No país do rentismo, a indústria divide-se entre quem
se rebela contra as altas taxas e quem lucra com elas
POR ANDRÉ BARROCAL
Na última reunião sob a batuta
de Roberto Campos
Neto, escolhido por Jair
Bolsonaro, para decidir a
taxa básica, o Banco Central
a subiu pela terceira vez seguida. O
anúncio na quarta-feira 11 colocou a Selic
em 12,25% ao ano, o que faz do Brasil
o vice-campeão mundial de juro real,
cerca de 9,5%, descontada a inflação. A
Turquia é ouro (13%). A Rússia, nação em
guerra, bronze (em torno de 9%).
Conter a inflação foi a justificativa
apontada pelo BC em comunicado para
elevar a taxa em 1 ponto porcentual e
avisar que repetirá essa dose duas vezes
em 2025, quando Campos Neto terá dado
lugar a Gabriel Galípolo, escolhido por
Lula, no comando da autoridade monetária.
“Incompreensível e totalmente injustificado”,
comentou a Confederação
Nacional da Indústria, em uma nota pública
após a alta da Selic.
Na véspera da reunião do BC, a CNI
havia emitido outra nota e criticado a hipótese
de o banco não só manter o juro ladeira
acima, como de fazê-lo mais do que
em setembro (0,25 ponto porcentual) e
novembro (meio ponto). “Seria uma medida
excessiva em termos de controle da
inflação e apenas traria restrições adicionais
ao crescimento do País”, dizia
o texto. “A prioridade deve ser a implementação
de uma agenda que viabilize
a retomada dos cortes na taxa de juros.”
Notas pré-Copom são uma criação
do atual presidente da CNI, o baiano Ricardo
Alban, de 64 anos, dono de uma fábrica
de biscoitos, a Tupy. Servem para
pressionar o BC. Costumam ter tom duro,
acertado por Alban com o economista-
chefe da confederação, Mario Sergio
Telles. A primeira é de março de 2024,
cinco meses depois da posse de Alban para
um mandato de quatro anos. Mandato
que tem no combate ao juro alto um pilar.
À frente desde 2021 da Fiesp, a federação
das indústrias paulistas, o mineiro
Josué Gomes da Silva está na mesma
trincheira. “O juro alto proposto para ser
provisório no Plano Real (de 1994) tornou-
se permanente”, declarou a O Estado
de S. Paulo em julho. Gomes da Silva é filho
do falecido José Alencar, vice de Lula
no passado, e herdeiro da têxtil Coteminas.
Suas críticas e as de Alban não se
limitam a palavras. São acompanhadas
por dados e análises das consequências.
“O custo financeiro embutido no produto
final pode representar até 25% do preço
ao consumidor – uma situação insustentável
para a competitividade do setor industrial”,
anotou Alban em outubro, em
artigo na Folha de S.Paulo. Ao Estadão ele
tinha dito que a inflação acumulada desde
1994 foi dez vezes menor que os lucros
gerados pelo juro real. Em um evento em
agosto, que o gasto público com juros, 4,7
trilhões de reais em uma década, superou
despesas somadas com saúde, educação e
infraestrutura, de 4,3 trilhões.
Cada ponto porcentual de juro acima do
que seria uma taxa neutra no Brasil custa
50 bilhões de reais por ano, segundo Rafael
Lucchesi, diretor da CNI para a área
de desenvolvimento industrial. Juro neutro
é aquele que não incentiva nem atrapalha
a economia. Para Lucchesi, seria hoje
de 9,75%, com taxa real de 5% somada à
inflação de 4,8% em 12 meses até novembro.
Com a decisão do BC de levar a Selic a
12,25%, o desperdício de verba pública será
de 120 bilhões em um ano. “A estabilidade
macroeconômica é conquista importante.
Mas para fazer isso colocamos os juros
acima do normal desde o Plano Real”,
diz. O industrial prossegue: o juro alto pariu
o “rentismo improdutivo”. Por que investir
em fábricas, em pesquisa e tecnologia,
se grana parada no sistema financeiro
se multiplica facilmente? Em três décadas,
o crescimento do PIB tem sido medíocre,
salienta. De 2011 a 2021, foi de 0,5%
ao ano, em média. Nesse ritmo, demoraria
150 anos para o Brasil dobrar a renda
per capita. Em 2023, ela estava em 3,9 mil
reais mensais, numa divisão do PIB pela
população. Aquela vista de fato nos domicílios
foi de 1,8 mil, segundo o IBGE. Situação
que melhoraria com uma indústria
mais presente no PIB. O rentismo leva
à desindustrialização, avalia Lucchesi.
Em 1991, a fatia da indústria no PIB
era de 21%. Em 2020, de 9%. Pior para
o trabalhador. A indústria paga mais. A
média salarial no setor foi de 3,1 mil reais
em novembro, conforme o IBGE. No
comércio, de 2,6 mil. No agro, de 1,9 mil.
