Thiago Amâncio
"Pô, quando eu vejo essas notícias, volta tudo, né? Eu queria um dia falar pessoalmente para a família da Marielle: É melhor vocês orarem pela alma dela, porque vocês não vão arrumar nada com o estado. Olha eu aí, vai fazer 11 anos."
O autor do recado é Nilton Claudino, 61. Fotógrafo aposentado, não porque assim tenha decidido, mas para poder manter-se vivo.
Contratado no jornal O Dia, Claudino investigava, disfarçado, a atuação de uma milícia em uma favela no Rio de Janeiro, em 2008, quando foi capturado e torturado por sete horas e meia, com um motorista e uma repórter.
"Quando nós fizemos a matéria, você contava nos dedos quantas comunidades eram dominadas pela milícia. Hoje, dominam o Rio todo", diz ele, num inconfundível sotaque carioca e um "meu irmão" como marcador em cada frase.
Aos 61, Claudino está assustado com o tamanho que esses grupos criminosos atingiram. Inicialmente formados por policiais, bombeiros e agentes penitenciários que monopolizavam serviços como venda de gás e TV a cabo pirata em determinadas regiões, atuando como mafiosos, as milícias hoje possuem poderio comparável ao do tráfico de drogas --atividade que passaram a exercer também.
O atentado à vereadora Marielle Franco faz Claudino relembrar seu pesadelo, vivido há 11 anos, assim como o discurso adotado pela família Bolsonaro --o presidente já defendeu a atuação desses grupos em sessões públicas quando era deputado, e Flávio Bolsonaro empregou familiares de milicianos em seu gabinete.
"Você acha que isso vai parar? Você acha que é só ex-policial, ex-bombeiro? Porra, prenderam o cara [suposto assassino] da Marielle, ele mora no condomínio do Bolsonaro", diz. O presidente disse que não se lembra do suspeito.
"A minha vida é isso aí. Eu não tenho paz. Se eu olhar para um PM, eu já abaixo a cabeça. Sabe quem não olha no olho de um PM? Tá devendo. É bandido. E eu me sinto assim."
Claudino passou por sete horas e meia de tortura depois de viver duas semanas disfarçado, registrando a ação de policiais em um grupo criminoso que extorquia moradores do morro do Batan, no Realengo, zona oeste do Rio.
Ele começou no jornalismo pela porta dos fundos: contratado pela editora Abril como mensageiro, foi alçando cargos administrativos até parar na revista Placar como assistente de produção.
Convidado a escrever sobre uma partida de futebol, recusou. "Como que não quer, meu irmão? Tu vai ser repórter", foi a reação do jornalista Marcelo Rezende, conta Claudino. "Falei: 'Quero ser repórter fotográfico. Amo fotografar'."
Foi aí que fez a primeira cobertura escondido. "Os caras não deixavam eu entrar no gramado do Maracanã. Começaram a me perseguir e eu fotografei de dentro do placar eletrônico, com minha câmera em um buraquinho", diz.
Da Placar, Claudino foi para o Jornal do Brasil, O Dia e a TV Globo. Trabalhou com o amigo Tim Lopes (1950-2002), angariando prêmios ao longo da carreira.
Em 2001, em sua segunda passagem pelo O Dia, disfarçou-se de morador da favela da Maré para investigar a milícia Comando Azul.
"Um dia, um morador me abordou: 'Vocês têm que sair da favela, fodeu, os caras acharam teu equipamento.' Fomos embora e publicamos a matéria. Caiu o comandante do batalhão."
Em uma entrevista em 2007, Claudino relatou uma emboscada de traficantes enquanto fotografava uma plantação de maconha no Paraguai. "Prometi nunca mais me envolver em matérias do gênero."
Mas se envolveu. Em 2008, veio o convite do editor do jornal: investigar uma milícia no morro do Batan.
"Todo jornalista que frequenta favela no Rio de Janeiro tem que ser meio artista. O repórter do caso do Comando Azul fingia que mancava, arrastava o pé. Eu, naquele meu jeitão de índio, passava por morador."
Uma coisa que Claudino não sabia, no fim, se mostrou perigosa: a pauta no Batan foi sugerida por um motorista do jornal que havia crescido naquele morro e cujos pais e avós ainda moravam lá.
