Gustavo Pacheco
Em 24 de fevereiro de 1966, o Correio da Manhã publicou um artigo intitulado “Chave de Ouro sai à rua com muita pancadaria”, sobre o tradicional bloco carnavalesco que desfilava nos subúrbios cariocas na Quarta-Feira de Cinzas, sem licença da polícia:
Os conflitos entre a polícia e os populares continuaram até que um soldado da PM atirou uma bomba dentro da farmácia Chave de Ouro e feriu nos olhos a menina Zilmar de Oliveira, de um ano e seis meses, que ali estava nos braços de sua mãe, que comprava aspirina. A pancadaria só terminou com a chegada do Capitão Ronaldo Maciel, que exigiu mais cautela de seus subordinados e permitiu o desfile desde que o bloco fosse acompanhado pelo choque da PM.
No Carnaval do ano seguinte, o Correio da Manhã noticiava que o bloco tinha conseguido sair “cantando a marcha da Colombina Iê Iê Iê, com uma letra modificada em sátira à polícia, cuja aproximação pôs os integrantes do grupo em fuga”. A nova letra da marchinha dizia: Ô polícia, onde vai você?/Eu quero ver/O pau comer. Segundo o Jornal do Brasil, para tentar conter os foliões, foram mobilizados uma companhia de cavalaria, cinco pelotões de choque da PM e quatro viaturas da temida Invernada de Olaria, delegacia da Polícia Civil famosa pela violência. Tudo em vão. A matéria trazia uma foto de policiais de capacete, com a seguinte legenda: “A Polícia Militar mobilizou dezenas de homens para impedir a saída do bloco, mas ainda este ano foi ludibriada”. Mas o que o Chave de Ouro tinha de tão subversivo?
Se um dia alguém levar a sério a tarefa de escrever a história do Carnaval de rua do Rio de Janeiro, o resultado deve ficar mais próximo de Macunaíma do que de Raízes do Brasil. Apesar da importância central dos blocos carnavalescos para a memória e a identidade cariocas, a maior parte de sua história só pode ser encontrada nas lembranças nebulosas de quem estava lá. As fontes disponíveis — incluindo, é claro, a memória dos foliões — são cheias de lacunas, contradições e histórias “criativas”; natural, já que os principais atores e testemunhas dos acontecimentos não primavam pela sobriedade. De qualquer forma, se um dia essa história for escrita, o Chave de Ouro terá lugar de destaque. Sua trajetória é praticamente um tratado sobre como nasce, floresce e murcha um bloco de sujos. Faz também calar a boca todos aqueles que teimam em reduzir o Carnaval a um fenômeno de “alienação das massas” e outros clichês semelhantes.
Na Quarta-Feira de Cinzas do ano seguinte, o dono do cinema, precavido, chamou a polícia para evitar qualquer bagunça. O que aconteceu a seguir é narrado por um dos fundadores do bloco, Nelson Duarte, em entrevista dada ao Jornal do Brasil em 1971: “Você precisava de ver: foi igual manteiga em nariz de gato. Juntou logo uma comarca para saber o que estava acontecendo. Nêgo pensava que tinha gente morta dentro do cinema. Foi juntando e juntando até que a polícia começou a baixar a lenha. Aí o pessoal compreendeu. Tava formado o bloco”. Na época da entrevista, Duarte tinha 41 anos (“Tão gasto pela boêmia que parece ter 60”) e sua descrição corresponde praticamente ao arquétipo do boêmio dos subúrbios do Rio de Janeiro: “Magro, bigodinho fino, de chinelos, no pescoço uma medalha de São Jorge toda cravejada em brilhantes”.
Na década de 50, o Chave de Ouro já era uma lenda na cidade, atraindo gente de bairros distantes ao Engenho de Dentro só para ver os foliões desafiar a polícia. Era um bloco de sujos clássico: bateria improvisada com um ou dois surdos e algumas latas velhas, fantasias feitas com qualquer coisa que estivesse à mão, sem cordão de isolamento, sem liderança clara, sem licença da polícia nem de qualquer outro órgão público. Enfim, a síntese da anarquia e da liberdade carnavalescas, sempre tão incômodas para aqueles que nunca vão aceitar que a grande contribuição do Brasil para o mundo é esculhambar a civilização ocidental. Uma dessas pessoas, o delegado Pedro Paulo, declarou ao Jornal do Brasil que “o Chave de Ouro só tem marginais, que saem para fazer baderna e roubar”.
Comentário de Nelson Duarte: “Essa não. Ele está mais por fora que arco de barril”. Ao ser questionado sobre se o bloco tinha algum líder, ele respondeu: “Que líder que nada. Só se for o delegado que diz que nós somos ladrões. A televisão e os jornais dão a maior cobertura e, como o bloco já está famoso, vem gente até de Niterói e Petrópolis só para ver. Mas como ninguém pode ver que leva borrachada, essa turma também sai correndo e aí vira componente do Chave de Ouro. A polícia é quem lidera a fuzarca”.
