December 21, 2024

Livros sobre Chico Science e Mundo Livre S/A ajudam a entender a revolução do mangue bit

 

 Chico Science (à esq.) e Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A

 

Biografias do líder da Nação Zumbi e de Fred Zero Quatro mostram como nasceu em Recife o movimento que deu última chacoalhada importante na música brasileira, borrando fronteiras entre o que era MPB, pop e rock

Por

Francisco de Assis França (13-3-1966) e Fred Rodrigues Montenegro (26-5-1962) nasceram em uma Recife que desfrutava do status de terceira mais importante capital do Brasil e que, no espaço de tempo até eles chegarem à idade adulta, passou ao posto de uma das cidades com lamentáveis índices de desenvolvimento humano. “A quarta pior cidade do mundo”, como cantava Francisco em “Antene-se”, faixa de “Da lama ao caos”, álbum de estreia do grupo Chico Science & Nação Zumbi, eleito em 2022, por 25 especialistas ouvidos pelo GLOBO, como o melhor disco da MPB dos últimos 40 anos.

Mas “Da lama ao caos” não estava sozinho: ainda em 1994, sairia “Samba esquema noise”, estreia do Mundo Livre S/A, grupo liderado por Fred Zero Quatro, a outra ponta do mangue bit (também conhecido como mangue beat): mais do que somente música, um movimento que tentava desobstruir as artérias enfartadas de Recife, reprocessando tradições culturais pernambucanas sob a luz das evoluções tecnológicas que começavam a conectar o mundo. A metáfora política de Chico e Fred era a de uma parabólica enfiada na lama do mangue (ecossistema de enorme fertilidade, mas que a especulação imobiliária de Recife trabalhava para enterrar sob o concreto).

Centrado em seus principais personagens e aproveitando os 30 anos do lançamento dos discos-manifestos do mangue bit, “Criança de domingo” (do pernambucano José Teles) e “Mundo Livre S/A 4.0” (do agitador do underground niteroiense Pedro de Luna) vão a fundo para contar uma bela história: a de como jovens num país em redemocratização, fascinados por cultura pop, sem recursos financeiros mas vivendo num estado de ricas manifestações culturais, lideraram o movimento que deu a última chacoalhada importante sofrida pela música brasileira. Aquela que borrou as fronteiras entre o que era MPB, pop e rock, e deu pé para o desenvolvimento da pujante música periférica dos dias de hoje.

Maracatu, embolada, hip hop, coco, funk, punk, reggae, pop africano, samba, heavy metal... não houve quem não ficasse desorientado (e, sem seguida, maravilhado) ao ouvir pela primeira vez a música tão misturada e tão orgânica de Chico Science & Nação Zumbi. Em seu livro, José Teles traça, em uma narrativa detalhada e de certa forma poética, a trajetória de Chico até a sua grande invenção — que pode não ter atingido as paradas de sucesso do Brasil (tomadas então pelo axé, música da Bahia de comunicação bem mais imediata), mas que rapidamente ganharam o mundo, em tempos de difusão da world music e a poucos minutos da popularização da internet.

Capa do livro "Criança de domingo: uma biografia musical de Chico Science", de José Teles — Foto: Reprodução
Capa do livro "Criança de domingo: uma biografia musical de Chico Science", de José Teles — Foto: Reprodução

“É algo que com um parafuso e outras coisas mais você faz, e ele sai voando por aí”, dizia acerca de sua música Chico, rapaz mestiço, vindo de uma família de classe média baixa de Recife, onde cresceu imerso nas tradições populares de Pernambuco e mais tarde descobriu sua forma de expressão artística nas rimas, batidas e samples do hip hop. Teles se preocupa em botar os pingos nos is no que se refere à criação do som e da estética da Nação Zumbi, mostrando Chico — garoto, que com insistência e carisma, conseguiu ter acesso ao rock e à música eletrônica de ponta — como um visionário, sim, mas que não fez tudo só.

Foi nos corres, quase sempre de ônibus, entre as rodas de hip hop, os blocos afro e os folguedos tradicionais da periferia e as bandas de rock e os discos de música eletrônica da garotada mais abastada, universitária, do Recife que Chico construiu a sua música e a sua persona. De sua relação intuitiva com a tecnologia e da absorção de uma cultura de rua altamente miscigenada é que foi surgindo, de projeto artístico em projeto artístico, a Nação Zumbi: aquela que unia a Zulu Nation do DJ e MC pioneiro de hip hop Afrika Bambaatta, às nações de maracatu e a Zumbi dos Palmares.

“Nossa ideia não é acabar com o folclore e sim resgatar os ritmos regionais, envenená-los coma bagagem pop. Isso pode chamar a atenção das pessoas para os ritmos como eles são e criar interesse pelo folclore”, dizia Chico Science em 1994. Ele morreria num acidente de carro, no carnaval de 1997, tendo em visto parte de sua profecia se realizar: seu trabalho com a Nação Zumbi ajudou a popularizou o esquecido maracatu mais do que qualquer iniciativa oficial ou governamental.

Capa do livro "Mundo Livre S/A 4.0: do punk ao mangue", de Pedro de Luna — Foto: Reprodução
Capa do livro "Mundo Livre S/A 4.0: do punk ao mangue", de Pedro de Luna — Foto: Reprodução

Já Pedro de Luna cumpre a contento a missão de biografar Fred Zero Quatro: o companheiro de ideias de Chico Science, o cara que em 1992 redigiu o manifesto do mangue bit e que, desde 1984, toca o Mundo Livre S/A, banda situada entre o lirismo surreal do disco “Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben Jor, e a pulsação sonora, política e multicultural dos ingleses do Clash. “O mangue não era uma batida, nunca foi. Era uma espécie de utopia que a gente queria construir”, dizia Fred, o “pobre star” que se recusou a ser o sucessor de Chico.

Mais do que tudo, o livro de Pedro de Luna dá justa dimensão ao recifense, uma das figuras mais subestimadas da música brasileira, que passou pelos atropelos da indústria fonográfica brasileira com um disco brilhante (“Samba esquema noise”), cometeu um hit (a música “Meu esquema”) e, desde os anos 2000, vem trilhando de forma heroica os caminhos da independência com discos inquietos tanto na música quanto nas letras. Discos que não se esquivaram de fazer a crônica dos tempos politicamente terríveis em que foram produzidos, como “A dança dos não famosos” (2018) e “Walking dead folia” (2022). 

 

GLOBO

 

 

December 20, 2024

As Musk forces a shutdown, the Trump presidency is already collapsing into chaos

 

Lies, conspiracy theories and middle-of-the-night rants are no way to run a country.

 DANA MILBROOK


They’re baaaack.

Just six weeks ago, voters elected Donald Trump by the slimmest of margins in hopes that he would lower the cost of living. But Trump quickly walked back that promise, saying “it’s very hard” to reduce prices.

Instead, he has already returned the country to the unrelenting chaos, and the government to the ludicrous dysfunction, that dominated his first term. And he hasn’t even taken office yet. This week alone, Trump:

  • Announced, in a 3:23 a.m. social media post, his interest in annexing Canada.
  • Spread unfounded paranoia about UFOs invading the East Coast. (“The government knows what is happening. … Something strange is going on.”)
  • Signaled, in another middle-of-the-night post, his desire to have the FBI probe prominent Trump critic Liz Cheney for violating “numerous federal laws” in the congressional investigation of the Jan. 6, 2021, insurrection.
  • Declared that he was suing the Des Moines Register — because the Iowa newspaper’s election poll was wrong.
  • Suggested, via Robert F. Kennedy Jr., that he would limit access to abortion medication.

