November 25, 2022

Guia de protesto para a Copa do Mundo no Qatar

 

 Jogadores alemães posam para foto tampando a boca com a mão

 Sandro Macedo

Qatar foi escolhido em dezembro de 2010 pela Fifa para sediar a Copa. Naquela época, o país já tinha sérias questões relacionadas a violações dos direitos humanos. Mas isso não era, e não é, problema da Fifa.

Afinal, a Fifa está mais para um banco mundial do que para a ONU, portanto, gostam de dinheiro, não de gente. A não ser que seja gente com dinheiro. Aliás, a minissérie documental "Esquemas da Fifa", da Netflix, mostra em quatro episódios o tipo de gente que a Fifa curte.

Talvez imaginava-se que o país-sede da Copa fosse pisar no freio, pelo menos durante o Mundial. Até pisaram, mas beeeem devagarinho. E depois aceleraram de novo. Já teve torcedor barrado com chapéu de arco-íris, jornalista barrado de restaurante com camisa de arco-íris e até bronca com bandeira de Pernambuco.

Às questões do país de perseguição à comunidade LGBTQIA+, somam-se as críticas às condições dadas aos trabalhadores, muitos deles imigrantes, que estiveram em ação na construção dos estádios e na melhora da infraestrutura para a Copa. De acordo com a Anistia Internacional, a conta de mortos foi na casa dos milhares.

Portanto, não faltam motivos para protestos. Aliás, sobram. Então, vamos protestar na Copa. Problema: a Fifa, que não gosta de gente, também não gosta de protesto no seu quintal.

Sete federações europeias queriam manifestar apoio aos grupos LGBTQIA+ com braçadeiras —o que significa que seis federações europeias não estavam nem aí; e nem vamos falar das sul-americanas. Como a Fifa sabe que multa não é um problema para os europeus, ameaçou dar cartão amarelo para os capitães. E ganhou a queda de braço.

Mas dá para protestar, minha gente, de várias formas. Está faltando criatividade aos atletas, tão espertinhos no TikTok. Os alemães já deram a deixa, com a mão tampando a boca na foto do jogo, para dizer que foram calados.

Mas vamos a algumas outras sugestões.

Cabelo. Tudo é permitido com o cabelo desde que Ronaldo, o nosso, fez o ridículo corte Cascão na fase final da Copa de 2002 —imitado por muitas crianças na época, fato pelo qual o Fenômeno já pediu desculpas. Assim, os jogadores que apoiam a causa LGBT poderiam pintar o arco-íris na cabeça. A Fifa nunca puniu cor de cabelo antes.

Não quer mexer no penteado? Não tem problema. Que tal as chuteiras? Foi-se o tempo em que todos os jogadores usavam chuteiras pretas (sim, sou viúvo da Copa de 1982). Todo mundo usa uma cor diferente no pisante, às vezes duas, outro dia vi uma chuteira furta-cor.

Por que não uma chuteira arco-íris? E fabricantes do calçado ganhariam um marketing positivo grátis. Em 2018, o suíço Shaqiri usou chuteira com a bandeira de Kosovo. Teve multa, mas não lembro de cartão amarelo por uso de chuteira.

Imagem com close nas chuteiras mostra uma delas com a bandeira de Kosovo e outra com a bandeira da Suíça

Dá também para usar a regra a favor. Agora são cinco alterações no time, e são 26 jogadores no elenco, com três goleiros. Na prática, isso significa que uns seis caras de cada seleção não vão entrar em campo nunca, certeza.

Dica: trocar um jogador útil por um inútil nos acréscimos de confrontos decididos e colocar a tal braçadeira proibida. Exemplo, imagine que uma partida entre Inglaterra e Irã esteja… sei lá… 6 a 2, aos 45 minutos do segundo tempo. Então você saca o goleiro titular Pickford (que nem é grande coisa) e coloca no lugar o terceiro goleiro, Ramsdale (que é melhor que o titular, mas deixa para lá). O que aconteceria? Ramsdale entraria com a braçadeira LGBTQIA+, com a inscrição "One Love", o juiz veria aquela atrocidade e daria um cartão amarelo. E pronto, protesto feito. No próximo jogo, volta o intrépido Pickford.

