September 19, 2023

Independência sem povo

ALDO FORNAZIERI

Opovo foi o grande ausente na
Independência do Brasil. Foi
ausente também em todos os
eventos de caráter fundante posterio-
res, como a Proclamação da República,
a Revolução de 1930, a redemocratiza-
ção de 1945, os eventos que marcaram
o golpe de 1964, a transição e a Consti-
tuinte de 1988. Na Revolução de 1930,
houve engajamento mais significativo,
assim como na campanha das Diretas.
Mas esta resultou no Colégio Eleitoral,
um conciliábulo das elites, que escolheu
o presidente e o vice.
A primeira Constituição brasileira, em
1824, foi outorgada pelo príncipe herdei-
ro do poder colonial, que assumiu o im-
pério do Brasil como herança da Coroa
paterna. Nenhuma Constituição poste-
rior, nem mesmo a atual, teve o aval fun-
dante e legitimador do povo. O poder po-
lítico e a própria nação carecem de um
fundamento legitimador popular, ao
contrário de outras nações.
A Independência não passou de um
acerto entre a elite governante da colô-
nia portuguesa representante da aristo-
cracia rural e o príncipe herdeiro, dota-
do de pendores absolutistas. A chamada
“Guerra de Independência” que se suce-
deu em algumas províncias não passou
de escaramuças entre tropas portugue-
sas e um grupo, na sua maior parte de
mercenários, recrutados às pressas por
José Bonifácio. Não se formou um exér-
cito popular e as escaramuças careceram
de qualquer sentido heroico. As escara-
muças não semearam significações para
o futuro nem serviram de história exem-
plar para a qual as gerações futuras pu-
dessem recorrer como fonte inspiradora.
Nem sequer há certeza acerca das pala-
vras pronunciadas por D. Pedro I no pro-
palado Grito do Ipiranga. A literatura his-
toriográfica construiu uma declaração a
posteriori, atribuindo-a ao príncipe: “Ami-
gos, as Cortes Portuguesas querem es-
cravizar-nos e perseguir-nos. De hoje em
diante, nossas relações estão quebradas.
Nenhum laço nos une mais! Tirem suas
braçadeiras, soldados! Viva à independên-
cia, à liberdade e à separação do Brasil.
Pelo meu sangue, pela minha honra, pe-
lo meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liber-
dade. Brasileiros, a nossa dívida, de hoje
em diante, será: Independência ou morte”.
Muitos historiadores sustentam que
as palavras não foram essas. Teriam sido
outras, mais prosaicas e chulas. Mesmo
se tivessem sido essas, carecem de sig-
nificação maior. Trata-se de um rom-
pimento de natureza mais pessoal, não
tanto com a Casa Paterna, mas com as
Cortes Portuguesas que, apesar de terem
surgido como fruto da revolução liberal
do Porto, queriam recolonizar o Brasil.
Compare-se a declaração de D. Pedro I
à Declaração de Independência dos Esta-
dos Unidos. Nesta estão as razões, os fun-
damentos, os direitos, os princípios e os
valores que justificam a Independência e
lançam os alicerces constitutivos da no-
va nação. Em todos os documentos da in-
dependência brasileira o que se vê é uma
miséria de concepções fundantes. A In-
dependência foi feita por figuras pala-
cianas, agrupadas em torno do prínci-
pe, sem representação popular.
Caso não se queira tomar como referên-
cia a independência dos EUA, vamos à Ar-
gentina. A “Acta de la Independencia”, ela-
borada e assinada pelos representantes do
Congresso das Províncias Unidas, reuni-
do na cidade de San Miguel de Tucumán,
em 19 de julho de 1816, é muito mais ple-
na de significados do que os documentos
brasileiros. A ata expressava os desejos
de emancipação dos habitantes das pro-
víncias. Invocou os valores da liberdade e
da justiça e o propósito de construir uma
nação livre e independente, rompendo os
vínculos com os reis tirânicos da Espanha
e rejeitando a dominação estrangeira. Em
1825, com o fim das escaramuças, Brasil
e Portugal celebraram o Tratado de Paz,
Amizade e Aliança entre o império nas-
cente e o reino de Portugal.
A história posterior do Brasil seguiu es-
sa tipologia de mudanças designada por
Raymundo Faoro como “transições tran-
sadas”. São transições ou mudanças nas
quais as velhas elites dominantes se incor-
poram aos novos segmentos políticos que
surgem proclamando algum tipo de mu-
dança. Os próprios governos petistas ex-
pressam essa tipologia: incorporaram nes-
ses governos todos os tipos de elites tradi-
cionais para garantir a governabilidade.
O Brasil, ao assumir a conciliação co-
mo método do jogo político, tornou-se um
país inabilitado para as mudanças. Inabi-
litado para construir um propósito unifi-
cante nacional, para construir a efetivida-
de da igualdade, da liberdade, da justiça e
dos direitos de cidadania. Lula reconhe-
ceu esse fato recentemente ao dizer que
damos cinco passos à frente e, em segui-
da, dez para trás. Enquanto o povo não se
organizar e não constituir força mobiliza-
dora, conduzido por líderes autênticos e
virtuosos, portadores de uma estratégia
de mudanças, o Brasil permanecerá pre-
so a esta inabilitação para a mudança. •

CARTA CAPITAL

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