And then, the pièce de résistance: Trump, and the man he tapped to police government spending, Elon Musk, killed a painstakingly negotiated, bipartisan spending package at the 11th hour, sending the federal government hurtling toward a Christmas shutdown — which would be the first time the government is forced to turn out the lights since, well, the last time Trump was in charge.

Outside the entrance to Speaker Mike Johnson's office at the Capitol on Wednesday. (Demetrius Freeman/The Washington Post)

Musk, with an extended tantrum on his social media site X, successfully sabotaged the spending bill, which would have provided aid to farmers and disaster relief for storm-ravaged North Carolina, Florida and other parts of the country. “‘Shutting down’ the government (which doesn’t actually shut down critical functions btw) is infinitely better than passing a horrible bill,” proclaimed the richest man in the world, who also posted “YES” in response to the sentiment “Just close down the govt. until January 20th. Defund everything.” The man who spent hundreds of millions of dollars to help elect Trump also threatened to defeat those Republicans who didn’t do as he commanded.

Trump, who had voiced no previous objection to the legislation, sided with Musk. Congressional Republicans folded and then, over the next 24 hours, rewrote the bill to be satisfy Trump and Musk, their multi-billionaire masters. They kept most of the spending in the bill but, at Trump’s insistence, added a provision to raise the debt ceiling by about $5 trillion — enough for Trump to push through another massive tax cut for corporations and the wealthiest Americans. They removed funds for nutritional assistance and community hospitals. They excised a provision that would have kept down drug prices. Incredibly, they even struck a provision that would have limited American businesses’ investments in China.

Musk and those like him stood to save untold billions in taxes — while securing green lights to move jobs to China. That’s a sizable return on the $277 million Musk spent on Trump’s campaign. MAGA!

Let us at least give Trump credit for transparency. For decades, corporations and billionaires shaped Republican policies from the back rooms of the Capitol. Now, they control the Republican Party right out in the open, for all to see. This kind of naked power grab is straight out of the Gilded Age.

If the government shuts down after midnight Friday, 1.3 million active-duty troops will go without pay, as will hundreds of thousands of civilian workers. National parks will close, air traffic and airports will be snarled over the holidays, food-safety inspection will be curtailed, tax refunds and operations at Social Security offices will be delayed, and millions of poor and working-class people will lose access to other government services. The shutdown will add billions of dollars to the debt. But Musk (net worth: $440 billion) will be just fine — and he is now the one directing the Republican agenda in Congress.

As the world’s wealthiest man killed the spending bill, Republicans marveled at their own dysfunction.

“It’s a total dumpster fire,” Rep. Eric Burlison (Missouri) told reporters.

“It’s a fascinating mess,” Sen. Lisa Murkowski (Alaska) told CNN’s Manu Raju.

“This is ridiculous,” Sen. Josh Hawley (Missouri) told Semafor’s Burgess Everett. “This is how you want your government to run? I mean, these guys can’t manage their way out of a paper bag.”

Rep. Anna Paulina Luna (Florida) was so baffled by the happenings that she walked over to the speaker’s office to investigate. “I’m actually over here because no one’s returning my phone calls,” she told reporters. “I was trying to figure out what’s going on.”

She left without an answer — because House GOP leaders had no plan.

Even before the Musk-led meltdown, Rep. Victoria Spartz (Indiana) declared she would no longer “participate in the caucus until I see that Republican leadership in Congress is governing. I do not need to be involved in circuses.”

But this is just the first act of what promises to be a four-year circus. Already, a dozen or so House Republicans, angered by Speaker Mike Johnson’s inept handling of the spending bill, are now making noises about blocking his reelection as speaker Jan. 3 — and the defection of even two or three Republicans could doom him. This, in turn, could delay Congress’s certification of Trump’s election victory and possibly create a constitutional crisis over the transfer of power. Even if Johnson (R-Louisiana) gets out of that mess, a few House Republicans are already lining up in opposition to extending Trump’s tax cuts, a core component of his 2025 agenda.

For those too young to remember the last go-round, this is what governing looks like under Trump. Musk’s destruction of the spending bill was particularly ugly, for it showed that, with Trump in charge, an unelected megabillionaire can bring the U.S. government to a halt by employing MAGA’s trademark mixture of vitriol, threat and disinformation.

The short-term, three-month spending bill had been negotiated at Republicans’ request so that Trump would have the chance to reset spending for the rest of fiscal year 2025, given that Republicans will have unified control of the federal government early in the new year. Johnson didn’t have enough GOP votes to pass the bill (or any spending bill), so he had to negotiate a bipartisan package with Democrats — and, as of early this week, the bill was on its way to passage.

Enter “President Musk” (as Democrats have taken to calling him), who in his social media campaign of destruction on Wednesday called the legislation not just “criminal” but “an insane crime.” He flooded the Twitterverse with disinformation, including claims that the bill included a 40 percent pay increase for Congress (in actuality, a cost-of-living adjustment of no more than 3.8 percent); a $3 billion giveaway for an NFL stadium in D.C. (it included no money for the stadium); an “outrageous” provision blocking a probe of the Jan. 6 investigative committee; and another provision “funding bioweapon labs” (both false).

With one of his children on his shoulders, Elon Musk walks through the Capitol on Dec. 5. (Maansi Srivastava for The Washington Post)

The threat and the lies had the intended effect. By nightfall on Wednesday, the bill was dead.

“THIS CHAOS WOULD NOT BE HAPPENING IF WE HAD A REAL PRESIDENT,” Trump wrote.

So true! But instead, Americans elected Trump — and now we’re doomed to four years of this mayhem.

As Republicans circled the drain toward a shutdown, former speaker Newt Gingrich, the GOP architect of the 1990s shutdowns that started the modern era of dysfunction, celebrated the collapse. “President Trump and Republicans should not be afraid of a government shutdown. The next election is two years away,” he wrote.

“I’m all in,” responded Rep. Marjorie Taylor Greene (R-Georgia). And, echoing Musk, she added: “The government can shut down all the way until [Jan. 20] as far as I’m concerned.”

But why stop on Jan. 20? Republicans can now cause years of chaos, which is exactly what some of them intend to do. “The Speaker of the House need not be a member of Congress,” Sen. Rand Paul (R-Kentucky) correctly pointed out on Thursday. “Nothing would disrupt the swamp more than electing Elon Musk.”

Greene quickly joined the effort, launching an online poll that asked: “Would you support [Elon Musk] for Speaker of the House?”

It’s a reasonable point. This plutocrat already controls congressional Republicans. They might as well make his authority official.

“Do you want to be speaker of the House?" Trump jokingly asked Musk while being interviewed on Thursday by ABC News’s Rachel Scott.

Musk, who was in the room, replied with a laugh: “Should I be?”

The plutocrats’ control of the GOP is no joke, though. Johnson, as his spending bill was collapsing on Wednesday, essentially admitted on Fox News that he answers not to the people, nor even to the people’s representatives, but rather to Musk and fellow rich guy Vivek Ramaswamy, private citizens both. The speaker said he was on “a text chain” and phone calls with the two heads of Trump’s nongovernmental “Department of Government Efficiency,” begging for their support. “Remember, guys, we still have just a razor-thin margin of Republicans, so any bill has to have Democratic votes,” Johnson said he told the pair.

