April 28, 2019

A DERRADEIRA ANÁLISE DA OBRA DE OLAVO DE CARVALHO, PARA NUNCA TER DE LÊ-LO

Homem de Vitrúvio, de Leonardo da Vinci, é um símbolo do homem divinizado, que reúne em si o macro e o microcosmo. Foto: VCG Wilson / Corbis / Getty Images


João Pedro Sabino Guimarães




(PARTE 2)
*ÉPOCA dividiu em três partes a análise sobre a obra do ideólogo de direita. Clique aqui para reler a primeira parte.


No início dos anos 90, Olavo de Carvalho passou por uma surpreendente metamorfose. Deixando para trás a persona do jornalista esotérico e astrólogo intelectualizado, resolveu estudar filosofia no Conjunto de Pesquisa Filosófica (Conpefil) da PUC-Rio, sob a direção do padre Stanislavs Ladusãns. Após três anos de estudos, cansado da disciplina acadêmica, abandonou o curso. Mesmo sem diploma universitário, começou a dar aulas de filosofia, valendo-se de seus contatos no meio cultural. A quem o acusava de não ter qualificação para isso, ele retrucava:
“Filósofo, por definição, é quem filosofa, é quem elabora, bem ou mal, uma resposta pessoal a questões filosóficas, ou pelo menos uma interpretação original de filosofias antigas”.

Com base nas aulas que vinha proferindo na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, elaborou um breve estudo sobre a teoria aristotélica do discurso, cujo manuscrito foi recusado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O incidente deu início a um titânico embate entre o “filósofo” autodidata e o establishment acadêmico brasileiro.
“Há décadas nossa intelligentsia vive de ficções que alimentam seus ódios e rancores e a impedem de enxergar a realidade.”
Assim nascem os grandes conflitos. O parecer da SBPC sobre essa primeira incursão de Olavo de Carvalho no terreno da filosofia dizia:
“O autor parece ignorar a imensa produção sobre Aristóteles publicada nos últimos anos, seja em revistas especializadas, nos anais de congressos, em teses e livros (...) não tem acompanhado os debates que se desenvolvem em inúmeros centros de pesquisa”.
Furioso com o parecer, Olavo publicou a obra por conta própria, com o título de Uma filosofia aristotélica da cultura (1994). E partiu para o contra-ataque, divulgando textos em que ridicularizava a SBPC e acusava seus pareceristas de desconhecerem a filosofia clássica

“Para mim, o homem que sabia javanês infiltrado nas universidades e nas instituições culturais em geral é tão escandaloso, tão daninho para o país quanto um João Alves ou um PC Farias.”
A verdade sobre esta teratologia talvez possa ser encontrada na “justa medida” aristotélica. O parecer da SBPC assinalava um ponto importante: Olavo de Carvalho não é um filósofo de cátedra nem contribui para o avanço da filosofia como disciplina acadêmica. No entanto, também o autor esnobado tinha sua dose de razão: homens como Sócrates, Sêneca, Agostinho, Boécio, Montaigne, Pascal e Camus tampouco estiveram circunscritos a um meio acadêmico formal. A produção do pensamento sempre tenderá a transcender o meio universitário.
Como então classificar o mago de Richmond? Como o faríamos com Voltaire e Diderot, descontado o talento dos franceses. Olavo de Carvalho é um philosophe à brasileira: um livre-pensador, no salon littéraire do Cordão do Bola Preta. Ele ama a polêmica e exerce fascínio sobre muitos de seus ouvintes, porém mistura elementos caóticos em tudo que diz, sem muita preocupação com a coerência de seus argumentos ou a civilidade de sua retórica. Garante Olavo, sobre si mesmo:
“Não sou filósofo, não, apenas um escritor de livros que, por mera coincidência, tratam de filosofia, professor em cursos privados que, dada minha carência de outros conhecimentos, tratam também de filosofia, e proprietário de um cérebro que, por absoluta falta de outros interesses, se ocupa de filosofia obsessivamente e em tempo integral

Essa autoimagem do autor de O imbecil coletivo (1996) é pura lábia de cigano das letras. O ofício de Olavo é a polêmica, não o pensamento. Importa-lhe antes nocautear o adversário do que respeitar os fatos e ater-se à boa lógica. Por mais que alardeie ser um defensor da filosofia clássica, ele há três décadas comporta-se como o mais censurável dos sofistas:
“A noção mesma de ‘intelectual’ no sentido moderno é sobretudo um retórico — um agitador de ideias, que nada descobre ou cria por si, mas faz um barulho imenso e põe em movimento a máquina da História”.

Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo marxista italiano, criou o conceito de hegemonia cultural, uma das grandes ameaças à civilização ocidental, na visão de Olavo de Carvalho. Foto: Fototeca Gilardi / Getty Images
Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo marxista italiano, criou o conceito de hegemonia cultural, uma das grandes ameaças à civilização ocidental, na visão de Olavo de Carvalho. Foto: Fototeca Gilardi / Getty Images

