribenha, quando um tenente sob seu comando se feriu em
batalha e teve de ser deslocado a um hospital na República Dominicana
sob o risco de perder o braço, o general tomou um helicóptero para
acompanhá-lo e garantir que ele receberia o tratamento devido no país
estrangeiro. Atitudes como essa causam admiração nas tropas.
“Com o avançar dos anos e das condecorações, há militares que passam a
se preocupar menos com a disciplina. Tanto o vice, Hamilton Mourão,
quando o ministro do GSI, general Augusto Heleno, perderam seus postos
depois de darem declarações indevidas”
Tantas credenciais detidas pelos dois generais não foram suficientes
para mantê-los nos cargos quando transgrediram as regras. E os tipos de
transgressão que cometeram foram vistos de diferentes formas dentro do
Exército. As alas que se mostravam mais indignadas com o PT (sobretudo
as baixas patentes) aplaudiam atitudes como as de Mourão e Heleno — e
viram em sua comunicação indisciplinada uma forma de coragem. Outros
grupos, mais moderados, enxergavam que os generais haviam ultrapassado a
linha e exposto politicamente o Alto-Comando. Outra leitura sobre os
episódios é que, cientes de que não ascenderiam ao posto de
comandante-geral, ambos já vislumbravam algum futuro político.
O aplauso das baixas patentes a declarações controversas e a
necessidade de Villas Bôas vir a público para pacificar os ânimos da
caserna são as veias mais expostas de um Exército que nutre divergências
acentuadas entre sua base e o alto generalato. Não à toa, o general
Edson Leal Pujol, tríplice coroado como Heleno e substituto de Villas
Bôas no comando do Exército, foi aconselhado a promover uma
reaproximação com as tropas tão logo assumiu o posto. Pujol não tem
contas em redes sociais, não dá entrevistas e não se pronuncia
publicamente, exceto por meio de comunicados ou portarias. Em uma das
últimas, divulgada em junho, recomendou que oficiais e soldados não
vinculassem as ações da Força a suas contas pessoais na internet. Nas
entrelinhas, a mensagem foi entendida como ordem para que oficiais da
ativa deixassem de fazer postagens sobre política. A Constituição veda
que militares tenham atividade política.
O general Eduardo Villas Bôas, assessor especial
do Gabinete de Segurança Institucional, no Palácio do Planalto. Ele
afirmou que se manter trabalhando após sua grave doença tornou-o
popular. Foto: Jorge William / Agência O Globo
As diferenças entre o que pensam os militares
mais jovens e os oficiais graduados são mais visíveis na Academia, em
especial na EsAO e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
(Eceme), que é o último filtro pelo qual passam antes de ascenderem ao
posto de general — menos de 5% dos que ingressam na Aman conseguem
chegar à última patente. O professor de relações internacionais na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Maurício Santoro deu
aulas e seminários na Aman e na Eceme ao longo de uma década e observou
mudanças importantes de pensamento — em especial nos últimos dois anos.
“Houve uma mudança de mentalidade parecida com a que ocorreu na
sociedade brasileira como um todo. Oficiais do Exército que sempre
acharam Bolsonaro um fanfarrão, de repente passaram a apoiá-lo, dizendo
que ele era uma solução, uma alternativa”, avaliou o professor.
Em termos práticos, Santoro relatou que, ante críticas desferidas
contra o governo vindas de professores ou alunos civis nas escolas
militares, há uma defesa forte por parte da maioria dos oficiais em
relação às ações do presidente. “Eles questionam como é possível
criticar se há tantos nomes bons ao lado do presidente. Isso demonstra
que, ainda que os generais de Bolsonaro estejam na reserva e o Exército
seja uma Força de Estado, há uma grande identificação desses oficiais
com o governo. Eles sentem que os militares são parte do governo
Bolsonaro, ainda que o próprio presidente tenha feito críticas aos
generais de seu entorno”, afirmou. O sentimento percebido nas escolas
nos últimos anos, segundo Santoro, vai na contramão de um movimento de
abertura das Forças Armadas em relação à sociedade. “Desde a
redemocratização, aconteceram avanços expressivos nas relações entre
civis e militares, inclusive na própria formação profissional. Nos
últimos dois anos, entretanto, vejo que esse legado está em risco”,
disse.
Divergências entre patentes no Exército são comuns, ainda que nem
sempre oficialmente expostas. Antes do golpe de 1964, quando os ânimos
entre militares eram mais acirrados, a Escola Superior de Guerra (ESG)
era um depositário de coronéis e majores que tinham poder de liderança
entre as tropas e, por isso, incomodavam os governos. Enviá-los para
batalhões nos grotões do país seria um desprestígio; dar a eles um
importante comando na Vila Militar poderia torná-los fortes demais;
então, eram enviados à ESG para estudar — sentiam-se prestigiados e, ao
mesmo tempo, eram temporariamente neutralizados. Ali se formou a elite
militar, parte da qual governou o país durante a ditadura. Hoje, a ESG,
vinculada ao Ministério da Defesa, perdeu a aura de etapa fundamental na
formação de um militar. Mas as divergências entre patentes perduram.
