Juiana Dal Piva e Guilherme Evelin
Dois casamentos ajudaram a pavimentar o caminho do diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo, de 51 anos, ao posto de chanceler do governo Jair Bolsonaro. O primeiro foi a união estável com a colega Maria Eduarda de Seixas Corrêa, na época em que serviu, durante os anos de 1999 a 2002, na embaixada do Brasil na Alemanha. O casamento com a filha mais velha do prestigiado embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, duas vezes secretário-geral do Itamaraty (1992 e 1999-2001) e bisneto de Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês de Paraná, importante político e diplomata do Império, rendeu a Araújo o ingresso no patriciado da carreira diplomática. As novas conexões familiares valeram ascensão rápida na carreira e boas colocações, sempre em postos no circuito Elizabeth Arden, como os diplomatas se referem às embaixadas nas capitais dos países mais desenvolvidos. Como fazia sempre referências públicas ao parentesco com Seixas Corrêa, Araújo foi logo apelidado como o “genro do sogro” pelas línguas venenosas que proliferam no serpentário do Itamaraty.
Como prova de um bom faro para o poder, atributo necessário numa carreira onde a bajulação costuma ajudar a subir os degraus da hierarquia, Araújo, de volta ao Brasil, passou a cultivar relações com os bolsonaristas, enquanto Bolsonaro despontava como candidato à Presidência da República em meio à derrocada do governo Dilma Rousseff. Araújo descobriu os artigos publicados, a partir de 2016, no site Senso Incomum por Filipe Martins, em que o discípulo de cursos “on-line” de Olavo de Carvalho e aluno de relações internacionais na Universidade de Brasília (UnB) difundia as críticas olavistas ao “marxismo cultural” e ao “globalismo”. Os dois passaram a se corresponder. Pessoas próximas a Araújo e Martins, que tem 31 anos e não possui carreira diplomática, dizem que os dois começaram a trocar textos, além de discutir desde mitologia grega até a “Iniciativa do Cinturão e Rota”, estratégia de investimentos em infraestrutura em países da Europa, Ásia e África adotada pela China para aumentar a sua influência global. Martins passou a elogiar Araújo para o “mestre” Olavo de Carvalho.
Depois da vitória eleitoral de Bolsonaro, Martins foi escolhido para ser o assessor internacional do presidente. Durante o período de transição de governo, enquanto o grupo de generais próximos a Bolsonaro defendia uma política externa mais ou menos nas linhas tradicionais seguidas pelo Itamaraty nas últimas décadas, Martins, Olavo de Carvalho e Eduardo e Carlos Bolsonaro tinham outros planos para o Ministério das Relações Exteriores: queriam alguém para tocar a agenda “antiglobalista” defendida por eles. Na semana posterior à vitória nas urnas, Martins levou Araújo, discretamente, à casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os dois se conheceram. Mesmo diante de indicações, pelos generais, de diplomatas mais experientes, o nome de Araújo, um embaixador júnior, recém-promovido ao posto mais alto da hierarquia do Itamaraty e sem passagens por comando de embaixadas no exterior, prevaleceu.
Nesse texto, Araújo defende a tese de que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação americana”. No final, ao relacioná-lo a Trump, disse que só o presidente dos EUA “pode salvar o Ocidente”. Ali, o chanceler se vale da visão histórica do alemão Oswald Spengler, autor de A decadência do Ocidente . A obra, que serviu de inspiração aos regimes autoritários europeus no período do entreguerras, propõe como solução para injetar vitalidade na combalida cultura ocidental a rejeição da democracia liberal e o advento de governos autoritários, liderados por figuras carismáticas. No debate no IPRI, os argumentos de Araújo foram considerados “muito primários” por intelectuais presentes, mas o texto “Trump e o Ocidente” foi amplamente compartilhado entre os grupos próximos a Bolsonaro e elogiado por Olavo de Carvalho.