Clearly, they were unimpressed by the speaker’s pleas — and so Musk showed Johnson who was in charge. This is what Trump has already built with the trust placed in him by the “forgotten man and woman”: A government of the billionaires, by the billionaires and for the billionaires.

Speaker Mike Johnson (R-Louisiana) takes questions from reporters on Tuesday. (J. Scott Applewhite/AP)

Among Republicans, a few principled fiscal hawks defied Trump and Musk. In Thursday evening’s floor debate, Rep. Chip Roy (Texas), excoriated his GOP colleagues for abandoning their fiscal responsibility and for surrendering on the debt ceiling, which had been one of the key tools conservatives have used in the past to force spending cuts. He called their actions “embarrassing,” “shameful” and “asinine.” Speaking on the Democrats’ time during the debate, Roy said: “I’m absolutely sickened by a party that campaigns on fiscal responsibility and has the temerity to go forward to the American people and say you think this is fiscally responsible. It’s absolutely ridiculous.”

Trump spent the afternoon threatening the congressman from Texas for sticking to his principles. “Chip Roy is just another ambitious guy, with no talent,” he posted, calling for challengers “to go after Chip in the Primary.”

The brazen manipulation of Republicans by Musk and Trump fired up a Democratic minority that had been licking its wounds since last month’s election. Democrats chanted “Hell no!” in a caucus meeting before the debate, then went to the floor with a revived populist zeal, decrying an “illegitimate oligarchy” and Republicans bowing to an “unelected contractor reaping billions in government contracts” and working to “subsidize the lifestyles of the rich and shameless.”

“What is before us today is just part of an effort to shut down the government,” said Minority Leader Hakeem Jeffries (D-New York), “unless we, as representatives of the American people, bend to the will of just a handful of millionaires and billionaires” for whom “clearly some in this Congress are working.”

In the vote, only two Democrats sided with Musk and Trump: Kathy Castor (Florida) and Marie Gluesenkamp Perez (Washington). And though 172 Republicans buckled under Trump’s pressure, 38 Republicans stuck to their principles — more than enough to send the GOP’s new plan to a lopsided defeat.

With less than 24 hours to go until a shutdown, the House Republican majority, now a wholly-owned subsidiary of Elon Musk, couldn’t come up with the votes to keep the government opened. “There is no plan,” Rep. Ralph Norman (R-South Carolina) told the Hill’s Emily Brooks after the vote. “Trump wants the thing to shut down.”

Shutting down the government because of the rants and threats of an erratic billionaire is no way to run a country. But this is where we are. Welcome (back) to the Trump administration.

WASHINGTON POST

 

 

Corrida de obstáculos


  O STJ permite o plantio de cannabis
no Brasil, mas impõe regras que dificultam
a produção de medicamentos acessíveis

MARIANA SERAFINI

O biólogo Renato de Traglia Tonini
vê com mais entusiasmo a liberação do
plantio, pois facilitará as pesquisas com
cannabis no País, que hoje dependem da
importação de insumos. Doutorando
em Genética e Melhoramento pela Universidade
Federal de Viçosa e pesquisador
do Banco Ativo de Germoplasma de
Cannabis, ele explica que, de fato, o clima
tropical é propício à produção de cânhamo
com baixíssima concentração de
THC. “É comum que uma semente, ao ser
aquecida, tenha o teor de THC alterado.
Os grãos importados podem ter suas características
modificadas em um ambiente
mais quente.” A despeito disso, o
plantio de maconha permitirá trabalhar
para a estabilização das sementes, avalia.
Logo após a decisão do STJ, Santa Catarina
aprovou, em 27 de novembro, uma
lei que institui a política estadual de fornecimento
gratuito de medicamentos à
base de maconha. Pedro Sabaciauskis,
diretor da associação Santa Cannabis,
destaca que agora as entidades poderão
contribuir para tratamentos na rede
pública, de forma alinhada aos objetivos
das autoridades de saúde. “Esse pode
ser um bom caminho para todos os estados,
porque fortalece a economia local
de cada região”, avalia.
Pela lei, o SUS fornecerá medicamentos
produzidos pelas indústrias da região para
todas as doenças, conforme a prescrição
médica. É uma legislação mais avançada
do que a de São Paulo, que atende apenas
três comorbidades. Para o especialista,
a grande vantagem da decisão do STJ
será o fomento à pesquisa. “Hoje, a Santa
Cannabis apoia 15 pesquisas em seis universidades
diferentes. Nosso paciente mais
jovem tem 1 ano e 6 meses, e o mais velho
tem 102 anos. Os medicamentos à base de
cannabis atendem um público muito amplo.
Não tem mais como voltar atrás.” •


Em decisão histórica, a Primeira
Seção do Tribunal Superior
de Justiça autorizou,
em novembro, a importação
de sementes e o cultivo de
cannabis para fins medicinais no Brasil.


Os ministros da Corte estabeleceram um
prazo de seis meses para a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa)
regulamentar a questão. Embora represente
um avanço, pesquisadores e ativistas
alertam que ainda há muitos desafios
a serem superados. Inicialmente, a liberação
restringe-se à produção do chamado
cânhamo industrial, variedade da
cannabis com até 0,3% de THC, o princípio
psicoativo da maconha. Na prática,
essa limitação encarece a extração do canabidiol,
usado na maior parte dos tratamentos
à base de cannabis.


A ministra Regina Helena Costa, relatora
do caso no STJ, entende que a
cannabis com baixa concentração de THC
não pode ser enquadrada nas restrições
da Lei de Drogas e destaca que a liberação
destina-se exclusivamente a fins farmacológicos
e industriais. Se, por um lado, o
mercado do cânhamo, voltado para a indústria
têxtil e de bioplásticos, poderá dar
um grande passo, por outro, a decisão ainda
é limitadora para a indústria farmacêutica
e para as associações dedicadas
à produção de remédios de baixo custo
com substâncias extraídas da maconha.
Margarete Santos de Brito, diretora da
Apepi, a primeira organização a conquistar
na Justiça o direito de importar sementes
e cultivar cannabis no Brasil para
a fabricação de medicamentos, alerta que
a decisão traz insegurança jurídica e pode
interferir no tratamento de milhares
de pacientes. “Para as associações é muito
ruim, porque nos coloca em uma posição
de ilegalidade”, critica. Atualmente,
nenhuma entidade produz a planta com
um teor tão baixo de THC no País, alerta
a advogada e ativista.


Apesar da restrição imposta, a decisão
do STJ abre caminho para o diálogo,
avalia Brito. A Apepi e dezenas de outras
associações acionaram o Ministério da
Saúde e esperam que seja possível avançar
em uma regulamentação específica.
Isso porque, sem o suporte dessas entidades,
muitos pacientes se veem obrigados

comprar medicamentos importados,
que são caros e inacessíveis para a maior
parte da população. Nas prateleiras das
farmácias, um frasco de canabidiol pode
custar mais de 2,5 mil reais, enquanto
o custo do óleo da substância produzido
por organizações de apoio a pacientes
não costuma chegar a 10% desse valor.


Na avaliação do psiquiatra Flávio
Falcone, integrante da Equipe do Programa
de Orientação e Atendimento a Dependentes
da Unifesp, a decisão do STJ ainda
não traz benefícios para os milhares de
pacientes brasileiros que dependem desses
medicamentos. “Parece atender apenas
aos interesses da indústria farmacêutica
e do cânhamo”, avalia. Ele explica que
um tratamento baseado em baixa concentração
de THC, além de não servir a todas
as comorbidades tratadas atualmente
com cannabis, pode encarecer muito o
produto final. “Quando utilizávamos o canabidiol
importado, eram necessárias cerca
de 20 gotas para uma dose medicamentosa.