Eis um retrato preciso do que Olavo faz. Igualmente importante é ter em conta que o autor de O jardim das aflições (1995) formou-se como intelectual na escola perenialista de René Guénon, Julius Evola e Frithjof Schuon. Nenhum desses proponentes da “sabedoria perene” era propriamente um scholar. Demasiado irrequietos para suportar os rigores da vida universitária, simplesmente publicaram suas obras, criando uma nova linhagem no campo do esoterismo ocultista. Tinham por hábito chamar a si mesmos de “metafísicos”, mas sabiam estar a meio caminho entre o guru letrado e o ensaísta delirante. Diz Olavo sobre eles, pensando talvez no próprio caso:
As antigas tradições e mitologias estão repletas de histórias de magos, sacerdotes e profetas que nomeiam reis e depois sofrem as maiores ingratidões de seus protegidos. A coisa parece ser uma constante da história humana. Segundo René Guénon, é mesmo. (...) Não deixa de ser interessante que a disputa de prioridade espiritual entre as castas sacerdotal e real se reproduza, na escala discreta que convém ao caso, entre os dois maiores escritores esotéricos do século XX: René Guénon e Julius Evola”.
Após sua breve incursão na seara aristotélica, Olavo de Carvalho passou a dar aulas de filosofia e publicar com sofreguidão. Em um par de anos, firmou-se no debate nacional como um polemista assombroso. Seus artigos e ensaios não eram propriamente obras de filosofia, mas peças de crítica cultural, com forte inclinação para a opinião política. Desde o começo mostrou-se implacável nas críticas à esquerda, cujos métodos e debilidades conhecia por experiência própria. Seus textos, contudo, sempre primaram por mesclar o comentário pertinente às mais extravagantes teorias conspiratórias:
“Há 60 anos nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. (...) A imagem do crime na nossa cultura compõe-se em última análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja origem primeira está na instrução transmitida pelo Comintern, em 24 de abril de 1933, ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro”.

Olavo notabilizou-se também por seu frequente recurso ao comentário chulo...
“Mao Tsé-tung, como se revelou há pouco, comia até os guardinhas do Palácio — entrando, literalmente, para os anais da Revolução.”
...e ao insulto despropositado:
“E logo em seguida um cantorzinho como qualquer outro (referindo-se a Gilberto Gil), cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado de Roberta Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era consagrado por um cargo ministerial como epítome da ‘cultura nacional’ — seja isso lá o que for”.
Nada disso edifica ou conduz à sabedoria. Pelo contrário, produz no leitor um aviltamento da alma, um entorpecimento do intelecto. São características típicas de quem se formou na gnose obscura da escola perenialista, com seu revisionismo delirante da história, sua nostalgia pelo sistema de castas e seu desprezo pelos povos africanos e seus descendentes:
“Alguns supostos amigos do movimento negro parecem empenhados em transformar a luta antirracista numa cruzada contra a inteligência. (...) Não existe povo bom: e vocês, se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos por mais de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino”.
Vem também do perenialismo a desenvoltura de Olavo no exercício do preconceito

“O direito à preferência sexual gay) é insensato se não acompanhado pelo concomitante direito à repugnância; e o direito à expressão de um vem com o direito à expressão de outra”.
Em qualquer país mais atento às regras do convívio civilizado, textos dessa natureza levariam ao encerramento da carreira intelectual do autor. Aqui no Patropi, terra de Macunaíma e Dercy Gonçalves, a escatologia “filosófica” de Olavo de Carvalho foi seu cartão de visita.
Em meados dos anos 90, Olavo publicou três livros que o lançaram para a fama nacional: A Nova Era e a revolução cultural (1994), O jardim das aflições e O imbecil coletivo . O primeiro desses volumes começa com uma apreciação crítica do pensamento de Fritjof Capra, um físico teórico em ponto de mutação para a lucrativa profissão de guru californiano. Olavo vê nas propostas edulcoradas de Capra — e demais teóricos da nova era — uma estratégia sutil de dominação psicológica das grandes massas, destinada a prepará-las para o advento da Nova Ordem Mundial:
“Ao prometeanismo revolucionário, ela (a ideologia da nova era) opõe a ‘integração da natureza”; à aceleração da história, o equilíbrio ecológico da Nova Ordem Mundial; e ao historicismo absoluto, o fim da História. Capra é inconcebível sem Fukuyama. (...) Todo o vistoso ‘esoterismo’ da Nova Era, com suas iniciações secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, não constitui senão o exoterismo, o aparato externo e social, cujo interior, cujo ‘sentido esotérico’ é na verdade uma ciência bem moderna, racional e profana: o planejamento estratégico.

No entender de Olavo, junto ao capitalismo lisérgico da nova era, outra ameaça para a civilização ocidental seria o pensamento do marxista italiano Antonio Gramsci:
“Gramsci estabeleceu uma distinção das mais importantes entre ‘poder’ e ‘hegemonia’. O poder é o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército e a polícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre a multidão. (...) Não é preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto e incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e pelo consentimento popular”.
Ele então explica a estratégia gradual de dominação da “revolução cultural gramsciana”:
“O gramscianismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de objetivos propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as mais inócuas em aparência. (...) O objetivo primeiro do gramscianismo é muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um giro de 180 graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso de proporções, sem o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente antagonismos indesejáveis”.
Segundo Olavo, as ameaças à civilização ocidental viriam de duas vertentes. A primeira, de inspiração maçônica, teria como características o Estado laico e a promoção de uma cultura individualista e decadente. A segunda, de inclinação marxista, estaria marcada pela inovação gramsciana, em que a proposta de revolução armada é substituída pelo gradualismo da revolução cultural:

“Dessas semelhanças (entre as duas vertentes), a mais significativa é a negação do conhecimento objetivo e a consequente redução da atividade intelectual à propaganda e à manipulação das consciências. (...) A função da intelectualidade é, portanto, gerar essas ilusões e ‘inculcá-las gradualmente’ na cabeça do povo. Eles divergem somente quanto à identidade do intelectual: para (o filósofo Richard) Rorty, ele se constitui da comunidade acadêmica; para Gramsci, é o Partido ou ‘intelectual coletivo’”.