"O cara morava na favela, foi criado com o chefe da milícia. Era a maior furada. Se nos descobrissem, o cara e a família toda estariam perdidos"
Antes de se mudar para o morro, por três sábados ele foi até o local. "Ficava no bar olhando os caras jogando sinuca. Falei que vinha de Mato Grosso do Sul e que estava esperando ser chamado para um emprego. Disse que minha mulher vinha de Minas Gerais e tinha me livrado do alcoolismo, porque era da igreja."
No dia 1º de maio, os dois se mudaram para o terceiro andar de uma casa. A repórter arrumou um emprego em um bar como cozinheira e passou a frequentar uma igreja. Mobiliaram a casa com móveis usados, doados e vendidos por vizinhos, de quem tinham conquistado a confiança.
"Chegou uma hora, eu tava fazendo churrasco, pô, com os caras da milícia."
Semanalmente, iam a uma LAN house fora da favela de onde enviavam relatórios ao jornal, dando detalhes do que viam: policiais fardados achacando moradores. Encontraram sites onde a milícia e o crime organizado exibiam orgulhosos fotos de suas vítimas.
Depois de mais ou menos dez dias, quando já se davam por satisfeitos, um político foi à favela fazer campanha e o jornal pediu que ficassem para ver se flagravam compra de votos. Ficou acordado que iriam embora em 15 de maio.
"Deixei para fazer as fotos no último dia, para não correr risco. De dentro do carro, sem flash, fotografei os caras fazendo churrasco, fardados, bebendo com a Madalena, um caibro desse tamanho. Dele eu tinha medo."
Além do porrete chamado de Madalena, portavam um taco apelidado jocosamente de "direitos humanos" e um chicote chamado "Catarina", relatou Claudino à polícia depois.
Após tirar as fotos, combinou de assistir a um jogo do Botafogo com o motorista do jornal. "Já estava combinado que eu ia embora no dia seguinte. Ia na kombi dos milicianos, os caras iam me levar na rodoviária. Olha que loucura."
"Tomei um banho e desci. Quando chego na lanchonete, bicho, já vem aquele carro, os caras de AR-15. 'Filha da puta', eu já tomei uma mãozada no ouvido. E aí, mermão, falei, fodeu, todo mundo morto."
A acusação: "Jornalista filho da puta, atrapalhando nosso trabalho". Haviam sido descobertos. Àquela hora, a favela estava cheia, e a humilhação foi um espetáculo público.
Colocaram num carro fotógrafo, repórter, motorista e um morador da favela que não tinha a ver com a história, todos encapuzados. Foram até uma casa em outra favela.
Em uma sala, algemados, ouviu o motorista gritar que tinha escorpiões em suas costas. Não paravam de apanhar.
"E eu ouvia e via uns coturnos vindo. Vivi no meio de polícia, não vou saber o que é coturno? E ouvi os camburões chegando. Carro de polícia no Rio não tem manutenção e tem um barulho específico, de cano de descarga fodido. Ouvia os carros chegando, um por um, devia ter uns cem homens ali dentro".
Foram levados a uma outra sala. "Tinha uma luz mais clara. E aí, mermão, aí foi foda. Aí eles pegavam um saco, botavam em mim, e a repórter na frente. Eles tiravam de mim, e eu uuhh [imita o barulho da asfixia].
Eles tiravam de mim e botavam na repórter. Da repórter vinha pra mim. E eu pedi duas vezes pra não fazer, porque ela era mulher. Os caras botavam duas vezes em mim, e uma vez nela. E aí eu fui quase morrendo."
Claudino tentou argumentar. "Eu tenho a maior moral dentro do jornal. Sou amigo da dona. Vamos conversar. Não faz isso comigo. O jornal sabe onde eu tô, se vocês me matarem estão ferrados, os caras sabem quem são vocês."
Os milicianos pediram endereços de email e senha dos torturados e enviaram por rádio a outras pessoas. Minutos depois, alguém chegou trazendo folhas impressas. "Pegaram o email da repórter. Maluco, as matérias todas lá. Já tinha mandado tudo, os nome dos caras". Apanharam mais.
Em uma sala ao lado, tiraram seus sapatos, colocaram todos sobre uma poça de água e passaram a dar choques elétricos. "Aí apaguei. Vi meu corpo, meu espírito saindo do meu corpo. Juro por Deus. Meu corpo lá, tentando se salvar, acordar, mas meu espírito já estava fora", relata Claudino, pela primeira vez chorando durante a conversa.