Última sugestão, e essa deixaria Fifa e qatarianos doidos: um selinho de comemoração. Jogadores se beijam o tempo todo nas substituições, se abraçam, se apalpam. Já pensou um dinamarquês fazendo gol e, na hora de celebrar, dar um selinho no amiguinho de uns cinco segundos? Gianni Infantino —que sabe o que é bullying com LGBT porque foi ruivo— ia cair do camarote direto no gramado.

FOLHA

 

 

 

 

November 24, 2022

Carta a Gianni Infantino

 

 

Mordaça: Jogadores da Alemanha entram para história do esporte
Jamil Chade

Jamil Chade

Prezado Sr. Gianni Infantino,

Quero te contar uma história. Em dezembro de 2010, numa noite fria em Zurique, estávamos todos esperando pelo anúncio do resultado da votação sobre onde seriam as Copas de 2018 e 2022. Minutos antes de o evento começar, encontrei um lugar ao lado de um colega escocês e, por coincidência, na fileira de trás de uma parte da delegação do Qatar.

Diante de mim, um dos spin doctors mais polêmicos e eficientes do mundo estava sentado. Mike Lee, que já faleceu, trabalhava pela campanha do Qatar, país que tinha sido classificado no relatório técnico da Fifa como o pior entre todas as candidaturas para sediar a Copa. Tirou a nota mínima e só não foi retirado do processo por uma decisão política.

Era a candidatura de um país que jamais tinha ido para um Mundial, que falava no absurdo de ar condicionado em estádios e que tinha sido humilhado no COI (Comitê Olímpico Internacional), anos antes, ao tentar sediar os Jogos Olímpicos.

Contra o minúsculo país estavam a sedução da Austrália, a tecnologia do Japão e a influência política e econômica dos EUA. Bill Clinton, de fato, estava também na sala.

Faltavam cerca de trinta minutos para Joseph Blatter subir ao palco com o envelope ao qual, supostamente, ninguém tinha acesso. Ali estaria o nome do vencedor de um evento que movimenta US$ 5 bilhões.

Lee, então, se vira para mim e, com as mãos, faz um sinal de que o Qatar tinha sido escolhido. E pisca, abrindo um enorme sorriso de satisfação. Ao lado do escocês, minha reação foi de deboche. Mas, em silêncio, pensei: "será que eles terão coragem de fazer isso? O futebol está mesmo à venda?"

Instantes depois, quando Blatter abre o envelope e a palavra "Qatar" explode nas manchetes de todo o mundo, Lee se volta para nós e confirma de novo com as mãos uma mensagem clara: "eu avisei".

Senhor presidente,

A Copa de 2022 é uma aberração. Não existiam motivos técnicos que a justificassem.

A Copa de 2022 é um projeto político de uma elite no poder que, com o futebol, comprou sua inserção no mundo.

A Copa de 2022 é imoral e uma afronta aos defensores de direitos humanos, ativistas e ambientalistas.

A Copa de 2022 é erguida sobre o sangue, lágrimas e a destruição da dignidade de operários que, sem pausa de verão, trabalharam em condições de semiescravidão.

A Copa de 2022 é um deboche aos torcedores de todo o mundo, incapazes de sonhar com a possibilidade de ter recursos para bancar uma estadia em Doha.

A Copa de 2022 é um insulto às mulheres e aos homossexuais, enquanto influenciadores postam nas redes sociais as maravilhas das torneiras douradas dos estádios.

Sempre que coloquei essa minha visão, ouvi duas respostas:

1. A Copa vai ajudar a abrir o Qatar ao mundo.

Minha resposta: a história mostra que isso é uma grande mentira. Em 2008, o COI usou o mesmo argumento para falar do impacto que a Olimpíada teria para a China. E a tal da abertura jamais chegou.