Multidão durante uma manifestação comandada por Leon Trotski e Joseph Stálin em Moscou, em outubro de 1917. Segundo Olavo de Carvalho, a esquerda trocou a revolução armada pelo gradualismo da revolução cultural. Foto: Hulton Archive / Getty Images
Multidão durante uma manifestação comandada por Leon Trotski e Joseph Stálin em Moscou, em outubro de 1917. Segundo Olavo de Carvalho, a esquerda trocou a revolução armada pelo gradualismo da revolução cultural. Foto: Hulton Archive / Getty Images

Essa ideia de uma dupla ameaça — vinda, de um lado, do liberalismo capitalista; de outro, do socialismo marxista — reproduz, com pequenas modificações, uma tese central da escola perenialista. Eis o que diz o mitógrafo e ocultista Julius Evola, em Revolta contra o mundo moderno(1934):
“A Rússia e a América são como as duas pontas de um mesmo par de tenazes, que se estão fechando, pelo Oriente e pelo Ocidente, sobre o núcleo da Antiga Europa, demasiado debilitado em suas energias e em seus homens para opor-lhes efetiva resistência. Os conflitos externos, as novas crises e as novas destruições serão apenas os meios para abrir definitivamente o caminho às variedades do mundo do Quarto Estado (do proletariado)”.
O raciocínio é levado adiante por Julius Evola, em artigo da antologia Metafísica da guerra, originalmente publicado em 1937, na revista italianaIl Regime Fascista , da qual ele era o editorDE]

“Se as duas fases mais recentes do processo involucionário que levou ao declínio moderno foram, primeiramente, a ascensão da burguesia, e, em seguida, a coletivização não apenas da ideia de Estado, mas também de todos os valores e da própria concepção de ética, então, a superação de tudo isso e a reafirmação da visão ‘guerreira’ da vida, no pleno sentido que anteriormente mencionamos, deve constituir uma precondição de qualquer reconstrução: que o mundo das massas e das classes médias materialistas e sentimentais dê lugar a um mundo de ‘guerreiros’; então a principal mudança terá sido alcançada, o que tornará possível o advento de uma ordem ainda mais elevada, aquela da espiritualidade tradicional”.
Os resultados dessa pomposa reação ao “mundo das massas e das classes médias materialistas e sentimentais” — representado pelo “par de tenazes” da Rússia e da América — foram o nazifascismo e o Holocausto. O pensamento de Olavo de Carvalho vem dessa mesma linhagem teórica e sobre ela aplica modificações meramente cosméticas. Eis um trecho de O jardim das aflições :
“A crença no Sentido da História é comum aos comunistas e aos democratas Ocidentais. Estes não creem no esquema marxista, na revolução ou no advento da utopia proletária, mas creem no progresso das instituições, no aperfeiçoamento gradual das leis, na redução progressiva da miséria, na educação universal, na extensão a todos os homens dos benefícios da economia e da cultura modernas. (...) Divergem apenas nos meios e no tipo de sociedade a que aspiram, mas, tanto quanto os comunistas, não concebem que a vida possa ter algum sentido fora ou acima da História. (...) Socialismo e Capitalismo são, assim, as duas seitas em que se cindiu uma mesma religião

Examinadas com maior atenção, as ideias de Olavo de Carvalho revelam-se meros derivativos do “fascismo cultural” de René Guénon e Julius Evola. Em linha com seus mestres, ele se insurge contra tudo que caracteriza a modernidade: a democracia liberal, as ideologias igualitaristas, a laicidade do Estado e a própria ciência moderna. Nesse último caso, seu principal inimigo é o evolucionismo:
“O darwinismo é uma ideia escorregadia e proteiforme, com a qual não se pode discutir seriamente. (...) Puramente farsesco, no entanto, é o esforço geral para camuflar a ideologia genocida que está embutida na própria lógica da teoria da evolução”.
Mas ele também investe contra o heliocentrismo e a ciência pós-aristotélica:
“O dogma da sua própria honestidade intelectual intrínseca parece impedir os físicos de perguntar se não há algo de errado no que estão fazendo. Mas um fundo de charlatanismo parece ter sido introduzido na física por Galileu. (...) Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo melhor de provar que ela tinha razão. (...) Foi este episódio que inaugurou a mania dos cientistas modernos de tomarem simples mudanças de métodos como se fossem ‘provas’ de uma nova constituição da realidade”.
Em lugar do método científico, da observação empírica, do teste rigoroso das hipóteses e da autonomia da pesquisa, Olavo de Carvalho nos oferece o obscurantismo perenialista

“(...) as duas censuras básicas e dificilmente respondíveis que o maior crítico da modernidade, René Guénon, fez à ciência pós-renascentista: a confusão entre infinito e indefinido, cujas consequências letais se propagam até hoje, e a perda do sentido fluido e ambíguo da manifestação cósmica”.
Segundo Olavo, todas as vertentes filosóficas, políticas e culturais da modernidade podem ser agrupadas no binômio: revolução americana — burguesa — ou revolução russa — proletária. Do racionalismo de Descartes e Espinoza até a nova era, passando por Hobbes, Locke, Hume, Kant, o iluminismo, o utilitarismo, o positivismo e o pragmatismo americano, tudo que não é propriamente socialista entra no escaninho “maçônico” das revoluções burguesas.
Por sua vez, tudo que cheira vagamente a socialismo entra na gaveta do “marxismo cultural”, seja isso originário do pensamento de Marx e Engels, da interpretação leninista, da revisão gramsciana, da Escola de Frankfurt, do existencialismo, do estruturalismo, do desconstrutivismo, do pós-modernismo, do feminismo ou de qualquer outra proposta de ativismo político-social.
Alguns intelectuais (Hegel, Nietzsche, Freud, Bertrand Russell) e causas políticas (defesa da ecologia, promoção dos direitos humanos) podem ser classificados ora em um grupo, ora em outro, dependendo dos humores de Olavo de Carvalho. Quando ele está enfezado, vira tudo uma coisa só: “marxismo cultural”. E o pai disso tudo é Gramsci, não o Antonio Gramsci verdadeiro, mas um Gramsci com esteroides, vitaminado, dono de uma inteligência diabólica, capaz de alterar os rumos da história

“Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de ‘marxismo’, são imbecilmente aceitos como valores culturais supraideológicos pelas classes empresariais e eclesiásticas (...). Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a virulência do seu conteúdo calunioso e perverso”.
Em O imbecil coletivo, a preocupação de Olavo em denunciar a intelligentsia de esquerda, os “intelocratas” da indústria cultural, os militantes progressistas e toda a agenda de transformação social desabrochou em um conjunto eclético de artigos, em que o gosto pela polêmica se fez como eixo central:
“O imbecil coletivo não é, de fato, a mera soma de certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras. (...) É claro que estabeleço uma distinção entre os homens letrados em geral e, como foi dito acima, a intelligentsia em especial, atribuindo exclusivamente a esta última a jurisdição do imbecil coletivo”.

Nessa denúncia, Olavo foi especialmente crítico do que ocorria no Brasil:
“Basta uma geração de ‘intelectuais coletivos’ dominar o mundo para que se perca a individualização da consciência, prêmio de um esforço evolutivo milenar. (...) O Brasil é a terra prometida do ‘intelectual coletivo’”.
Apresentando-se ao país como um conservador ilustrado — na linha de José Guilherme Merquior, Paulo Francis e Roberto Campos —, Olavo de Carvalho enganou a muitos. Ao leitor atento, contudo, seus textos sempre evocaram o pensamento vivo de Carlos Imperial:
“Identifique logo a minoria discriminada a que pertence — pois todo mundo pertence a alguma — e exiba-a como um cartão de ingresso: ela dá direito a ser bem recebido nesses círculos (das pessoas maravilhosas). Não venha com essa de que não tem nenhuma. Se você não é preto, nem gay, nem judeu, nem baixinho, nem gordo, nem índio, deve pelo menos ter o peru pequeno”.
Embora teime em fantasiar-se de defensor da alta cultura, Olavo de Carvalho pouco entende do assunto. Vejamos sua opinião sobre o artigo 216 da Constituição Federal, que versa sobre a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro:
“Os constituintes, tendo incorporado em sessão de macumba o espírito de Margaret Mead, deram vitória aos grafiteiros, atentando que o Brasil não quer educar-se, nem elevar-se moral e espiritualmente, nem mesmo refinar-se esteticamente: quer apenas documentar-se, mostrar-se tal como está e, mandando às favas todo ideal superior, bater no peito como Popeye, num paroxismo de autossatisfação com seu estado presente: I am what I am what I am what I am. Ou, traduzindo em baianês, Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: Gabriééla!”.E

Olavo parece desconhecer por completo a diferença entre produção cultural efetiva e preservação do patrimônio histórico e artístico, seja ele material ou imaterial. Há que imaginar o desalento, lá no Céu, dos três idealizadores da salvaguarda do patrimônio brasileiro: Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Nosso país já produziu gênios desse quilate. Hoje vive à sombra dos carvalhos de Olavo — um intelectual versado na gnose perenialista, mas pouco afeito à salutar interação entre a cultura erudita e a cultura popular:
“Na vertical, porém, Guimarães (Rosa) alcança altitudes e profundidades que estão fora do mundo de (Dorival) Caymmi, e se torna, por isso, universal; qualquer homem, de qualquer nacionalidade, pode ler Guimarães para conhecer-se a si mesmo e não só para conhecer o Brasil; ao passo que em Caymmi a referência local é também o extremo limite de sua significação intelectual”.
Olavo não entende que é tolice separar as duas coisas. Guimarães Rosa nunca teria existido sem o linguajar criativo de Manuelão e a vastíssima cultura do sertão. Do mesmo modo, não teríamos um Villa-Lobos sem o choro carioca ou as modinhas caipiras. Ambos foram universais por saber mergulhar no que havia de melhor na cultura nacional. O que emprestaram de complexidade ao substrato popular merece ser visto como a justa contrapartida pelo que dele receberam em força telúrica. Diz Riobaldo:

“Sou só um sertanejo, nessas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração”.
Olavo também não entende que, em sua disciplina artística, Caymmi chegou ao mais alto nível que se possa imaginar. Foi um gênio da canção popular, como poucas vezes se viu neste planeta Terra. Quanto a sua significação para o mundo, o legado do autor de “O que é que a baiana tem”, “É doce morrer no mar”, “Só louco”, “Saudades de Itapoã”, “Doralice” e “Modinha para Gabriela” nada fica a dever ao de Guimarães Rosa. A obra do mestre baiano é puro espírito e voo existencial. Se Olavo prestasse mais atenção a Caymmi, talvez pudesse reconhecer-se a si mesmo:
“O samba da minha terra deixa a gente mole/Quando se canta, todo mundo bole/Quando se canta, todo mundo bole/Quem não gosta de samba bom sujeito não é/É ruim da cabeça ou é doente do pé”.