O Brasil vive um momento crucial, até
por obra de circunstâncias globais. A transição
energética e uma geopolítica que
opõe Estados Unidos e China empurram
governos a gastar mais e a adotar medidas
de política industrial. Movimentos empacados
no Brasil pelo juro alto. Nossa agenda
de desenvolvimento foi “sequestrada
pela rentismo improdutivo dos bancos
numa aliança com a mídia”, diz Lucchesi.
“É preciso derrotar essa agenda.”
Não é fácil. Em uma tarde de agosto,
um empresário da construção pesada
fez em Brasília uma espécie de confissão a
CartaCapital. A indústria, comentou, tem
dificuldade de defender sua agenda por
medo de apanhar na mídia. Essa agenda
conflita com aquela do mercado financeiro,
e o dito “mercado” tem bastante espaço
no noticiário, além de injetar verba de
publicidade em veículos de comunicação
e até controlar diretamente alguns. “Se
você pegar os jornalões, os bancos são os
grandes patrocinadores”, afirma Haroldo
da Silva, economista-chefe da Associação
Brasileira da Indústria Têxtil, a Abit.
O próprio setor industrial tem culpa
também, teoriza no livro A Ilusão Neoliberal
da Indústria, lançado este ano. Os industriais,
diz, pertencem a círculos sociais
dominados pela visão financista. Romper
com o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu
chamava de “capital social” exigiria
certo sacrifício. “Há uma captura de corações
e mentes pelo sistema financeiro com
o uso de intelectuais orgânicos. É um processo
muito bem engendrado, representado
pelo neoliberalismo, que atinge todas
as classes e camadas da sociedade.” Não
só: “Você tem industriais que passaram a
ser também banqueiros, aí fica difícil reclamar
de juro alto. Com uma ‘Bolsa Faria
Lima’ de 800 bilhões de reais por ano,
nenhum empresário vai fazer esse enfrentamento,
pois também ganha com isso”.
Flávio Rocha, da Riachuelo, Joesley
Batista, da JBS, e Rubens Menin, da MRV
Engenharia, são exemplos de rentistas da
indústria e da construção civil. Rocha, de
66 anos, é do Grupo Guararapes, confecção
fundada em 1947. A Riachuelo é parte
do negócio. Em 2008, o grupo entrou no
ramo financeiro. Criou a Midway, financiadora
dos clientes da marca. Em 2023,
a Midway tinha 1,1 bilhão de reais aplicados
em títulos públicos e CDBs, conforme
o balanço do grupo. Título público
possui ganho atrelado ao juro do BC. O
CDB rende coisa parecida. Os rendimentos
do grupo com tais aplicações somaram
235 milhões. A receita líquida total
da Midwway representou 25% do faturamento
do grupo. De janeiro a setembro
de 2024, a proporção manteve-se, embora
o total investido em títulos e CDBs tenha
caído pela metade, 538 milhões, e o
rendimento dessas aplicações encolhido
para 14 milhões. Em 2023 e nos primeiros
nove meses de 2024, o grupo acumulou
48 milhões de prejuízo.
O frigorífico JBS nasceu em 1953, em
Goiás. O conglomerado controla, entre
outras companhias, a Seara e a Swift
processadoras de alimentos. Em 2011,
fundou o Banco Original. Em 2023, tinha
12 bilhões de reais em CDBs e 1 bilhão
em títulos públicos, segundo o balanço.
Suas receitas com juros, ou seja,
com aplicações financeiras, foi de 1,6
bilhão de reais. Sem elas, o prejuízo do
grupo superaria aquele registrado, de 1,1
bilhão. De janeiro a setembro de 2024, a
empresa acumula a mesma receita de juros
de 2023 como um todo, 1,6 bilhão. As
aplicações em CDBs e títulos cresceram
para 15,5 bilhões. O resultado do grupo
foi um lucro de 8 bilhões até setembro.
A MRV é uma construtora surgida em
1979, em Minas Gerais. Menin, o proprietário,
é dono do Banco Inter. No ano passado,
a MRV tinha 1,5 bilhão em fundos
de investimento, aplicação que em geral
tem no juro do BC uma bússola. Em títulos
públicos, tinha 473 milhões. As receitas
financeiras foram de 220 milhões.
Uma fonte capaz de minorar o prejuízo de
30 milhões no ano passado. De janeiro a
setembro de 2024, a aplicação em fundos
de investimento diminuiu para 998 milhões
de reais. Cerca de metade, 528 milhões,
segue em títulos públicos. As receitas
financeiras totalizaram 222 milhões
de reais. Recursos outra vez capazes de
reduzir o prejuízo geral da companhia, de
240 milhões nos primeiros nove meses.