2. A Copa não pode ser o privilégio de apenas alguns poucos países do mundo.

Minha resposta; óbvio que não pode. Mas tampouco pode ser o privilégio de regimes violadores de direitos humanos que usam o evento para mostrar um rosto moderado e aceitável ao mundo.

Caro Infantino,

Quando o senhor estiver sentado nas confortáveis e luxuosas poltronas dos estádios no Qatar e sentir um incômodo, não se surpreenda. Pode ser que seja o deserto, que rende a todos nessa parte do mundo. Ou talvez sejam os espíritos que, já com seus passaportes devolvidos pelos empregadores na forma de caixão, agora podem circular finalmente de forma livre pelo país.

"Sabían de la muerte, lo duro que es el pan", cantaria Victor Jara. "Venían del desierto, de los cerros y del mar".

Quando, nestas lindas arquibancadas o senhor gritar gol, não tenha ilusão. Ele será incapaz de abafar o berro que já ecoa por cada corredor desses estádios. O grito do desespero de uma parte da humanidade invisível.

Saudações tricolores,

Jamil

****

UOL 

 

November 20, 2022

Verde e amarelo

 

 


 UM ROTEIRO SOBRE A CRIAÇÃO
DA CAMISETA DA SELEÇÃO, SEU
SEQUESTRO PELO GOLPISMO E O
DESTINO DE UM BRASIL FRATURADO

p o r A N D R É C O S T A N T I N * 


Este é o roteiro de um filme
inacabado sobre um ícone do
Brasil. O enredo é um crime
político: o sequestro da cami-
sa da Seleção brasileira de fu-
tebol. A mística camisa ama-
rela vaga pelo seu inferno
simbólico, nesta quadra his-
tórica em que o País, saído de uma trau-
mática eleição para presidente, ensaia seu
retorno à luz. Nação e símbolo desencan-
taram-se, o corpo procura sua alma.
Nestes dias alucinantes, o drama desta
história toca o ápice, em busca de desen-
lace. O Brasil entra em campo na Copa do
Mundo do Catar, renovando a gasta espe-
rança do hexa. Nas ruas, a camisa do Bra-
sil derrama seu amarelo-ouro
nas multidões que acampam
às portas de quartéis, do Sul
ao Norte, e pedem “interven-
ção” militar. Traços de ficção
atravessam a realidade.

 
Cena/Sequência 1 (Cami-
sa em Transe): Dia de Finados,
novembro de 2022. Parentes visi-
tam seus mortos em uma cidade indus-
trial do Sul do Brasil. Depois saem às
ruas, de amarelo, em grupos. Passaram-
-se três dias da eleição presidencial. Os
jornais ainda noticiam a vitória de Lu-
la. Estou diante da ilha de edição de um
filme, mas não há concentração possível
com a estranha vibração que vem da rua.

Vou para casa. Tro-
co o carro pela moto.
Dirijo-me ao encontro
da multidão, até onde é
possível. Depois, sigo a
pé. Penetro a agitação
verde-amarela, de ca-
pacete, gravo com um
Iphone. “Deus, pátria,
família”, o lema estam-
pa as camisas amarelas,
em múltiplas variações,
entre os fanáticos abduzidos
pelos smartphones. Em planos-
-sequência, filmo famílias intei-
ras, de avós a bebês, que se movem ao
centro do teatro: o portão de um grupa-
mento do Exército. Na maioria, brancos
como eu. Parecem saídos da missa das
10 da Igreja dos Capuchinhos, nas cer-
canias do quartel. Uma carreata ruido-
sa tangencia a manifestação.

