'Está em nossas mãos soltar os bichos que povoam nossas mentes e corações sem medo de enfrentar a ignorância e a violência', escreve produtora
Parece não haver dúvida de que aponta para um projeto sombrio e perigoso, autoritário e medíocre do que deva ser a arte em suas diversas manifestações. Parece ainda querer negar aquilo que está assegurado na Constituição, em seu artigo V, que é explícito quanto à liberdade de expressão. Parece ainda ignorar que o Brasil é um país laico. E, por fim, parece querer traduzir nossa cultura como uma mera agente de um projeto marxista, o que talvez seja bastante intraduzível para a maioria dos intelectuais do planeta, a ponto de merecer críticas de representantes mundiais presentes na última reunião da Unesco. Tudo se aproxima do ápice da distopia quando o presidente da Fundação Palmares nega haver racismo no Brasil .
São declarações que constrangem o Brasil e nos geram indignação e vergonha, além de imensa preocupação. Mas, uma vez que a verborragia já soltou seus demônios, essa galera precisa pôr em curso seu plano prático de extermínio do que considera “imoral” ou “ideologicamente contrário” aos seus interesses. E aí reside nossa esperança. Porque, enquanto “palavras ao vento” também fazem parte da liberdade de expressão, cada medida que caminhe na direção de sufocar nossa liberdade de expressão terá enfrentamentos jurídico-constitucionais consistentes.
Afinal, como disse a ministra Cármen Lúcia: "censura não se debate, censura se combate" . E mais do que tudo: a produção cultural é mesmo uma boa “balbúrdia”. Ela foge do controle dos que a querem sufocar, uma vez que com um banquinho e um violão pode-se fazer uma multidão cantar. Da mesma forma que uma peça de teatro pode ser encenada nas ruas, um filme pode ser exibido nas redes sociais, uma obra literária pode ser lida online e a arte visual pode ser exposta na janela de casa. E aqui me lembro que nos anos Collor, quando a Embrafilme foi extinta deixando todo cinema brasileiro à deriva, Sergio Rezende e eu decidimos fazer um filme. Reunimos os amigos, técnicos e atores, e através da penhora de um apartamento de meus sogros conseguimos financiamento para realizar um filme. E realizamos. Nome do filme: "Lamarca, o coração em chamas".
Existe algo incontrolável e belo no curso da história da produção cultural brasileira: ela floresce mesmo nos momentos mais áridos. E isso está em nossas mãos. Soltar os bichos que povoam nossas mentes e corações sem medo de enfrentar a ignorância e a violência que permeiam o discurso fascista em curso.
Como tenho 67 anos e começo a olhar meu relógio com mais comedimento, consciente de que ele tem prazo de validade (desconhecido, porém tem prazo), comecei a fazer uma contagem regressiva do tempo que falta para que o Brasil se livre desse governo de verdades impostas por uma ideologia inqualificável. Um pouco mais de três anos... Terei chegado aos 70 e com certeza verei nossa gente bronzeada mostrar seu valor e desafiar com inteligência, alegria, talento e coragem essa seita que daqui a pouco desaparecerá, ou pelo menos deixará de ocupar postos de relevância nas estruturas governamentais do Brasil. Então mãos à obra, arregacemos as mangas e entrelacemos nossos dedos com afeto. Essa gente deve morrer de medo da nossa capacidade de amar e da nossa liberdade de criar.
* Mariza Leão é produtora de "Guerra de Canudos", "Meu passado me condena" e "O paciente — O caso Tancredo Neves", entre outros
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