Multidão em Wall Street, em Nova York. Assim como o socialismo, o liberalismo capitalista ameaça a civilização ocidental ao promover uma cultura individualista e decadente, na opinião do guru de Richmond. Foto: Bettmann Archive / GettyImages
Multidão em Wall Street, em Nova York. Assim como o socialismo, o liberalismo capitalista ameaça a civilização ocidental ao promover uma cultura individualista e decadente, na opinião do guru de Richmond. Foto: Bettmann Archive / GettyImages

Ruim da cabeça ou doente do pé. Assim estava Olavo de Carvalho ao escrever O jardim das aflições . Trata-se de sua “obra-prima”: seu livro de maior fôlego e aquele que melhor sintetiza seu pensamento. Mas é também um volume malsão, uma obra ao negro, de pura alquimia perenialista. Fingindo-se de cristão conservador, Olavo vende ao leitor uma reflexão esotérica sobre a modernidade, com elevado teor de obscurantismo.



“Há uma grande diferença entre o doutrinador que mete simplesmente na cabeça das pessoas uma ideia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas inteligências para que nunca mais atinem com a ideia certa.”
A obra começa com um ataque ao filósofo José Américo Motta Pessanha, de virulência jamais vista na história da inteligência brasileira. O pecado de Pessanha era ter feito uma palestra sobre o filósofo grego Epicuro, no ciclo de conferências que a Secretaria Municipal de Cultura, então chefiada por Marilena Chauí, promovera no Museu de Arte de São Paulo, em 1990:
“As frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da plateia, envenenava os cérebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um público de quinhentas pessoas submetera-se à intoxicação com sonsa alegria, numa deliquescência mórbida, como crianças a seguirem um novo flautista de Hamelin”.
Nada do que Olavo diz sobre Pessanha retrata com fidelidade as propostas do filósofo carioca, principal responsável pela série Os pensadores , um marco na história cultural do país. E nada do que diz sobre Epicuro traduz, com precisão, o pensamento deste defensor da vida pacata, na companhia dos amigos e longe dos tumultos do mundo. A filosofia epicurista inspirou o poeta romano Lucrécio, autor do clássico De rerum natura. Vinte séculos mais tarde, deu-nos a canção “Casa no campo”, de Zé Rodrix e Tavito, uma das maiores joias da MPB

“Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa compor muitos rocks rurais/E tenha somente a certeza/Dos amigos do peito e nada mais/Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa ficar do tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos limites do corpo e nada mais”.
É uma proposta materialista, sem dúvida. Ela nos oferece a busca imediata da felicidade terrena. No entanto, esse pacato escapismo, centrado na amizade (philia) e no desapego às glórias do mundo, pode ser também visto como um primeiro passo rumo à proposta cristã de uma vida mais profunda, centrada na caridade (ágape). Acontece que Olavo não busca o diálogo com os epicuristas, e sim um confronto de vida ou morte com seus supostos descendentes: o positivismo cientificista, a esquerda marxista e o relativismo pós-moderno. Ele nunca faz justiça ao que o outro pensa. Seu mais comum estratagema é distorcer as ideias alheias, para depois derrotar o espantalho:
“As ideias, para certas pessoas, não são imagens da realidade: são poções mágicas, de que se servem para enfeitiçar o público e colocá-lo a serviço de fins com que, lúcido e informado, ele não se prestaria a colaborar de maneira alguma. E um feitiço não se discute no plano teórico: um feitiço desfaz-se, mediante a exibição dos chumaços de cabelos e dos retalhos de roupas da vítima, que o feiticeiro, em furtiva incursão, escondeu entre restos de cadáveres”.

Esse é o vodu de Olavo de Carvalho contra seus adversários. Um estratagema especialmente infesto, tendo em vista que Pessanha falecera dois anos antes de O jardim das aflições ser publicado. Olavo tem especial predileção pelo jogo sujo. Acusa os epicuristas de haverem, com seus ataques, forçado Aristóteles a buscar o exílio, sendo que Epicuro era um rapaz de 19 anos quando o Estagirita foi expulso de Atenas, em 323 a.C. Afirma também que Pessanha “já vinha, como editor da série Os pensadores, preparando o terreno para a transformação da filosofia em arma política a serviço de determinados fins”. O disparate é complementado por informações errôneas sobre os 52 volumes da coleção original. Mas nada supera, em vocação para o absurdo, o comentário a seguir:
“A coleção incluía obras que só exerceram influência em círculos bem delimitados, como por exemplo as de (Ludwig) Wittgenstein e Adorno, e omitia outras que produziram verdadeiras revoluções, como as de (Carl Gustav) Jung e René Guénon, que arrombaram as portas do Ocidente para a invasão das ideias orientais. (...) Sem falar, é claro, de Lênin ou (George) Gurdjieff”.
Olavo deve ter confundido a coleção Os pensadores com sua contemporânea, a Biblioteca planeta . Acontece que René Guénon e Gurdjieff nem nos 20 volumes dos clássicos do esoterismo conseguiram entrada: foram considerados bruxos de segunda classe. Desconsolado, o autor de O jardim das aflições coloca toda a culpa no esquerdista falecido:



“José Américo Motta Pessanha mergulhou até o fundo do erro, bebeu até o fim a taça da falsidade universal, com uma espécie de heroísmo do autoengano. Isto fez dele o emblema das dores e da insânia de uma época”.
Finda a diatribe contra os arautos do materialismo epicurista, Olavo dedica-se a vender seu peixe: a gnose perenialista. Seguem-se 90 páginas de uma mistura enjoativa de hermetismo, I Ching, cabala e sufismo, fazendo-se passar por autêntica mística cristã. Tudo isso embalado por um pastiche de história da Igreja Católica, repleto de equívocos, e uma releitura irracionalista da filosofia moderna. Nesse exercício, Olavo apresenta uma distinção enganosa entre gnose (saber esotérico genuíno) e gnosticismo (suposta nostalgia anticristã da religião cósmica), que apenas repete o estratagema de Guénon em O teosofismo: história de uma pseudo-religião (1921), ao propor uma diferenciação artificial entre o esoterismo correto (teosofia) e o esoterismo corrompido pelo evolucionismo (teosofismo).
Uma das marcas de O jardim das aflições está nas paráfrases de textos clássicos do perenialismo. Em especial, Olavo retira seus argumentos de dois livros de René Guénon: O simbolismo da cruz (1931) e A grande tríade (1946). No primeiro, Guénon investe contra o mistério da Encarnação; no segundo, contra o dogma da Trindade. São os dois passos indispensáveis a sua opção pelo esoterismo islâmico. Vejamos este trecho da “obra-prima” de Olavo de Carvalho:

“Para me fazer entender, devo recorrer a um diagrama, onde a vertical simboliza a eternidade e a horizontal a temporalidade, como aliás todo o simbolismo universal da cruz. Na simbologia chinesa, a vertical corresponde a khouen, a ‘perfeição ativa’, ou o princípio metafísico do qual tudo se origina; e o horizontal a khien, a ‘perfeição passiva’ ou manifestação cósmica desse princípio. Note-se que o homem aqui designado é o Homem Universal, molde do cosmos — transcendente ao cosmos, portanto — e não a individualidade empírica. De outro lado, porém, o Homem Universal é a essência mesma da individualidade concreta, da singularidade humana”.
E comparemos com o que Guénon diz em seu libelo anticristão, O simbolismo da cruz. Primeiramente, em respeito aos conceitos de khien (ou Ch’ien) e khouen (ou Ch’uan):
“A concepção inteligível é ‘perfeição ativa’ (Ch’ien), a possibilidade da vontade na Perfeição, e naturalmente da onipotência, que é idêntica ao que se denomina ‘Atividade Celeste”. Mas, de modo a podermos falar sobre ela, a concepção inteligível precisa tornar-se sensível (porque a linguagem, como toda outra expressão externa, pertence necessariamente à ordem sensível); e ela é então ‘perfeição passiva’ (Ch’uan)”.
Em seguida, vejamos o que René Guénon nos diz sobre o conceito de “Homem Universal”:
“A efetiva realização dos múltiplos estados do ser está relacionada à concepção que várias doutrinas tradicionais, incluindo o esoterismo muçulmano, denotam pelo termo ‘Homem Universal’, uma concepção que estabelece uma analogia constitutiva entre a manifestação universal e a modalidade humana individual ou, para usar a linguagem do Hermetismo ocidental, entre o ‘macrocosmo’ e o ‘microcosmo’”.



Em suma: Olavo copiou. Copiou e não citou. Parece também haver trocado as bolas com respeito ao binômio ativo-passivo. Para Olavo, khien é “perfeição passiva”, mas Guénon nos diz que Ch’ien é “perfeição ativa”. Do mesmo modo, para Olavo, khouen é perfeição ativa, porém seu mestre, de quem copiou esses conceitos, assegura que Ch’uan é perfeição passiva.
O constrangimento é ainda maior com respeito ao termo Homem Universal. Como o texto de Guénon deixa claro, estamos diante de um conceito do esoterismo islâmico, que vem diretamente do hermetismo. Algo que nos remete ao homem de Vitrúvio, retratado por Leonardo da Vinci, ou ainda ao arcano do Mago no tarô de Waite-Smith. É o homem divinizado, que reúne em si o macrocosmo e o microcosmo, o transcendente e o imanente. Prossegue Guénon:
“A maioria das doutrinas tradicionais simboliza a realização do ‘Homem Universal’ por um signo que é em toda parte o mesmo, porque (...) está ligado diretamente à Tradição Primordial. Esse signo é o sinal da cruz, que muito claramente representa a maneira de chegar a essa realização por meio de uma perfeita comunhão de todos os estados do ser, dispostos de modo harmonioso e conforme, em expansão integral, no duplo sentido de ‘amplitude’ e de ‘exaltação’”.



No entanto, o próprio Guénon nos explica que nada disso é cristão:
“De acordo com a forma tradicional tardia, ‘Homem Universal’, enquanto representado pelo casal “Adão-Eva’, tem o mesmo número que Allâh, o que pode ser tomado como um meio de expressar a ‘Suprema Identidade’”.
Olavo Mohammed Trismegistus reproduz o resultado dessa mistificação hermético-islâmica, proposta por René Guénon, em três livros: A Nova Era e a revolução cultural (pág. 13), O imbecil coletivo (pág. 30) e O jardim das afliçõe s (pág. 251). É um diagrama em cruz, que sintetiza para o leitor a interpenetração entre a vida espiritual e a vida política.
Obviamente, o bruxo de Richmond nos oferece uma cruz sem Cristo. Uma cruz que ignora os temas do sacrifício e da redenção. Uma cruz que não nos livra de nossas culpas nem nos abre para o amor-caridade. Pelo contrário, Olavo nos oferta uma cruz gnóstica, que nos lança nas trevas do orgulho, da alta magia e da pura vontade de poder. Olavo de Carvalho não é apenas um falso cristão. É uma pedra de tropeço para os leitores que buscam a verdadeira espiritualidade.
A epopeia perenialista de O jardim das aflições prossegue com um percorrido histórico, filosófico e político, em que Olavo de Carvalho denuncia o projeto materialista da modernidade e seu culto ao progresso. Por trás disso, estariam algumas poderosas vertentes espirituaisE