 
Entro pelo núcleo central, onde a massa
se adensa e se move por inércia, bloquean-
do a avenida. Animadores discursam no
alto de um caminhão de som. Toca o Hi-
no Nacional. Depois todos cantam o Hi-
no da República Rio-Grandense: Sirvam
nossas façanhas de modelo a toda a Terra...
Vendedores de camisas da Seleção,
dispostas em araras, faturam sem pa-
rar. Todos querem a de Neymar Jr. Só

ha do Neymar – o camisa 10 bolsona-
rista. Um rapaz assa churrasco de cos-
tela gorda na caçamba de uma picape. O
orador, outro camisa 10, pede que todos
se ajoelhem no asfalto, para juntos reza-
rem um Pai-Nosso. Pela pátria.

 
Corte/Camisas e bandeiras em profu-
são: ignoram, estas milhares de almas,
amalgamadas nas redes sociais, a gênese
da camisa que hoje veste seus devaneios
em praça pública. Concebida nas lonjuras
do extremo Sul do Brasil, a camisa da Se-
leção é a criação de um brasileiro da fron-
teira, ferrenho amante e defensor da de-
mocracia e das autênticas liberdades: o es-
critor Aldyr Garcia Schlee, com quem via-
jamos em busca de uma biografia da ca-
misa brasileira, para contar esta história.
Este senhor do Pampa, forma-
do na linha tênue entre Brasil
e Uruguai, inventou a camisa
da Seleção brasileira de futebol
no ano de 1953. Aos 17 anos, fez
surgir em papel e guache a ca-
misa-síntese do Brasil, para dar luz e no-
vo espírito nacional ao opaco uniforme
dos jogadores brasileiros nos estádios do
mundo. Schlee criou um símbolo tão bri-
lhante e vitorioso que se tornou a repre-
sentação oficial de todos os esportes na-
cionais. Mais: virou ícone da brasilida-

e, do jogo bonito, uma ideia de Brasil. A
camisa do rei Pelé e outros seres mági-
cos, mais vista, mais sonhada e mais re-
conhecida aqui e no mundo do que a pró-
pria bandeira nacional.

 
Marca identitária de um país do futu-
ro, feita manto e escudo de heróis míti-
cos, a camisa dita “Canarinho” teria de
cumprir, por força do destino, a sua jor-
nada dantesca, entre o Céu e o Inferno.
Para além dos estádios e das transmis-
sões de tevê, também revestiu os fantas-
mas de um velho Brasil: o reacionarismo
atávico, o autoritarismo.

 
Na companhia não do poeta Virgílio
– como no périplo de A Divina Comédia,
de Dante Alighieri –, mas de um sombrio
Messias emanado da nossa pior tradição
política, a camisa desceu aos círculos do
Inferno e vestiu na última década legiões
de brasileiros aprisionados ao Brasil ar-
caico, violento e ressentido.

 
Hoje, nas ruas e nos corações da nação,
entre os que se agitam na histeria golpis-
ta e os que silenciam no exílio simbólico
da cor amarela, a camisa do Brasil vive
seu maior transe. Podemos ouvir a voz do
narrador global, onipresente: “A pergunta
de milhões, haverá redenção da camisa?”
Cena/Sequência 2 (A Camisa Seques-
trada): O carro cruza a fronteira e mer-
gulha no Uruguai. Schlee, o pai da cami-
sa da Seleção, está com 83 anos. Tem os

olhos fixos na paisagem que escolheu co-
mo sua, brasileiro ao Sul do próprio País,
no território imaginário que viveu, rein-
ventou e escreveu, transbordando limi-
tes de terras reais e abstratas: o Pampa.