Com o óleo de teor mais alto de THC,
produzido pelas associações, bastam duas
gotas. É mais eficaz e mais barato.”
Utilizar todos os componentes da flor
de cannabis − ou seja, o CBD e o THC, as
duas substâncias mais exploradas para
tratamentos medicinais − é a melhor forma
de obter bons resultados para a maioria
das doenças, explica o psiquiatra, que
também atua na associação Flor da Vida.


Atualmente, cerca de 400 mil pacientes
estão autorizados pela Anvisa a fazer tratamento
baseado em medicamentos produzidos
a partir da maconha. Os óleos e
as pomadas têm apresentado resultados
satisfatórios para inúmeras doenças, entre
elas epilepsia, fibromialgia, ansiedade,
depressão, alguns tipos de câncer, além
de quadros clínicos de dores crônicas.
Falcone acrescenta que, mesmo com a
decisão do STJ, as associações vão precisar
continuar recorrendo à Justiça para

manter suas produções. Os pacientes que
optam por plantar cannabis para produzir
seu próprio medicamento também
precisarão obter um habeas corpus para
se proteger de qualquer processo relacionado
à draconiana Lei de Drogas.


“Ainda não é o ideal, mas representa
um avanço importante, sobretudo se
considerarmos o atual cenário, de ausência
completa de regulação”, acredita


Felipe Nechar, diretor jurídico da organização
Divina Flor. O advogado avalia
ser difícil produzir no Brasil uma flor de
cannabis com tão baixa concentração de

THC, principalmente devido a fatores climáticos.
“Ao chegar ao solo tropical, cada
semente vai aclimatar-se de uma forma
diferente. Em Mato Grosso, nossa produção
tem em torno de 20% de THC e 60%
de CBD”, explica. Ao chegar ao produto final,
essa concentração é diluída de acordo
com a necessidade de cada paciente.

O biólogo Renato de Traglia Tonini
vê com mais entusiasmo a liberação do
plantio, pois facilitará as pesquisas com
cannabis no País, que hoje dependem da
importação de insumos. Doutorando
em Genética e Melhoramento pela Universidade
Federal de Viçosa e pesquisador
do Banco Ativo de Germoplasma de
Cannabis, ele explica que, de fato, o clima
tropical é propício à produção de cânhamo
com baixíssima concentração de
THC. “É comum que uma semente, ao ser
aquecida, tenha o teor de THC alterado.
Os grãos importados podem ter suas características
modificadas em um ambiente
mais quente.” A despeito disso, o
plantio de maconha permitirá trabalhar
para a estabilização das sementes, avalia.


Logo após a decisão do STJ, Santa Catarina
aprovou, em 27 de novembro, uma
lei que institui a política estadual de fornecimento
gratuito de medicamentos à
base de maconha. Pedro Sabaciauskis,
diretor da associação Santa Cannabis,
destaca que agora as entidades poderão
contribuir para tratamentos na rede
pública, de forma alinhada aos objetivos
das autoridades de saúde. “Esse pode
ser um bom caminho para todos os estados,
porque fortalece a economia local
de cada região”, avalia.


Pela lei, o SUS fornecerá medicamentos
produzidos pelas indústrias da região para
todas as doenças, conforme a prescrição
médica. É uma legislação mais avançada
do que a de São Paulo, que atende apenas
três comorbidades. Para o especialista,
a grande vantagem da decisão do STJ
será o fomento à pesquisa. “Hoje, a Santa
Cannabis apoia 15 pesquisas em seis universidades
diferentes. Nosso paciente mais
jovem tem 1 ano e 6 meses, e o mais velho
tem 102 anos. Os medicamentos à base de
cannabis atendem um público muito amplo.
Não tem mais como voltar atrás.” •

CARTA CAPITAL

Passado a limpo

 



DITADURA A Comissão da Anistia cumpre
sua meta e encerra 2024 com mais de
1,5 mil pedidos de reparação analisados 

FABIOLA MENDONÇA

Cerca de 5 mil ex-funcionários
da extinta Panair, tradicional
empresa de aviação
criada em 1929 e extinta
em 1965 pelo regime militar,
receberam um pedido de desculpas
coletivo do Estado brasileiro, durante a
última audiência do ano da Comissão de
Anistia, na sexta-feira 29. À época, esses
trabalhadores perderem o emprego pelo
simples fato de os proprietários da empresa
se negarem a apoiar o golpe de 64,
provocando a ira dos militares, que decretaram
a falência da companhia aérea
numa canetada.


Foram necessários 60 anos para uma
retratação pública. Assim como aconteceu
no caso da Panair, a Comissão de
Anistia julgou outros sete pedidos coletivos
e cerca de 1,5 mil processos individuais
este ano, um balanço que supera os
números de 2023, quando só foram apreciados
80 processos. Para 2025, a estimativa
é julgar a mesma quantidade de casos
deste ano e, em 2026, zerar todos os
pedidos de anistia. “Esperamos que o
Estado consiga, depois de duas décadas
e meia, completar esse jubileu de prata.
Não é possível que a sociedade brasileira
tenha de esperar tanto tempo para
esse reconhecimento púbico”, destaca
Eneá de Stutz, presidente da Comissão
de Anistia, colegiado criado em 2001.


O julgamento da Panair é emblemático
porque todos os funcionários foram
demitidos de forma compulsória em represália
aos donos da empresa, mas outros
três casos julgados este ano ficarão
marcados para sempre nos trabalhos
da Comissão de Anistia. Um deles
foi o julgamento dos povos Krenak,
de Minas Gerais, e Guyraroká, de Mato
Grosso do Sul, em abril, na primeira audiência
da Comissão em 2024. Nos dois
casos, os indígenas foram perseguidos,
presos e torturados, acusados de subversão
e de fazer oposição ao regime militar.


Em uma sessão emocionante, Stutz
ajoelhou-se para fazer o pedido de desculpas,
cena semelhante à ocorrida em
julho, na retratação ao povo Guarani
Kaiowá. “Eu senti uma responsabilidade
tão grande, um peso tão gigante para
pedir desculpas, que me ajoelhei”, lembra
a presidente do colegiado, destacando
que, no caso dos Kaiowá, a denúncia
foi de genocídio e estupros contra crianças
e mulheres indígenas.


Para alcançar um número recorde de
apreciação dos pedidos de anistia, a Co-

missão adotou como método separar os
casos por blocos e analisá-los coletivamente.


Além disso, colocou os processos
na ordem cronológica. Neste ano, julgou
os pedidos feitos entre 2001 e 2010. Em
2025, vai analisar as solicitações realizadas
entre 2011 e 2021. No ano seguinte, os
casos que surgiram desde então e os que
ainda estão por vir. A Comissão também
estipulou em 2 mil reais o valor máximo
de indenização permanente para a reparação
econômica nos casos individuais,
independentemente da ocorrência, que se
soma a uma indenização de 100 mil reais
em parcela única, como prevê a legislação
que trata do tema. A anistia financeira vale
apenas para os pedidos individuais, enquanto
para os coletivos a reparação é política.