“A ideologia progressista muito deve ao ocultismo, à teosofia e ao espiritismo no que tange à aceitação mundial do evolucionismo, já não como simples teoria biológica, mas como explicação geral do cosmos”.
A denúncia aponta, igualmente, para o ressurgimento do Império Romano, como força opressora paganizada, na figura do Império Americano:
“A história do ocidente é marcada pelas sucessivas reencarnações da ideia de Império Romano, culminando no Império Americano (...) um Império que fora criado sob inspiração maçônica, com a ideia de neutralizar as diferenças entre as religiões mediante o recurso do Estado laico”.
Esse novo império tenderia a tornar-se um império mundial, a partir da expansão do poderio americano e da universalização dos valores da revolução americana, a “revolução maçônica”:
“O único lugar do mundo onde os ideais iluministas foram realizados na máxima extensão possível das faculdades humanas foram os Estados Unidos. (...) O nazifascismo e a URSS não foram, dentro do curso maior da História, senão momentos dialeticamente absorvidos na linha perfeitamente nítida de desenvolvimento que leva da Revolução maçônica à mundialização do Estado leigo e à americanização do mundo”.
Junto ao ressurgimento do império, emergiria um novo culto ao imperador, na forma do crescente agigantamento do Estado. Isso adviria da própria dinâmica interna do ideário progressistaE

“A dialética do poder do Estado moderno é diabolicamente simples: incentivados a fazer uso de seus direitos, os cidadãos reivindicam mais e mais direitos; os novos direitos, ao serem reconhecidos, transformam-se em leis; as novas leis, para poderem ser aplicadas, requerem a expansão da burocracia fiscal, policial e judiciária; e assim o Estado se torna mais poderoso e opressivo quanto mais se multiplicam as liberdades e direitos humanos”.
Esse projeto de criação de um Estado todo-poderoso, quase divinizado, seria favorecido tanto pela linhagem capitalista-maçônica do culto ao progresso quanto pela falange socialista-revolucionária do “marxismo cultural”. Em ambos os casos, as estruturas tradicionais da sociedade estariam sendo dissolvidas, dando lugar a uma multidão amorfa de indivíduos impotentes:
“A sociedade moderna caminha decisivamente para a destruição desses poderes intermediários e das associações humanas que os sustentam, de modo que o indivíduo fique sem conexões orgânicas em torno, impotente e solitário no oceano do mercado livre, e ligado diretamente ao Estado”.
No entender de Olavo, tudo estaria conspirando no sentido da expansão inexorável do poder do Império Americano, cujas características primordiais seriam o Estado laico e a ideologia maçônica:
“O Estado leigo tem religião, sim. (...) invisível e onipotente, a Religião do Império, perpetuada no culto discreto oficiado por uma nova casta sacerdotal colhida nos escalões superiores da aristocracia maçônica”.E

Tudo isso é feito com marcada violência aos fatos históricos e à evolução do pensamento ocidental. Em Olavo de Carvalho, os dados da realidade são revistos e adaptados livremente, para poderem ajustar-se às propostas perenialistas. Também não faltam teorias conspiratórias:
“Como dizia Guénon, o poder é secreto por natureza. (...) Se o leitor acompanhou minha argumentação até aqui, há de ter certamente compreendido o peso imenso que terá, na decisão do destino do mundo, a disputa entre os homens de religião e os homens de governo. Ironicamente, a opinião pública, inclusive letrada, não tem a menor ideia de que se trata do velho conflito de castas”.
Em linha com o esoterismo de René Guénon e Julius Evola, Olavo sustenta que a crise da civilização ocidental deriva da “ruptura entre os Pequenos e os Grandes Mistérios”. Partindo de análise da simbologia maçônica no romance Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , do poeta alemão Goethe, ele comenta as consequências do progressivo afastamento entre a visão histórico-cósmica (típica da ideologia progressista) e a tradicional busca pela transcendência:
“A extraordinária beleza desta imagem (que Goethe nos oferece) da ordem universal não deve porém fazer-nos esquecer que nela se trata apenas daquilo que se chama de uma iniciação de ‘Pequenos Mistérios’, isto é, a revelação da ordem histórico-cósmica; e que tão logo os Pequenos Mistérios se fazem passar por uma finalidade em si mesmos, se tornam um entrave ao desenvolvimento espiritual do homem, barrando-lhe o acesso aos ‘Grandes Mistérios’ onde a ordem cósmica é transcendida pelo conhecimento do infinito e do divino”.