 
Nosso destino é Montevidéu, onde Bra-
sil e Uruguai entrarão em campo pelas eli-
minatórias da Copa da Rússia. Estamos
em março de 2017, átrio do inferno bolso-
narista, em cujo portal imaginário o con-
de Temer recita Dante: “Deixai cada es-
perança, vós que entrais”. Embora o hori-
zonte anunciasse as cinzas amazônicas e
as nuvens da nossa necrofilia política, ía-
mos em busca de um sentido original, de
uma possível redenção da camisa brasilei-
ra. Schlee sabe, sem o dizer: é a sua últi-
ma travessia Uruguai adentro, o reencon-
tro com a sua maior criação, quase renega-
da, ao fim da vida. De ícone de uma dese-
jada nação da alegria e da ginga, a camisa
da Seleção retrocedeu à condição da nos-
sa decantada vira-latice. Foi colada à cor-
rupção da cartolagem, ao futebol mone-
tário, até chegar ao sinistro 7 a 1. E, desde
então, viajou por inenarráveis subterrâ-
neos. O novo sentido da camisa foi anun-
ciado na onda dos protestos de 2013. Mul-
tidões gritavam que o gigante acordava.
Aos poucos, a cor amarela associava-se ao
patriotismo, na vazão do expurgo coleti-
vo, sem direção – e outros ismos: naciona-
lismo, militarismo, lavajatismo, golpismo,
até o abismo bolsonarista.

 
Schlee mira o deserto do Pampa, fala
de seu desencanto amarelo. “O que me
deixa profundamente triste, que me faz
ficar de mal com a minha criação, é o fa-
to de a camisa ter se tornado um símbo-
lo popular do golpe que tirou uma presi-
denta do País democraticamente eleita.
O uso político da camisa da Seleção é al-
go que precisa ser revisto.”

DE ÍCONE DE UMA
DESEJADA NAÇÃO
DA ALEGRIA E DA
GINGA, A CAMISA
DA SELEÇÃO
RETROCEDEU À
CONDIÇÃO DA
NOSSA DECANTADA
VIRALATICE

 
Cena/Sequência 3 (A Camisa de San-
gue): Ainda nos ares de 2013, um oculto
sentimento ou ser, inominado, fermen-
tava nos intestinos da nação. Era até en-
tão um ser opaco, cronicamente inviável.
Movia-se há 30 anos pelos submundos do
Exército e da política. O Messias envia-
do, com a arma e a Bíblia nas mãos, so-
bre quem recaiu tamanha energia acu-
mulada, ganhou um nome. Um certo Jair
– com o erre de pronúncia caipira, masti-
gado pela ancestralidade italiana do in-
terior paulista. Jair Messias Bolsonaro.
Em um toque de tragédia grega,
de repente, às vésperas da elei-
ção de 2018, uma faca atraves-
sa a camisa amarela do Messias,
carregado por mitômanos em
Juiz de Fora – roteiro de um
filme B, sangue e ketchup a vazar da te-
la. Fez-se o mito no quintal do mundo.
O poder refestelou-se na camisa da Se-
leção. A camisa amarela nele encarna o
modelo de um fascismo à brasileira, ana-
crônico, messiânico, histérico e melan-
cólico a um só tempo. De amarelo agita-
vam-se os manifestantes que, ao míni-
mo sinal do Messias às portas do palá-
cio, saíam às ruas para exigir a interven-
ção militar, o fechamento do Congresso
e do Supremo – o cabo e o soldado no ji-
pe, generais de óculos escuros a sobrevo-
ar a Praça dos Poderes.

 
Recaída, a camisa da Seleção de certo
modo regurgita o passado. No tricampeo-
nato da Copa do México, em 1970, ela ser-
viu ao clichê da pátria de chuteiras, in-
flada pela ditadura iniciada em 1964.
Rivellino, Gérson, Tostão, Jairzinho e
Pelé embalavam o “esquadrão de ou-
ro” do Prá Frente Brasil, canção-tema
da propaganda ufanista daqueles anos.
Passados quase 50 anos, tendo o País
atravessado a ponte da ditadura, a ca-
misa amarela volta ao olho do furacão,
transformada em farda civil, quase mili-
tar. Talvez a camiseta Canarinho tenha,
enfim, ajustado o figurino ao corpo e à al-
ma que realmente somos: um Brasil du-
ro, perna-de-pau, movido por esse ódio
cíclico que nutrimos por nós mesmos.
Não mais aquela fantasia que imaginá-
vamos e desejávamos ser, a caminho do
futuro, longe, mas promissor.
Cena 4/Corte (O Carro de Som):
8 de novembro de 2022, pas-
saram-se nove dias da eleição
de Lula. O técnico Tite anun-
cia os convocados da Seleção.
Um carro de som circula lá
fora, com um mantra de mil decibéis:
“Patriotas, a nossa pátria sofreu um du-
ro golpe contra a democracia. A eleição foi
fraudada. Não respeitaram a vontade do
povo. Por isso convidamos todos vocês a
se juntarem a nós e ir até os portões dos
quartéis. Pela nossa pátria, pelas nossas
famílias, pelos nossos filho e netos”.