Claudino via pneus queimando em uma favela em frente, dominada pelo Comando Vermelho. "Eles falavam que iam matar a gente lá e colocar a culpa no tráfico."
Por volta das 5h, levaram-nos até a casa dos pais do motorista. Buscaram a câmera que ficou na casa da avó dele. "Olharam as fotos, ficaram putos, me deram mais um cacete ali. Aí o cara falou 'Agora você vai me ensinar a mexer nessa máquina, que eu vou fotografar vocês. Se essa matéria sair, sabemos onde você mora."
Na dúvida do que fazer com eles, diz Claudino, chamaram os moradores até uma praça. "Diziam que a gente ia morrer apedrejado, igual à Madalena".
Decidiram soltá-los, sob ameaças --não queriam atrair holofotes como no caso de Tim Lopes, morto seis anos antes. O pai do motorista os levou de carro até a estação da Leopoldina. Evitaram a avenida Brasil.
"Pensei que iam matar a gente lá, chega um cara, metralha e acabou."
No carro, a repórter gritava, desesperada, acusando um jornalista d'O Dia de tê-los delatado. Os milicianos a chamaram por um apelido pelo qual era conhecida na redação e descreveram as mesas deles no jornal com detalhes.
Já em casa, telefonaram para o diretor do jornal e planejaram o que fazer. Foi quando viu que o pesadelo só começava. Mentiu no hospital que tinha caído de um cavalo. "Aí começou a fuga. Entramos num táxi, 'vup' para Friburgo, Teresópolis, minha família foi para o Nordeste, eu para o Pantanal, dali pra Bolívia."
"Todos os dias pensava em me matar. Não virei um animal não sei por quê. Eu sei. Porque minha fé salvou minha vida." Foi morar em Florianópolis com a família, por recomendação do então ministro da Justiça, Tarso Genro.
Um dia antes de se mudar para o Batan, Claudino tinha recebido R$ 900 mil por uma ação trabalhista contra o Jornal do Brasil. "Só eu e meu advogado sabíamos que esse dinheiro estava na minha conta."
"Em Florianópolis, eu ia ao banco, pegava R$ 5.000 por dia. Botava R$ 1.000 numa igreja, R$ 500 na outra. Ia ao centro espírita, comprava cobertor, material escolar. Saía distribuindo aquele dinheiro. Comecei a pagar meu tratamento por fora, nem cobrava do jornal. Quando eu vi, não tinha mais dinheiro."
Seu cachorro morreu na época. "Era meu único amigo". Foi o estopim para que Claudino sumisse por 15 dias. "Quando voltei, a PF estava atrás de mim. Falei pra minha mulher: 'Não posso ficar perto de vocês, vou ficar louco'." Foi embora.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em segunda instância, negou indenização do estado do Rio a Claudino.
Um acordo trabalhista com o jornal O Dia previa que a empresa lhe pagasse R$ 1,315 milhão em 124 parcelas. Desde janeiro de 2018, porém, não recebe --o que tem lhe causado dificuldades financeiras, já que não pode mais trabalhar. O jornal entrou em recuperação judicial naquele mês e 53 parcelas ficaram pendentes, segundo a direção da empresa, por questões legais.
Procurado, O Dia diz que a situação de Claudino deve ser resolvida em até 120 dias. As torturas a que ele e os colegas foram submetidos renderam condenação de 31 anos de prisão a dois homens.
Considerado chefe do grupo criminoso, Odinei Fernando da Silva, que era inspetor da Polícia Civil, está desde 2016 em liberdade condicional. Davi Liberato de Araújo também tinha o benefício até ser preso em dezembro do ano passado se passando por policial para extorquir comerciantes.
A história foi parar em Tropa de Elite 2. Mas, no filme, os jornalistas não são soltos. "Meu filho de 15 anos um belo dia me liga, chorando pra caralho, gritando. 'Pai, botaram a tua história, você tá morto'. Que filha da puta, né, bicho, o cara pegou minha história e botou lá."
Visitar o Rio, diz, só do alto do avião. "Esqueci o rosto de muitos amigos depois dessas minhas fugas, depois da tortura, depois dos remédios."
Claudino diz que nunca mais ouviu falar da repórter e do motorista. "Não quero saber, porque se me pegarem não tenho quem caguetar."
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