Outra ação adotada pela Comissão
a partir deste ano foi dar voz às vítimas.
“O protagonismo nos processos de reparação
não pode ser meu, da Comissão
nem do ministro de Estado. A vítima tem
de ter voz para apresentar suas demandas
de reparação. O julgamento dos Guarani
Kaiowá, por exemplo, foi uma sessão
linda, porque eles tiveram liberdade
e confiança para falar o que queriam e
do jeito deles, tanto que optaram por se
manifestar no idioma deles e não na língua
daqueles que sempre os reprimiram,
que é o português”, relata Stutz, ressaltando
que a centralidade da vítima é um
importante requisito previsto pela ONU
em julgamentos como esses.


No mesmo dia da sessão dos Guarani
Kaiowá, a Comissão julgou um caso coletivo
de imigrantes japoneses que foram
colocados num campo de concentração
em São Paulo, no pós-Guerra, entre 1946
e 1947. “Foi emocionante ver o auditório
lotado com uma centena de senhores e senhoras
acima dos 70 anos de idade, representando
seus familiares.” Com um atraso
de quase 80 anos, a Comissão de Anistia
fez mais um pedido de desculpas coleti-

vo. O recorte temporal da Comissão vai de
1946 até 5 de outubro de 1988, data da promulgação
da Constituição Federal, por isso
abarcou o caso desses imigrantes.


“É superimportante a gente concluir
a transição para a democracia. A Comissão
de Anistia precisa finalizar sua tarefa
de reparação junto aos perseguidos políticos,
a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos precisa dar uma resposta
aos familiares e o que aconteceu com
seus entes queridos, e os responsáveis pelas
violações de direitos humanos no período
da ditadura têm de ser responsabilizados
penalmente, para que a gente
não tenha a possibilidade de pensar em
um novo 8 de Janeiro”, dispara Stutz, referindo-
se ao debate atual sobre anistia
para perdoar os extremistas ligados ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, que tentaram,
de várias formas, dar um novo golpe
de Estado, dessa vez com o plano de
assassinar o presidente Lula, o vice Ge-

raldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre
de Moraes.


“Enquanto a gente não completar essa
tarefa da transição, seja no campo da
reparação, da memória e da verdade, e,
principalmente, da responsabilização,
esse fantasma vai continuar rondando as
nossas cabeças. Se não punir, vai ser sempre
possível alguém ou algum grupo achar
que pode dar um golpe, porque o máximo
que vai acontecer é o golpe ser frustrado,
já que não terá consequências para o
golpista”, finaliza Stutz. Segundo Nilmário
Miranda, assessor Especial para a Democracia,
Memória e Verdade do Ministério
dos Direitos Humanos, a Comissão
de Mortos e Desaparecidos, recriada em
agosto deste ano, tem como uma de suas
prioridades retificar o atestado de morte
daqueles que ainda hoje estão na lista dos
desaparecidos políticos, para constar no
documento a causa real do assassinato.


Outra iniciativa será a perícia de ossadas
que vieram da região do Araguaia

possivelmente de brasileiros assassinados
pelos militares, e de outras que estão
em cemitérios, como o de Perus. A Comissão
também pretende construir memoriais
em locais utilizados pelo regime
militar para matar e torturar os opositores.


“A relação da democracia com a memória
e a verdade passa por não deixar
esquecer o que aconteceu, para que nunca
mais se repita. Quando o passado não
é resolvido, como aconteceu com os golpistas
de 1964, eles voltam depois como
Kids Pretos”, diz Miranda, referindo-se
aos militares da elite do Exército envolvidos
na tentativa de golpe após a derrota
de Bolsonaro, em 2022. “Sem memória e
verdade, não há democracia.”

CARTA CAPITAL

Queda de braço

 


 

No país do rentismo, a indústria divide-se entre quem
se rebela contra as altas taxas e quem lucra com elas


POR ANDRÉ BARROCAL


Na última reunião sob a batuta
de Roberto Campos
Neto, escolhido por Jair
Bolsonaro, para decidir a
taxa básica, o Banco Central
a subiu pela terceira vez seguida. O
anúncio na quarta-feira 11 colocou a Selic
em 12,25% ao ano, o que faz do Brasil
o vice-campeão mundial de juro real,
cerca de 9,5%, descontada a inflação. A
Turquia é ouro (13%). A Rússia, nação em
guerra, bronze (em torno de 9%).
Conter a inflação foi a justificativa
apontada pelo BC em comunicado para
elevar a taxa em 1 ponto porcentual e
avisar que repetirá essa dose duas vezes
em 2025, quando Campos Neto terá dado
lugar a Gabriel Galípolo, escolhido por
Lula, no comando da autoridade monetária.
“Incompreensível e totalmente injustificado”,
comentou a Confederação
Nacional da Indústria, em uma nota pública
após a alta da Selic.


Na véspera da reunião do BC, a CNI
havia emitido outra nota e criticado a hipótese
de o banco não só manter o juro ladeira
acima, como de fazê-lo mais do que
em setembro (0,25 ponto porcentual) e
novembro (meio ponto). “Seria uma medida
excessiva em termos de controle da
inflação e apenas traria restrições adicionais
ao crescimento do País”, dizia
o texto. “A prioridade deve ser a implementação
de uma agenda que viabilize
a retomada dos cortes na taxa de juros.”


Notas pré-Copom são uma criação
do atual presidente da CNI, o baiano Ricardo
Alban, de 64 anos, dono de uma fábrica
de biscoitos, a Tupy. Servem para
pressionar o BC. Costumam ter tom duro,
acertado por Alban com o economista-
chefe da confederação, Mario Sergio
Telles. A primeira é de março de 2024,
cinco meses depois da posse de Alban para
um mandato de quatro anos. Mandato
que tem no combate ao juro alto um pilar.


À frente desde 2021 da Fiesp, a federação
das indústrias paulistas, o mineiro
Josué Gomes da Silva está na mesma
trincheira. “O juro alto proposto para ser 

provisório no Plano Real (de 1994) tornou-
se permanente”, declarou a O Estado
de S. Paulo em julho. Gomes da Silva é filho
do falecido José Alencar, vice de Lula
no passado, e herdeiro da têxtil Coteminas.
Suas críticas e as de Alban não se
limitam a palavras. São acompanhadas
por dados e análises das consequências.


“O custo financeiro embutido no produto
final pode representar até 25% do preço
ao consumidor – uma situação insustentável
para a competitividade do setor industrial”,
anotou Alban em outubro, em
artigo na Folha de S.Paulo. Ao Estadão ele
tinha dito que a inflação acumulada desde
1994 foi dez vezes menor que os lucros
gerados pelo juro real. Em um evento em

agosto, que o gasto público com juros, 4,7

trilhões de reais em uma década, superou
despesas somadas com saúde, educação e
infraestrutura, de 4,3 trilhões.


Cada ponto porcentual de juro acima do
que seria uma taxa neutra no Brasil custa
50 bilhões de reais por ano, segundo Rafael
Lucchesi, diretor da CNI para a área
de desenvolvimento industrial. Juro neutro
é aquele que não incentiva nem atrapalha
a economia. Para Lucchesi, seria hoje
de 9,75%, com taxa real de 5% somada à
inflação de 4,8% em 12 meses até novembro.