 
Cena/Sequência 5 (Ao Sul da Camisa):
Retornamos à estrada. O pertencimento
da camisa é uma viagem alucinante, com
destino incerto. O Pampa aprofunda-se
até Jaguarão, 152 quilômetros ao sul de
Pelotas. A cidade ainda é quase toda um
sítio histórico, com fachadas portuguesas.
A camisa brasileira não deixa de ser
uma refração dessa faixa de fronteira,
que divide, mas também revela o que es-
tá à nossa frente. É onde Schlee nasceu e
viveu até a adolescência, o território real
e imaginário de sua vida e obra literária,
em dezenas de contos, novelas e roman-
ces – vários traduzidos e adaptados, en-
tre eles os contos de O Dia em Que o Pa-
pa Foi a Melo (1991/Uruguai; 1999/Bra-
sil), que virou o filme O Banheiro do Pa-
pa, de César Charlone, em 2007.

 
Aos 7 anos, Schlee era iniciado no fute-
bol pelo tio Oscar Garcia, goleiro de fama
em Jaguarão. Nos vestiários de tábuas,
fedendo a urina, o menino ficava quieto
nos cantos, diminuído, vendo aqueles ho-
mens de falas portuguesas e castelhanas,
nus, dizendo palavrões. Pegou paixão pe-
la “Celeste” uruguaia. Inspirado na crô-
nica esportiva das revistas El Grafico e
Mundo Deportivo, de Montevidéu, pas-
sou a reproduzir os gols que ouvia em de-
senhos e esquemas gráficos. Surgia o cro-
nista e o artista.

 
Paramos às margens do Jaguarão pa-
ra gravar. Ao fundo está a ponte em arcos,
fortificada, que liga o Brasil ao Uruguai.
Voltamos à lembrança da Copa do Mundo
de 1950. O Brasil foi abatido pelo Uruguai
no Maracanã, no episódio que entrou pa-
ra a história como Maracanazzo – e para
a crônica sociológica do “complexo de vi-
ra-latas”, de Nelson Rodrigues.

 
No dia daquela final, Schlee tinha cru-
zado a ponte. Estava no cinema, do lado
uruguaio, quando o filme foi interrom-
pido. Acenderam-se as luzes e o locutor
anunciou que o Uruguai se sagrava cam-
peão do mundo no Brasil. Delírio geral.
“Eu chorava copiosamente, mas não sa-
bia se era de tristeza ou de alegria.”

 
Até o trauma do Maracanã, a Sele-
ção brasileira jogava de camisas bran-
cas. Na iminência da Copa de 1954, sur-
ge um movimento para criar a nova ca-
misa. “Era a velha forma de mudar algu-
ma coisa para manter tudo igual”, afir-
ma Schlee. A Confederação Brasileira

e Desportos (CBD), ancestral da CBF,
associada ao jornal Diário da Manhã, do
Rio de Janeiro, lança um concurso nacio-
nal. Schlee nem acreditava quando saí-
ram rumores da escolha. Era ele o gran-
de vencedor, entre mais de 300 artis-
tas do País. Além do prêmio em dinhei-
ro, ganhou um ano de estágio como ilus-
trador no Correio da Manhã. Participa-
ria dos eventos e jogos oficiais do novo
uniforme, conheceria os ídolos que de-
senhava na adolescência.