O general Augusto Heleno
As divisões na progressão da carreira são um
fator de discórdia. Oficiais que vão para a reserva em patentes mais
altas ganham mais vantagens do que aqueles que se aposentam como
tenentes ou capitães. Mudanças feitas no sistema de aposentadorias ao
longo das últimas duas décadas aprofundaram essa cisão. Mais
recentemente, durante a tramitação do projeto de lei que reestrutura a
carreira militar, pressões vindas de setores das baixas patentes
induziram a criação de uma nova categoria na carreira, a de
sargento-mor, no texto elaborado pelo Ministério da Defesa. A mudança
não foi bem vista pelas Forças Armadas, em geral, e terminou derrubada.
Bolsonaro sentiu o golpe da ira dos praças e chegou a sugerir que as
baixas patentes se manifestassem a seus superiores sua insatisfação com o
projeto. Tal ato foi visto com reserva pelos generais, que notaram na
atitude do presidente uma sinalização de rompimento de hierarquia.
Por sua atuação parlamentar, Bolsonaro manteve ao longo dos anos um
contato direto com as baixas patentes, que sempre foram sua principal
base eleitoral. Em sete meses como presidente, compareceu mais de 15
vezes a eventos militares relacionados às baixas patentes. Seus grupos
de apoiadores virtuais no WhatsApp têm forte presença militar — em
alguns deles o próprio presidente participa, conforme contou um de seus
amigos mais antigos, Waldir Ferraz, que trabalha para Bolsonaro há cerca
de 30 anos e hoje é funcionário do PSL no Rio de Janeiro. “É uma base
muito forte. Quando não é militar, é da reserva. Mas a grande maioria é
sim (militar)”, disse. Ferraz também ajuda a manter a base
virtual do presidente azeitada. Em suas mais de 1.000 conversas mantidas
pelo WhatsApp, em que Ferraz divulga assuntos de interesse de
Bolsonaro, misturam-se desde mensagens de apoio enviadas pelo juiz
Marcelo Bretas, da Lava Jato do Rio, até elogios vindos do ator Humberto
Martins. Na lista de transmissão, dezenas de sargentos, capitães e
coronéis.
A identificação da base do Exército com todos os temas caros ao
governo, contudo, não é unanimidade. Uma pesquisa feita pelo núcleo de
estudos militares da PUC-Rio com mais de 2.700 membros das mais diversas
patentes mostra viés progressista na relação do Exército com temas
comportamentais, em muitos casos sensíveis aos ouvidos do presidente
Jair Bolsonaro. Mais de 70% dos entrevistados mostraram ser favoráveis à
presença de mulheres nos postos de comando da carreira e também
acreditar que cabe às mulheres, e não ao Estado, a decisão sobre
interromper uma gravidez. Mais de 60%, em média, também se manifestaram
favoravelmente à presença de professores homossexuais em escolas
públicas. Tal resultado coincide com a visão mais moderada de coronéis e
generais — e essa ambiguidade interna se apresenta como explicação
possível dos constantes “contrapontos” feitos pelo vice-presidente, o
general Hamilton Mourão, às opiniões de Jair Bolsonaro sobre temas como
aborto e religião. Depois de ser atacado nas redes sociais pelos filhos
do presidente, Mourão recuou, mas conseguiu imprimir junto à opinião
pública e às próprias Forças traços de moderação que faltam ao
presidente.
Ainda que a hierarquia seja um princípio fundamental da formação
militar, seu funcionamento é intrínseco a outro pilar — a liderança. Há
consenso entre praças e generais sobre isso: em combates, não há como
conduzir uma tropa apenas com disciplina e autoridade. “Se você é
autoritário e não respeita subordinado, você logo sofre uma denúncia. Só
com autoridade você não consegue conduzir. Por exemplo, o sujeito vai
ser denunciado no Ministério Público por um desvio no refeitório. E,
mesmo que não seja verdade, isso cria um problema enorme para o
comandante. Na verdade, aquele indivíduo não está preocupado com o
desvio, e sim em atingir aquele comandante que está faltando com a
liderança”, contou o general Villas Bôas, que, antes de ser
comandante-geral do Exército entre 2015 e 2018, chefiou o Comando
Militar da Amazônia e a EsAO.
“Pesquisa entre militares de diversas patentes mostrou que 70% são
favoráveis a mulheres no comando e dizem que cabe a elas, não ao Estado,
a decisão de interromper ou não gravidez. A base militar está descolada
de radicalismo em temas comportamentais”
Entre os mais de dez generais da ativa e da reserva, além de
ministros e ex-ministros ouvidos por ÉPOCA, Villas Bôas foi apontado por
todos como uma das principais lideranças militares que já surgiram nas
Forças Armadas, apesar das limitações recentes impostas por sua doença, a
esclerose lateral amiotrófica. “Ele é um ícone para nós. Por seu poder
de articulação, de liderança”, disse o general da reserva Eduardo
Barbosa, presidente do Clube Militar do Rio de Janeiro. Villas Bôas
atribuiu os elogios a uma “aura” que disse ter se formado em torno dele
depois que decidiu continuar trabalhando, apesar da doença e da cadeira
de rodas que usa para se locomover. Também contribuiu para isso o fato
de ter estado no comando do Exército em períodos delicados da história
recente, como o impeachment de Dilma Rousseff e o governo Temer. “Mas
não sou melhor que ninguém. Todos os oficiais que chegam ao Alto-Comando
passaram por muitos filtros, os mesmos filtros”, disse o general, que
hoje, na reserva, exerce a função de assessor especial no GSI.