Com a decisão do BC de levar a Selic a
12,25%, o desperdício de verba pública será
de 120 bilhões em um ano. “A estabilidade
macroeconômica é conquista importante.
Mas para fazer isso colocamos os juros
acima do normal desde o Plano Real”,
diz. O industrial prossegue: o juro alto pariu
o “rentismo improdutivo”. Por que investir
em fábricas, em pesquisa e tecnologia,
se grana parada no sistema financeiro
se multiplica facilmente? Em três décadas,
o crescimento do PIB tem sido medíocre,
salienta. De 2011 a 2021, foi de 0,5%
ao ano, em média. Nesse ritmo, demoraria
150 anos para o Brasil dobrar a renda
per capita. Em 2023, ela estava em 3,9 mil
reais mensais, numa divisão do PIB pela
população. Aquela vista de fato nos domicílios
foi de 1,8 mil, segundo o IBGE. Situação
que melhoraria com uma indústria
mais presente no PIB. O rentismo leva
à desindustrialização, avalia Lucchesi.

Em 1991, a fatia da indústria no PIB
era de 21%. Em 2020, de 9%. Pior para
o trabalhador. A indústria paga mais. A
média salarial no setor foi de 3,1 mil reais
em novembro, conforme o IBGE. No
comércio, de 2,6 mil. No agro, de 1,9 mil.
O Brasil vive um momento crucial, até
por obra de circunstâncias globais. A transição
energética e uma geopolítica que
opõe Estados Unidos e China empurram
governos a gastar mais e a adotar medidas
de política industrial. Movimentos empacados
no Brasil pelo juro alto. Nossa agenda
de desenvolvimento foi “sequestrada
pela rentismo improdutivo dos bancos
numa aliança com a mídia”, diz Lucchesi.
“É preciso derrotar essa agenda.”


Não é fácil. Em uma tarde de agosto,
um empresário da construção pesada
fez em Brasília uma espécie de confissão a
CartaCapital. A indústria, comentou, tem
dificuldade de defender sua agenda por
medo de apanhar na mídia. Essa agenda
conflita com aquela do mercado financeiro,
e o dito “mercado” tem bastante espaço
no noticiário, além de injetar verba de
publicidade em veículos de comunicação
e até controlar diretamente alguns. “Se
você pegar os jornalões, os bancos são os
grandes patrocinadores”, afirma Haroldo
da Silva, economista-chefe da Associação
Brasileira da Indústria Têxtil, a Abit.


O próprio setor industrial tem culpa
também, teoriza no livro A Ilusão Neoliberal
da Indústria, lançado este ano. Os industriais,
diz, pertencem a círculos sociais
dominados pela visão financista. Romper
com o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu
chamava de “capital social” exigiria
certo sacrifício. “Há uma captura de corações
e mentes pelo sistema financeiro com
o uso de intelectuais orgânicos. É um processo
muito bem engendrado, representado
pelo neoliberalismo, que atinge todas
as classes e camadas da sociedade.” Não
só: “Você tem industriais que passaram a
ser também banqueiros, aí fica difícil reclamar
de juro alto. Com uma ‘Bolsa Faria
Lima’ de 800 bilhões de reais por ano,
nenhum empresário vai fazer esse enfrentamento,
pois também ganha com isso”.


Flávio Rocha, da Riachuelo, Joesley
Batista, da JBS, e Rubens Menin, da MRV
Engenharia, são exemplos de rentistas da
indústria e da construção civil. Rocha, de
66 anos, é do Grupo Guararapes, confecção
fundada em 1947. A Riachuelo é parte
do negócio. Em 2008, o grupo entrou no
ramo financeiro. Criou a Midway, financiadora
dos clientes da marca. Em 2023,
a Midway tinha 1,1 bilhão de reais aplicados
em títulos públicos e CDBs, conforme
o balanço do grupo. Título público
possui ganho atrelado ao juro do BC. O
CDB rende coisa parecida. Os rendimentos
do grupo com tais aplicações somaram
235 milhões. A receita líquida total
da Midwway representou 25% do faturamento
do grupo. De janeiro a setembro
de 2024, a proporção manteve-se, embora
o total investido em títulos e CDBs tenha
caído pela metade, 538 milhões, e o
rendimento dessas aplicações encolhido
para 14 milhões. Em 2023 e nos primeiros
nove meses de 2024, o grupo acumulou
48 milhões de prejuízo.


O frigorífico JBS nasceu em 1953, em
Goiás. O conglomerado controla, entre
outras companhias, a Seara e a Swift

processadoras de alimentos. Em 2011,
fundou o Banco Original. Em 2023, tinha
12 bilhões de reais em CDBs e 1 bilhão
em títulos públicos, segundo o balanço.
Suas receitas com juros, ou seja,
com aplicações financeiras, foi de 1,6
bilhão de reais. Sem elas, o prejuízo do
grupo superaria aquele registrado, de 1,1
bilhão. De janeiro a setembro de 2024, a
empresa acumula a mesma receita de juros
de 2023 como um todo, 1,6 bilhão. As
aplicações em CDBs e títulos cresceram
para 15,5 bilhões. O resultado do grupo
foi um lucro de 8 bilhões até setembro.


A MRV é uma construtora surgida em
1979, em Minas Gerais. Menin, o proprietário,
é dono do Banco Inter. No ano passado,
a MRV tinha 1,5 bilhão em fundos
de investimento, aplicação que em geral
tem no juro do BC uma bússola. Em títulos
públicos, tinha 473 milhões. As receitas
financeiras foram de 220 milhões.
Uma fonte capaz de minorar o prejuízo de
30 milhões no ano passado. De janeiro a
setembro de 2024, a aplicação em fundos
de investimento diminuiu para 998 milhões
de reais. Cerca de metade, 528 milhões,
segue em títulos públicos. As receitas
financeiras totalizaram 222 milhões
de reais. Recursos outra vez capazes de
reduzir o prejuízo geral da companhia, de
240 milhões nos primeiros nove meses.
“Vivemos uma distopia”, diz Lucchesi,
da CNI. O mercado transformou crescimento
e emprego em coisas ruins. “O bom
é a estagnação de 30 anos, em que só poucos
ganham? O Brasil precisa romper com
o fracasso. Vivemos hoje um consenso que
nos trouxe ao fracasso como País.”


A alta de um ponto na Selic era aventada
como possibilidade positiva, uma semana
antes, por outro economista-chefe
de empresa do mercado. Caio Megale
ocupa a função na XP desde 2020. Antes,
tinha integrado a equipe de Paulo Guedes
no Ministério da Fazenda. Em 3 de
dezembro, havia dito ao Estadão, a propósito
de nova Selic à vista: “Faz senti-
do o Banco Central, como a gente fala em
jargão da economia, pular na frente da
curva, se antecipar ao processo e tomar
uma atitude um pouco mais enérgica (e
elevar o juro em um ponto)”.


O negócio da XP é captar e aconselhar
investidores. Ela própria possui um site
de notícias econômicas, o Infomoney. De
2017 a 2023, teve o Itaú como sócio. O
banco é a marca mais desejada por agências
de publicidade, segundo pesquisa de
setembro do jornal Meio e Mensagem.
Tradução: é desses que injetam muito dinheiro
em propaganda na mídia. Também
possui um site de economia, o Inteligência
Financeira. A Editora Globo foi
parceira do site no início. O economista-
-chefe do Itaú, Mário Mesquita, era outra
voz a defender a alta de 1 ponto porcentual
do juro. Logo após a decisão do Copom,
estava a comentá-la no site do Estadão.
Um dos estrategistas do Banco BTG
despontava na mesma reportagem. Álvaro
Frasson elogiou o que chamou de comunicado
“positivo e importante”
do BC, pelo teor
duro e que antecipou duas
novas elevações da Selic em
2025. “O debate nos próximos
três ou quatro meses
não é mais política monetária”,
declarou. O BTG, de
André Esteves, é um peso
pesado na comunicação
econômica, e não apenas
pelos porta-vozes ouvidos
na mídia. Alguns de
seus acionistas, como Esteves,
são donos da revista
Exame, comprada em
2019 por 72 milhões de reais.
Em 2021, o BTG adquiriu
por 690 milhões uma casa
de análises, a Empiricus,
que controla dois sites de
notícias econômicas: Seu
Dinheiro e Money Times.