 
A jornada do rapaz de Jaguarão, na
efervescência do Rio nos anos 1950, da-
ria a ele, em igual medida, o fascínio pe-
lo futebol e o olhar crítico àquele uni-
verso, aspectos que marcariam sua vi-
da e obra até o fim, inclusive na relação
com a sua maior invenção: a camisa Ca-
narinho. Expressão que, aliás, o fazia rir.
“Não sei quem inventou essa história de
camisa Canarinho, o amarelo da camisa
não tem nada a ver com canarinho, mas
o apelido pegou.”
Nos mais de 500 quilômetros de
Pampa que nos deixariam na
boca de Montevidéu, Schlee
manteve irredutível seu pal-
pite de 4 a 0 para o Uruguai.

 
Subimos as escadarias do
Estádio Centenário, anel superior-oes-
te, fila 5, assento 13. Em campo, as sele-
ções Celeste e Canarinho, enfileiradas,
para os ritos oficiais. “A camisa azul-ce-
leste é perfeita, mas a amarela também é
linda”, disse, antes de chorar copiosamen-
te durante o coro uníssono do hino uru-
guaio, entoado por 50 mil vozes.
Pênalti para o Uruguai: gol de Cava-
ni. Depois veio a virada, 4 a 1 para o Bra-
sil. Fim de jogo. O estádio esvaziava, em
silêncio, a massa celeste. Um torcedor
espalhava a notícia de que ali estava o
pai da camisa do Brasil. Descemos até
o gramado, segurando o corpo exausto
de Schlee. Ele caminhou até o centro do
campo, vazio. Levava nas mãos uma ca-
misa, réplica do modelo de 1962. Pedi a
ele que a assinasse. Dei-lhe os ombros,
de apoio. Senti nas minhas costas a gra-
fia trêmula daquele instante.

 
Dois dias depois reentramos pela fron-
teira. No portão da casa de campo, nas
cercanias de Pelotas, Schlee nos guiou
pela ampla biblioteca. Abriu pastas e cai-
xas com os álbuns e os desenhos originais
da camisa eleita, guardados por seis dé-
cadas. Algo maior nos esperava. O artis-
ta entrou a revirar as gavetas da escriva-
ninha, aflito, até encontrar um estojo me-
tálico de tinta guache, com 12 cores. “Aqui
está, essa é a tinta que usei.” Com um pin-
cel de ponta fina, verteu três gotas d’água
no amarelo mais denso da cartela, quase
todo gasto. O pigmento ganhou vida, len-
tamente. Sobre uma cópia do desenho de
1953, começou a pintar. “Bah! Que bom
que eu achei isso. De repente, a gente pin-
ta a camisa de novo, tanto tempo depois.”

 
Viajamos ao encontro de Schlee ain-
da uma vez. No apartamento em Pelo-
tas, o filmamos durante o jogo entre Bra-
sil e Bélgica, em julho de 2018, quando
a Seleção foi eliminada da Copa da Rús-
sia. “Nossa seleção tem um craque com
os pés de barro”, dizia, enquanto anota-
va os gols, jogadores e lances da partida.
Desenharia o último álbum das Copas.
Os tempos não eram nada bons, em ou-
tubro venceria o Messias.

 
O artista saiu de campo às vésperas
do amistoso internacional entre Brasil
e Uruguai, em Londres – aqui, dia da Re-
pública. A 16 de novembro de 2018, fez-
-se o minuto de silêncio no estádio do
Arsenal, com as seleções dos dois países
perfiladas, em homenagem ao homem da
fronteira, de coração híbrido, brasileiro e
uruguaio. No mesmo dia do jogo, em Pe-
lotas, cumpria-se o adeus a Schlee: o cai-
xão nu, sem bandeira ou camisa amarela.

 
Cena Final (A Camisa no Exílio): Ob-
servo a camisa amarela, pendurada nas
travessas do sótão da casa, assinada no
quadrante do coração por Aldyr Schlee,
naquela noite em Montevidéu. Guardo
o desejo de, um dia, poder vesti-la no-
vamente.
 

CARTA CAPITAL