Diferentemente de Villas Bôas, que é considerado um líder
estratégico, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido por
Bolsonaro da Secretaria de Governo em junho, é um exemplo de liderança
direta, atributo necessário para ser um bom comandante em combate. Chefe
da primeira missão ofensiva da história da ONU, com autorização para
atirar, Santos Cruz tinha uma característica específica para exercer
liderança sobre as tropas — em grande maioria composta de estrangeiros.
Em vez de ficar na retaguarda, com seu Estado-Maior, acompanhava as
manobras na linha de frente, com os mais jovens. A quem lhe perguntasse a
razão, Santos Cruz respondia que “a rapaziada mais jovem era mais
afoita” e que, por consequência, ele também “ficava mais corajoso”.
São poucos os militares brasileiros que puderam gozar de tal
experiência fora do país. A grande maioria fica no Brasil e tem como
principal função ajudar a colocar em prática a estratégia da “presença”,
que leva esse nome porque em muitos locais remotos o Exército é a única
possibilidade de atendimento do Estado às necessidades básicas da
população. Dentro dessa estratégia está a proteção da Amazônia —
território que os militares conhecem bem e cuja opinião sobre a
preservação do bioma coincide com a do presidente Jair Bolsonaro. Há
consenso dentro das Forças Armadas, em que persiste certo viés
conspiratório, de que os ataques estrangeiros à política ambiental
nacional escondem interesses econômicos que podem ferir a soberania do
Brasil. Tal percepção é acentuada pelo arraigado sentimento
territorialista dos militares, que atinge seu ápice em sua relação com a
Amazônia. Em evento em Brasília, em 6 de agosto, o general Villas Bôas
criticou países que têm se mostrado em desacordo com a política
ambiental do governo, como é o caso da Alemanha e da Noruega. “É curioso
que países como a Noruega se considerem com autoridade moral de apontar
o dedo para o Brasil. A Noruega está entre os três países do mundo que
pescam baleia. É o único país do mundo que explora petróleo dentro do
Círculo Polar Ártico. É dona de 30% daquela empresa que provocou
criminosamente o derramamento de metais pesados no Pará”, afirmou o
general.
A questão ambiental tem se mostrado um dos poucos pontos de
intersecção entre o que pensam as altas patentes militares e o governo
Bolsonaro hoje. Há discordâncias no campo da diplomacia, que vão desde o
alinhamento automático aos Estados Unidos até a indicação de Eduardo
Bolsonaro como embaixador. Eles divergem também na estratégia de não
formar uma base de apoio político e na ideia de privatizar estatais,
como a Petrobras.
Se, no início do governo, havia uma intenção dos militares em
incorporar o papel de servidores do alto escalão do Estado depois de
estarem por 30 anos relegados à condição de coadjuvantes do poder, hoje
há uma preocupação patente em fazer com que, à luz da história, a gestão
de Bolsonaro não seja lembrada como um governo militar. Para reforçar
essa ideia, militares recorrem ao expediente de que os generais
presentes no Executivo são todos da reserva — com exceção do general
Luiz Eduardo Ramos, que se licenciou do Comando Militar do Sudeste para
assumir o cargo de Santos Cruz na Secretaria de Governo. O Exército, em
si, permanece silencioso, cabendo apenas ao ministro da Defesa, Fernando
Azevedo e Silva, o respaldo político da instituição.
Segundo o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, a grande
contribuição dos militares é sua visão de Estado. “Nós sabemos que é
preciso planejamento de Estado, políticas que perdurem independentemente
do governo que entrar. Um vai um pouquinho mais para cá, outro um
pouquinho mais para lá, mas o rumo é um só”, afirmou.
Isso não quer dizer que militares estejam imunes a erro, conforme
apontaram todos os que foram ouvidos pela reportagem. Episódios
recentes, como a prisão do sargento da Aeronáutica que carregava 39
quilos de cocaína em um voo que acompanhou a comitiva presidencial ao
G20, no Japão, e o assassinato de dois civis com mais de 62 tiros em uma
comunidade no Rio de Janeiro, são emblemas de que eles estão muito
longe de ser os guardiões da perfeição. Quando se entra na Aman, a
primeira lição a ser aprendida é que não se cola nas avaliações — e que
quem cola não prospera. Todos os militares ouvidos pela reportagem
repetiram essa regra fundamental para a convivência meritocrática no
Exército. Supor, num universo tão grande, que ninguém cola é jogar com
uma improbabilidade. Alguns generais nunca esqueceram que Aurélio de
Lira Tavares, quando estava na escola militar, colara de seu colega
Orlando Geisel. Ambos, contudo, chegaram ao generalato e ao posto de
ministro do Exército.
No comments:
Post a Comment