“Vivemos uma distopia”, diz Lucchesi,
da CNI. O mercado transformou crescimento
e emprego em coisas ruins. “O bom
é a estagnação de 30 anos, em que só poucos
ganham? O Brasil precisa romper com
o fracasso. Vivemos hoje um consenso que
nos trouxe ao fracasso como País.”
A alta de um ponto na Selic era aventada
como possibilidade positiva, uma semana
antes, por outro economista-chefe
de empresa do mercado. Caio Megale
ocupa a função na XP desde 2020. Antes,
tinha integrado a equipe de Paulo Guedes
no Ministério da Fazenda. Em 3 de
dezembro, havia dito ao Estadão, a propósito
de nova Selic à vista: “Faz senti-
do o Banco Central, como a gente fala em
jargão da economia, pular na frente da
curva, se antecipar ao processo e tomar
uma atitude um pouco mais enérgica (e
elevar o juro em um ponto)”.
O negócio da XP é captar e aconselhar
investidores. Ela própria possui um site
de notícias econômicas, o Infomoney. De
2017 a 2023, teve o Itaú como sócio. O
banco é a marca mais desejada por agências
de publicidade, segundo pesquisa de
setembro do jornal Meio e Mensagem.
Tradução: é desses que injetam muito dinheiro
em propaganda na mídia. Também
possui um site de economia, o Inteligência
Financeira. A Editora Globo foi
parceira do site no início. O economista-
-chefe do Itaú, Mário Mesquita, era outra
voz a defender a alta de 1 ponto porcentual
do juro. Logo após a decisão do Copom,
estava a comentá-la no site do Estadão.
Um dos estrategistas do Banco BTG
despontava na mesma reportagem. Álvaro
Frasson elogiou o que chamou de comunicado
“positivo e importante”
do BC, pelo teor
duro e que antecipou duas
novas elevações da Selic em
2025. “O debate nos próximos
três ou quatro meses
não é mais política monetária”,
declarou. O BTG, de
André Esteves, é um peso
pesado na comunicação
econômica, e não apenas
pelos porta-vozes ouvidos
na mídia. Alguns de
seus acionistas, como Esteves,
são donos da revista
Exame, comprada em
2019 por 72 milhões de reais.
Em 2021, o BTG adquiriu
por 690 milhões uma casa
de análises, a Empiricus,
que controla dois sites de
notícias econômicas: Seu
Dinheiro e Money Times.
A hegemonia do pensamento
da Faria Lima no noticiário econômico
explica em grande medida por
que 68% dos brasileiros disseram considerar
insuficiente o pacote de controle
de gastos do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad. Um tema técnico e complexo
foi carimbado e encarado pelo cidadão
com as lentes do mercado, para quem
o pacote é exíguo. Uma semana antes, a
autora da pesquisa, a Quaest, havia feito
um levantamento com 105 integrantes
do sistema financeiro. Queria saber a
opinião sobre o governo. O resultado foi
um massacre contra Lula: 90% avaliam
negativamente
a gestão do petista, 86%
acham que a economia está no rumo errado,
70% confiam muito em Roberto
Campos Neto, 75% não confiam nada
em Haddad, 93% votariam em Tarcísio
de Freitas contra Lula em 2026. Choca,
mas não surpreende, que a notícia de que
o petista teria de passar por nova cirurgia
na quinta-feira 12 tenha feito o dólar
cair e a Bolsa subir na véspera.
A troca de Campos Neto por Galípolo
no BC em janeiro mudará o humor? Um
integrante da área econômica espera que
sim. Campos Neto, dizem lulistas no governo,
trabalhou para minar a confiança
do mercado no governo. Outra autoridade
torce para Galípolo usar parte das reservas
de 360 bilhões de dólares em intervenções
cambiais, pois a gangorra eleva
a inflação. “Tem de perguntar ao Banco
Central: por que a inação? É uma boa
pergunta. Será que eles acham que o câmbio
está no ponto de equilíbrio?”, pergunta
Lucchesi, da CNI. Sobre o que será do
BC com Galípolo, comenta: “Espero que
haja uma mudança, para o
bem do Brasil, não da indústria”.
Entidades industriais
como CNI e Fiesp manterão
a campanha contra o juro
alto na era Galípolo? Não
que possa ocorrer o mesmo,
até pelo que pensa Lula
do tema “juro”, mas no início
do governo Bolsonaro o
então presidente da CNI,
Robson Andrade, chegou a
ser preso por algumas horas
pela Polícia Federal, em
uma investigação sobre o
Sistema S. “Retaliação”, diz
Gomes da Silva. No caso da
Fiesp, haverá troca de bastão
em 2025. Sai Gomes da
Silva, volta Paulo Skaf, bolsonarizado
no período em
que o capitão esteve no poder.
Qual Skaf estará de novo
em cena? •
CARTA CAPITAL