Mas não eram só os políticos que ficavam incomodados com o Chave de Ouro: a Igreja Católica se escandalizava com um bloco que violava a Quaresma, e a polícia não achava nenhuma graça nas provocações, que incluíam o enterro de delegados e chefes de polícia no caixão de papelão. Com o passar do tempo, a repressão foi ficando cada vez mais acirrada, o que só aumentava a fama do bloco e a disposição dos foliões. O Chave de Ouro conseguia burlar o forte aparato repressivo com táticas como a divisão em pequenos grupos que saíam simultaneamente de lugares diferentes, desnorteando a polícia. Além disso, sempre que o pau comia, os integrantes se dispersavam e se refugiavam na casa dos moradores, que apoiavam o bloco e escondiam os instrumentos e cartazes; assim que a polícia saía de cena, eles voltavam e recomeçavam a bagunça. Ou, como resumiu um morador, em depoimento ao Correio da Manhã: “O pessoal do Chave de Ouro é vivo, sai, desfila um pouquinho e some; eles entram em qualquer casa, o pessoal daqui é chapa; depois que a polícia se afasta, eles tornam a sair e assim conseguem desfilar aos pouquinhos”.
À medida que a ditadura militar se tornava mais violenta, a repressão ao Chave de Ouro também aumentava. No Carnaval de 1969, o primeiro após o AI-5, a manchete do Jornal do Brasil era “Chave de Ouro sai em luta contra o lacrimogêneo do Dops”. A matéria do Correio da Manhã narrava a seguinte cena após a prisão de um folião:
“O homem (um escuro) que a PM prendeu é agredido e preso na Radiopatrulha 8-191. Os moradores ficam revoltados. Uma senhora se aproxima e diz:
— A senhora passou o Carnaval todo dormindo, eu fiquei acordado zelando pela segurança da cidade, comigo é na lei do cão, Carnaval já acabou e eu não brinquei nada”.
Nesse mesmo ano, a PM tocava fogo nos cartazes do bloco quando os fotógrafos dos jornais começavam a registrar o que estava acontecendo. A polícia foi atrás e arrancou o filme das máquinas — pela primeira vez, a matéria do Correio da Manhã saiu sem fotografias.
No Carnaval de 1971, a repressão ao bloco chegou ao auge. Segundo o Correio da Manhã, foram mobilizados 35 viaturas e 200 policiais, que bloquearam as principais vias de acesso ao bairro. O jornal informava que Nelson Duarte fora “detido com uma relação de contribuintes do comércio para a saída do Chave de Ouro” e seria autuado como “achacador e perturbador da ordem pública”. O delegado Silvio Ribeiro Fernandes, da 26ª Delegacia de Polícia, tinha sido informado de que, naquele ano, o bloco tinha feito não um, e sim dois caixões, e em um deles estava o nome do próprio delegado. Fernandes ia de porta em porta, perguntando aos moradores: “O senhor tem um caixão dentro de sua residência?”. Diante da resposta negativa, o delegado agradecia e dizia: “Acredito em sua palavra. Boa tarde e desculpe”. Nada disso, é claro, intimidou os foliões, que mais uma vez brincaram de gato e rato com a polícia. Um folião declarou ao Correio da Manhã: “O nosso negócio é somente gozar a polícia, e se ela não aparecer o bloco acabará morrendo”.
A partir daí, a história do Chave de Ouro foi outra. O bloco continuou desfilando, mas era evidente que tudo tinha mudado. No Carnaval de 1974, segundo matéria do Correio da Manhã, “30 mil pessoas participaram do quase nostálgico desfile, antes turbulento, do bloco Chave do Ouro”. O delegado saiu na frente do cortejo, novamente acompanhado do administrador regional, que agora era candidato a deputado estadual nas eleições daquele ano, apresentando-se como “o que deixou o bloco Chave de Ouro sair na Quarta-Feira de Cinzas, com proteção da polícia”. Ele não foi eleito. Ainda segundo a matéria, cujo intertítulo era “muito barulho, pouca alegria”, o “melancólico desfile” se encerrou com mais discursos das autoridades: “Nas esquinas, muitos homens idosos lembravam com saudades dos tempos em que ‘o pau comia, mas havia animação de verdade’”. No Carnaval de 1978, o Jornal do Brasil publicou uma matéria intitulada “Fundador admite que o bloco Chave de Ouro perdeu a graça”: “Agora o bloco não tem mais graça, desabafou o diretor do bloco Chave de Ouro, Nelson Duarte”.
Gustavo Pacheco é diplomata e colunista de ÉPOCA
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