A virada olavista de Araújo surpreendeu muita gente que o conheceu anteriormente. Apesar das citações recorrentes a Deus, ele não é do tipo que vai à missa. Não chega a ter sequer uma religião. Um amigo do chanceler, que não quis se identificar, o definiu como um “religioso cultural”, para quem a ideia de Deus está constantemente na cabeça. Até a publicação do texto “Trump e o Ocidente”, Araújo era conhecido pelos colegas como um diplomata discreto, cordato, competente e de temperamento introvertido. O embaixador aposentado Roberto Abdenur, que o chefiou na embaixada na Alemanha, lembra de Araújo como um diplomata de comportamento bastante reservado e “extremamente ágil com telegramas e relatórios”.
Florêncio recordou que ele ficou encarregado do trabalho em torno da tarifa externa comum (TEC) do Mercosul, tema bastante complexo, pois envolvia o comércio de quatro países com necessidades e negócios completamente distintos. Como era bacharel em línguas neolatinas e francês pela UnB, ninguém esperava que Araújo dominasse temas econômicos de modo tão pronto. Ele, porém, se tornou um profundo conhecedor do assunto e em determinado momento se tornou a pessoa que mais sabia de TEC. Segundo Florêncio, tudo ocorreu em menos de um ano. “Talvez isso tenha a ver com a introspecção”, disse o embaixador. Mais tarde, os dois trabalharam juntos na divisão de Mercosul e fizeram muitas viagens juntos para Montevidéu, capital do Uruguai e sede administrativa da entidade. O entusiasmo pelo trabalho rendeu o livro Mercosul hoje, escrito por Florêncio e Araújo entre 1995 e 1998 e bastante elogiado pelos demais “itamaratecas” — termo popular usado para se referir aos diplomatas e odiado por eles.
A paixão pelo Internacional é dividida com o novo secretário-geral do Itamaraty, o embaixador Otávio Brandelli, também gaúcho. Quando deu posse a Brandelli, Araújo fez um trocadilho. “A nossa bandeira jamais será vermelha, exceto se for a do Internacional”, brincou. Brandelli, que muitos no Itamaraty creem que poderá agir como um elemento moderador de Araújo, era ligado aos petistas Tarso Genro e Aloizio Mercadante, assim como muitos dos diplomatas que ascenderam a postos de chefia no Itamaraty com o novo chanceler.
Ao defender, em 2008, sua tese Mercosul — Negociações Extrarregionais no Centro de Altos Estudos do Itamaraty, uma etapa necessária para os diplomatas que pretendem ser promovidos a embaixador, Araújo mostrou-se claramente alinhado à política externa do governo do ex-presidente Lula. Refutou, inclusive, que a preferência por relações Sul-Sul, com os países mais pobres, tivesse fundamento ideológico, uma crítica recorrente dos opositores ao PT. “A visão segundo a qual o Brasil é ideológico nas negociações extrarregionais do Mercosul é ela mesma ideológica, pois fundamenta-se na concepção de que ampliar os laços com países ricos nos fará também ricos, graças a uma espécie de contato mágico”, escreveu.
“Especialmente entre os jovens não havia esperança de ver a democracia restabelecida por meios pacíficos. A impressão era que o governo militar ia ficar para sempre. Então muitas pessoas, a despeito das instituições, decidiram pegar em armas. Ela ( Dilma ) foi parte disso”, contou Araújo, em inglês. Depois disse que não foi a guerrilha que deu fim à ditadura e que os militares saíram do poder por suas próprias contradições. “Então não foi a luta direta com armas que derrubou os militares. Mas é claro que essa luta ( guerrilha ) foi importante como parte de um movimento geral em direção a mais democracia, que era basicamente um movimento pacífico”, afirmou. Em seguida, Araújo completou que “todos que lutavam em paz ou não tão em paz se sentem parte desse processo de redemocratização” do Brasil.
Não é apenas por causa dessas reviravoltas que a breve gestão do chanceler Ernesto Araújo está causando estupor entre os “itamaratecas”, de A a Z, numa união poucas vezes vista na casa do barão de Rio Branco. Em seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro, o ministro voltou a repisar, com fervor de cruzado, as ideias olavistas contra o “globalismo” — embaladas por uma retórica empolada em que misturou citações em grego, tupi, latim e português, com alusões ao mesmo tempo a Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Renato Russo e Raul Seixas.