A hegemonia do pensamento

da Faria Lima no noticiário econômico
explica em grande medida por
que 68% dos brasileiros disseram considerar
insuficiente o pacote de controle
de gastos do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad. Um tema técnico e complexo
foi carimbado e encarado pelo cidadão
com as lentes do mercado, para quem
o pacote é exíguo. Uma semana antes, a
autora da pesquisa, a Quaest, havia feito
um levantamento com 105 integrantes
do sistema financeiro. Queria saber a
opinião sobre o governo. O resultado foi
um massacre contra Lula: 90% avaliam

negativamente
a gestão do petista, 86%
acham que a economia está no rumo errado,
70% confiam muito em Roberto
Campos Neto, 75% não confiam nada
em Haddad, 93% votariam em Tarcísio
de Freitas contra Lula em 2026. Choca,
mas não surpreende, que a notícia de que
o petista teria de passar por nova cirurgia
na quinta-feira 12 tenha feito o dólar
cair e a Bolsa subir na véspera.


A troca de Campos Neto por Galípolo
no BC em janeiro mudará o humor? Um
integrante da área econômica espera que
sim. Campos Neto, dizem lulistas no governo,
trabalhou para minar a confiança
do mercado no governo. Outra autoridade
torce para Galípolo usar parte das reservas
de 360 bilhões de dólares em intervenções
cambiais, pois a gangorra eleva
a inflação. “Tem de perguntar ao Banco
Central: por que a inação? É uma boa
pergunta. Será que eles acham que o câmbio
está no ponto de equilíbrio?”, pergunta
Lucchesi, da CNI. Sobre o que será do
BC com Galípolo, comenta: “Espero que
haja uma mudança, para o
bem do Brasil, não da indústria”.


Entidades industriais
como CNI e Fiesp manterão
a campanha contra o juro
alto na era Galípolo? Não
que possa ocorrer o mesmo,
até pelo que pensa Lula
do tema “juro”, mas no início
do governo Bolsonaro o
então presidente da CNI,
Robson Andrade, chegou a
ser preso por algumas horas
pela Polícia Federal, em
uma investigação sobre o
Sistema S. “Retaliação”, diz
Gomes da Silva. No caso da
Fiesp, haverá troca de bastão
em 2025. Sai Gomes da
Silva, volta Paulo Skaf, bolsonarizado
no período em
que o capitão esteve no poder.


Qual Skaf estará de novo
em cena? •

CARTA CAPITAL

December 15, 2024

Estiagem profunda deixa indígenas sem igarapé, quilombolas sem lago e paraíso turístico sob fumaça

 Vinicius Sassine

SANTARÉM (PA)

A sensação de caminhar por um igarapé ou por um lago que secou é perturbadora. Do silêncio à ausência de vida, do cenário distópico à transformação da paisagem, tudo incomoda.

Em regiões do baixo rio Tapajós e da várzea do rio Amazonas, nas proximidades de Santarém (PA), uma seca extrema, prolongada e inclemente impõe essa sensação a centenas de famílias. São pessoas que se viram em espaços transformados, de uma forma nunca vivida, por meses a fio.

No fim de setembro, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) declarou situação de escassez hídrica do baixo Tapajós, no oeste do Pará, uma forma de chamar a atenção para o momento crítico do rio e para que medidas fossem adotadas para mitigar os efeitos da vazante sem precedentes.

Desde então, Tapajós e Amazonas –cujas águas se encontram na altura de Santarém– vazaram ainda mais, com reflexos diretos às comunidades dispostas nas margens dos rios, igarapés e lagos.



Os rios seguem volumosos, dadas as suas proporções amazônicas, mas suas franjas encolheram de forma inédita, o que resultou na morte de igarapés e lagos abastecidos pelos cursos d’água principais.

Foi assim que indígenas, quilombolas e ribeirinhos se viram obrigados a conviver com uma paisagem radicalmente alterada. A presença de comunidades tradicionais nessa parte da amazônia está diretamente ligada a corpos d’águá que, agora, estão secos.



Crianças observam uma poça de água parada no leito do igarapé Mapiri, na aldeia Mapirizinho, que fica numa das margens do rio Tapajós - Lalo de Almeida/Folhapress

Os kumaruaras da aldeia Mapirizinho estão onde estão –terreno adentro após a margem do rio Tapajós, na resex (reserva extrativista) Tapajós-Arapiuns– em razão do Mapiri, um igarapé que desapareceu na seca extrema de 2024. O paraíso turístico do outro lado do rio, Alter do Chão, um dos destinos amazônicos mais conhecidos fora do país, vive encoberto por fumaça de queimadas.

Conforme a oralidade dos quilombolas de Saracura, que fica numa região de várzea do rio Amazonas, a comunidade passou a existir a partir da chegada de uma curandeira a uma área de restinga ao lado do lago das Piranhas. Escravizados fugidos de engenhos vieram na sequência, dizem os quilombolas descendentes. O lago sumiu com a estiagem profunda.


Quilombola da comunidade Saracura caminha por leito seco do igarapé das Piranhas, em várzea do rio Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

No Igarapé do Costa, comunidade que leva o mesmo nome do curso d’água, também na várzea do rio Amazonas, os pescadores dizem que existiu um Costa –Antônio Costa. Foi o pioneiro do lugar. A casa dele ficava em frente ao igarapé.

Em 2024, tanto o enorme lago que é a antessala da comunidade quanto o igarapé secaram. Na sequência, veio uma assustadora mortandade de peixes.

 

As transformações são radicais e impõem mudanças no estilo de vida das pessoas, tanto em razão do que se torna mais urgente –a necessidade de garantir acesso a água potável, num lugar onde ironicamente estão alguns dos rios mais caudalosos do planeta– quanto pela busca por novas formas de subsistência e transporte.

As casas da aldeia Mapirizinho foram construídas mais próximas do igarapé Mapiri do que do rio Tapajós. Com a seca severa e a formação de enormes bancos de areia no rio, as distâncias se alargaram. Motocicletas agora são usadas para o transporte após o percurso de barco pelo Tapajós.


Praias de areia formadas no rio Tapajós, na entrada para a aldeia Mapirizinho, em razão da seca extrema - Lalo de Almeida/Folhapress

Na Saracura, os quilombolas nunca haviam usado carros de boi. Mas a seca provocou um isolamento tão profundo que ficou impossível transportar alimentos sem um suporte. A saída da comunidade foi construir carros de boi, com adestramento dos animais para a função. Os primeiros foram feitos em 2023, quando também houve uma estiagem severa. Em 2024, já são seis veículos em uso.

Para o deslocamento dos ribeirinhos do Igarapé do Costa, que ficaram sem o lago Pacoval, a Prefeitura de Santarém forneceu uma caminhonete à comunidade. As embarcações ancoram na margem, e o restante do caminho –por onde antes existia água– é feito de carro. Da margem à comunidade, são 12 km dentro da caminhonete, que trafega pelo lago que não existe mais.