Olavo então conclui, com um alerta dramático:
“A ruptura entre os Pequenos e os Grandes Mistérios, ocasionando o predomínio unilateral da ideologia prometeica desvinculada de todo contato com o Espírito, representa um corte ao meio do corpo do Homem Universal, a mais dolorosa e trágica experiência espiritual já vivida pelo homem sobre a Terra”.
A completa secularização da vida social e o fortalecimento desmedido do Estado nos levariam, segundo Olavo, a um mergulho na tirania e ao colapso da civilização ocidental:
“A vitória da elite maçônica traz em si os germes de sua própria destruição, na medida em que, quanto mais se laiciza a sociedade, menos coerência, menos credibilidade e menos funcionalidade têm os valores democráticos em nome dos quais essa elite chegou ao poder e governa. O menos inviável dos regimes terminará por inviabilizar-se quando terminar de corroer, em nome da democracia, os princípios religiosos a que a ideia democrática deve toda a sua subsistência”.
Desses perigos, somente os “homens espirituais” poderiam nos salvar, assegura-nos o mago de Richmond. Eles não se confundiriam com a hierarquia de nenhuma igreja, obviamente, pois seriam “filósofos”, de linhagem perenialista:
“O indivíduo que chega à verdade tem, ao proclamá-la, uma autoridade superior à da sociedade, pois fala em nome do universal, absoluto e supraquantitativo, ao passo que a sociedade fala apenas em nome do geral, forma quantitativa e meramente simbólica do universal. (...) O portador da verdade esotérica (...) é o porta-voz de um Deus verdadeiro, do qual aqueles deuses que aparecem no culto público não são senão ecos e imagens distantes”.E
Com sua mensagem de fé, esperança e caridade, o Concílio Vaticano II se opõe ao pensamento mórbido, doentio e fatalista da escola perenialista, defendida por Olavo de Carvalho. Foto: Berhnard Moosbrugger / Gamma-Rapho / Getty Images
Com sua mensagem de fé, esperança e caridade, o Concílio Vaticano II se opõe ao pensamento mórbido, doentio e fatalista da escola perenialista, defendida por Olavo de Carvalho. Foto: Berhnard Moosbrugger / Gamma-Rapho / Getty Images

Aí está uma perfeita definição de como pensa um gnóstico. Ele acredita que chegou a uma verdade superior e que paira acima da sociedade, à qual deve uma lealdade apenas formal, epidérmica. Olavo esclarece como os homens espirituais poderão nos resgatar da crise da modernidade:
“De acordo com Guénon, a civilização do Ocidente, se não conseguisse reunificar Maçonaria e Cristianismo — Pequenos e Grandes Mistérios —, restaurando o corpo cindido da espiritualidade tradicional, não teria alternativa senão cair na barbárie ou islamizar-se”.
Ele também nos diz onde podemos encontrar esses fabulosos homens espirituais:
“É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de resistência ao avanço do ateísmo oficial (...) a elite espiritual, concentrada em torno de figuras como Seyyed Hossein Nasr — exilado iraniano — Huston Smith, Victor Danner e outros, profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof Schuon, homem espiritual de primeiro plano e inventor do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões”.
Bingo. Olavo de Carvalho conclui sua “obra-prima” colocando as esperanças de salvação do decadente mundo ocidental nas mãos da “elite espiritual” perenialista, sob o comando do principal discípulo de René Guénon, Frithjof Schuon (1907-1998), que ainda estava vivo quando O jardim das aflições foi publicado. Sim, o libidinoso Schuon, aquele que confundia as visitas de um súcubo com supostas aparições da Virgem Maria. Homem espiritual de primeiro plano! Sobre intelectuais dessa natureza, alertou-nos Tomás de Kempis, na obra Imitação de Cristo :

“Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo”.
O pensamento de Olavo de Carvalho é um beco sem saída. Mesmo quando aponta problemas reais na agenda liberal-progressista — a questão do aborto, a tirania do politicamente correto — ou no projeto de poder das esquerdas — o viés antidemocrático, o mergulho na corrupção —, ele o faz motivado por ideias que não representam uma alternativa, mas um retrocesso, uma perigosa ameaça às conquistas da sociedade democrática. O autor de O jardim das aflições é incapaz de dialogar com a modernidade. Tudo cai por terra diante da fúria de Olavo, o demolidor.
Essa sanha destrutiva advém de seus mestres perenialistas. Segundo René Guénon, será preciso implodir o mundo moderno, de modo a encerrar o Kali-Yuga e inaugurar um novo tempo. Eis o que afirma, na conclusão de O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), sua “obra-prima”:
“Por um lado, se essa manifestação (do fim dos tempos) for tomada simplesmente em si mesma, sem estar relacionada a um todo muito maior, o inteiro processo, do começo ao fim, é claramente uma ‘descida’ progressiva ou ‘degradação’, e isso pode ser chamado de seu aspecto ‘maléfico’. Mas, por outro lado, essa mesma manifestação, quando colocada de volta no todo ao qual pertence, produz resultados que têm um efeito verdadeiramente ‘positivo’ na existência universal. Seu desenvolvimento deve ser levado até o fim, para que inclua o desenrolar das possibilidades inferiores da ‘idade das trevas’, de modo que a ‘integração’ desses resultados seja possível e possa tornar-se o princípio imediato de outro ciclo de manifestação; e isso é o que constitui o seu aspecto propriamente ‘benéfico’”.

É um pensamento mórbido, doentio e fatalista, baseado em visão cíclica da história. Nada disso diz respeito ao cristianismo. O fantasma que informa a gnose perenialista não guarda a menor semelhança com o Espírito que guiou a Constituição pastoral Gaudium et spes. Nesse documento, o Concílio Vaticano II indica como a Igreja deve situar-se diante dos problemas da modernidade:
“O Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus congregado por Cristo, não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do gênero humano as energias salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem será o fulcro de toda a nossa exposição — o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”.
Assim pensam e agem os verdadeiros homens espirituais. Com humildade e amor ao próximo. Com respeito ao gênero humano e abertura ao diálogo. Sem ilusões quanto ao mundo da política ou às promessas da modernidade, mas cientes de que Cristo nos chama para ajudarmos a “salvar a pessoa do homem” e “restaurar a sociedade humana”. São mensagens de fé, esperança e caridade — que o leitor jamais encontrará na obra de Olavo de CarvalhoE





1 comment:

Pedro p. said...

essa texto é extremamente bem escrito. Impressionante. Muito além de apenas dissecar o Olavo ainda tem informações excelentes para estender o conteúdo que foi exposto.