Caminhonete da prefeitura de Santarém é usada para percorrer quilômetros por lago que secou, na comunidade Igarapé do Costa - Lalo de Almeida/Folhapress

O igarapé dos kumaruaras, o lago dos quilombolas de Saracura e o lago dos ribeirinhos do Igarapé do Costa vão voltar à vida com o período de cheia. Mas há um desarranjo nos ciclos naturais da amazônia.

Já são duas secas severas e prolongadas, com efeitos cada vez piores. Indígenas, quilombolas e ribeirinhos esperam cursos d’água com menos vida –com muito menos peixe.

“O que restou do igarapé são poças de água podre”, afirma Roselino Paz Kumaruara, 49, cacique de Mapirizinho. “Essa comunidade surgiu, há muito tempo, porque os antigos estavam buscando água e acharam o igarapé Mapiri. Neste ano, ele sumiu.”


Roselino Kumaruara, cacique da aldeia Mapirizinho, observa leito seco do igarapé Mapiri, que está na origem da comunidade - Lalo de Almeida/Folhapress

Com a seca, as 42 famílias da aldeia dependem de um poço e de um sistema de distribuição de água estruturado para atender a duas comunidades. O consumo de água a partir de cacimbas cavadas no chão, próximas ao igarapé, se mostrou desastroso para os moradores; muitos adoeceram, com diarreia, vômito e dor de cabeça. Essa água de cacimbas ainda é usada para banho.


Um poço foi cavado ao lado do leito seco do igarapé Mapiri; é a chamada cacimba - Lalo de Almeida/Folhapress

Aldeias e outras comunidades da resex Tapajós-Arapiuns vivem realidades semelhantes. “Achávamos que poderia ser só efeito do El Niño, mas aí a seca veio de novo em 2024. O que será dos próximos anos?”, questiona Ana Livia Kumaruara, 28, que integra a coordenação do conselho indígena do território kumaruara na resex.

A seca extrema na amazônia brasileira, tanto na parte ocidental quanto na parte oriental, é a confluência de diferentes fatores: a incidência do El Niño (aquecimento acima da média no oceano Pacífico, perto da linha do Equador) em 2023 e parte de 2024, o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, o desmatamento e a degradação da floresta –associada ao fogo– e as mudanças climáticas.

A estiagem se prolonga, e começa mais cedo, como ocorreu neste ano em boa parte do bioma. Os rios têm dificuldades para retornar a pontos normais com o início da cheia, o que engatilha novo período de seca extrema.

O igarapé e o lago das Piranhas, fontes de subsistência na comunidade quilombola onde cerca de 90% das 164 famílias vivem da pesca, estão totalmente secos há um mês e meio.

A grama cresce, e o boi toma o lugar. São cerca de 2.000 cabeças de gado pastando onde antes existia água e peixe. Galões de água são transportados de Santarém para o consumo dos moradores.


Franciney de Jesus, liderança quilombola, tenta caminhar na margem de lago que quase desapareceu em razão da seca extrema - Lalo de Almeida/Folhapress

Houve mortandade de animais em poças que permanecem.

“Na cheia, os peixes chegam perto das casas. Curimatá, surubim, pirarucu, todo tipo de peixe dava nesse lago”, afirma Franciney Oliveira de Jesus, 42, uma das lideranças do Saracura, enquanto caminha por descampados onde antes existia água. “Nas cheias agora, com essa mortandade, vai ter cada vez menos peixe.”

O igarapé do Costa está próximo de Saracura, na mesma região de várzea do Amazonas. O que ocorreu na comunidade dos ribeirinhos, porém, não tem comparação.

Toneladas de peixes de diferentes espécies, entre eles o pirarucu, símbolo do manejo sustentável na amazônia, morreram em filetes de água que sobraram de igarapés e canais.

Sete comunidades, com 500 famílias, dependiam desses espaços para a subsistência. O desastre ambiental atravessou a rotina dos pescadores de uma forma nunca vista.


Toneladas de peixes mortos em igarapé da comunidade Igarapé do Costa, na várzea do rio Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

As lâminas d’água ficaram cobertas de peixes e outros animais mortos, como jacarés, tartarugas e arraias. Foi preciso arrastar essa matéria orgânica até as margens, o que foi feito pelos próprios ribeirinhos, e queimá-la.

Na água com temperatura elevada e sem oxigênio, diferentes espécies de peixe seguiam pelejando por vida, com busca por oxigênio na superfície. Cerca de cem tartarugas, que agonizavam, foram transferidas pelos pescadores para um poço de água limpa, ainda resistente ao calor e à estiagem.


Ribeirinho carrega uma tartaruga para transporte até um poço com água limpa, no Igarapé do Costa, em meio a mortandade de peixes - Lalo de Almeida/Folhapress

Agora, ninguém consegue imaginar o futuro.

“Nossa preocupação é quando a água chegar. O tempo agora seria o da desova. O peixe morreu tudo, como vai desovar?”, afirma Erick Penna Ribeiro, 33, presidente da associação de moradores do igarapé do Costa. “De março em diante, quando acaba o defeso [período do ano em que é proibida a pesca, para reprodução], não vai ter peixe.”

O presidente do conselho que abarca as sete comunidades impactadas, Ednei José da Gama, 49, tem prognóstico semelhante. “Do canal não espero quase nada. O surubim, a pescada, morreu quase tudo”, diz.


Vista aérea de Igarapé do Costa, onde houve mortandade sem precedentes de peixes, na várzea do rio Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress

Pescadores receberam um auxílio do governo federal –dois salários mínimos– para lidar com a emergência da seca, segundo relatos dos ribeirinhos. O MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) disse que um navio faria coletas da água para análises. Equipes das Secretarias de Meio Ambiente de Santarém e do governo Pará visitaram a comunidade para coleta de dados.


Pescadores descarregam pirarucus recém-pescados, uma correria contra o tempo diante da escassez de oxigênio na água - Lalo de Almeida/Folhapress

A emergência climática no oeste do Pará é mais visível em Santarém e em Alter do Chão, distrito da cidade de 332 mil moradores.

 Santarém passou dias encoberta por uma densa fumaça, com qualidade do ar em níveis perigosos, em razão de queimadas incontroláveis em áreas de floresta. A fumaça também encobriu Alter do Chão, destino turístico com fama internacional em razão de suas praias com areia fina e águas  cristalinas.


Vista aérea da Ilha do Amor, em Alter do Chão, distrito de Santarém. É possível, com a seca extrema, chegar a pé à península, bastante procurada por turistas - Lalo de Almeida/Folhapress

A seca mudou as paisagens de pontos turísticos. Praias afastadas, onde há estrutura de hotéis e restaurantes, ficaram sem condições de receber visitantes. Trechos do rio secaram, e a água ganhou aspecto de lama. Lagoas e canais para observação de animais também se viram transformadas em lodo. Houve uma queda de 25% no número de turistas, segundo guias do setor.

Do outro lado do paraíso, a seca extrema altera a vida de quem se acostumou à invisibilidade. Com a morte de lagos e igarapés que estão na origem da formação das próprias comunidades, ninguém tem certeza de mais nada sobre os próximos ciclos amazônicos.


Pés enlameados de Franciney de Jesus, liderança quilombola, após caminhada por leito seco de lago da comunidade Saracura - Lalo de Almeida/Folhapress

 

FOLHA

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