A frustração dos diplomatas pode ser sentida pela ovação ao ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que se despedia do cargo, e pelos tépidos aplausos ao novo chefe. “Revelação e epifania, como parece ser o caso do Ernesto, não comporta críticas ou racionalidade”, disse um graduado embaixador do alto de seus 80 anos ao resumir a reação dos diplomatas às mudanças anunciadas pelo novo chanceler que rompem com algumas tradições, quase centenárias, da política externa brasileira (leia mais no editorial na página 4). O ânimo estupefaciente parece ser compartilhado também pelo sogro Seixas Corrêa, um homem cordato, leve, intelectualizado e muito discreto.
O sogro de Araújo, Seixas Corrêa, que foi embaixador de destaque Foto: ANA DE OLIVEIRA, AIG / MRE
A reação a Araújo está ligada também ao sentimento entre muitos diplomatas de que o ministro está promovendo uma caça às bruxas — que, no caso, seria todo mundo que pensa diferente dele ou quem, mesmo reservadamente, emitiu alguma opinião contrária ou crítica a suas ideias. Foi o caso do embaixador Julio Bitelli, que estava em Bogotá, a quem foram oferecidas duas posições: ou no Congo ou na Mauritânia — lugares considerados péssimos pelos diplomatas, por serem postos menos prestigiados na carreira. Outro caso: o embaixador Achiles Zaluar, um dos mais entendidos em Oriente Médio, teve uma conversa com Ernesto Araújo, na qual fez observações críticas sobre a política para a região e a transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Ele foi relegado ao chamado DEC — o departamento de escadas e corredores, como é apelidado sarcasticamente quem fica sem posto no Itamaraty.
O caso que envolveu a embaixadora Gisela Padovan, ex-diretora do Rio Branco, se tornou também emblemático. Ela organizou uma palestra do ex-presidente Fernando Collor, que comanda a Comissão de Relações Exteriores do Senado, para os alunos do Rio Branco. Em sua fala, no dia 13 de dezembro, Collor fez algumas críticas às ideias de Araújo. O chanceler pôs a culpa na embaixadora, que foi afastada do cargo. “É muito violento o constrangimento que o Ernesto está fazendo os diplomatas passar”, disse um diplomata em ascensão. “O discurso dele não é de chanceler, é de um líder messiânico, espiritual.” No total, atualmente estão na geladeira do DEC mais de 20 embaixadores que voltaram recentemente ao país depois de dez anos em missão no exterior.
Para Abdenur, a recusa do Brasil em sediar a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 25, e a retirada do país do Pacto Global para Migração, cuja adesão foi negociada pelo governo Temer, “representam um sério golpe na credibilidade do Brasil”. “Política externa deve ser feita com coerência, continuidade e credibilidade”, disse Abdenur. Na visão dele, o país vai passar por muitas situações vexatórias se as medidas anunciadas desde o fim do ano passado saírem do papel. “Se a esses dois gestos vier a se somar a transferência da embaixada em Israel, vai ser outro golpe. Vai ser o rompimento de 70 anos de uma posição objetiva, imparcial, de equilíbrio entre Israel e os árabes”, criticou.
Mourão estava sentado numa poltrona de couro quando deu detalhes sobre o encontro com o embaixador francês. “Nossa relação com a França caiu muito. Vamos retomar isso.” Ele se disse preocupado com as notícias negativas sobre o Brasil, sobre a confusão na nomeação feita por Araújo para a presidência da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex) — primeira demissão do governo Bolsonaro — e com o recuo de falar em construir uma base militar no Brasil — coisa que é contra. “Está faltando prudência. Não podemos falar qualquer coisa e depois desfalar. Agora é tempo de analisar. Não é tempo de sacar soluções da cartola. A palavra é prudência”, disse. Mourão manifestou a esperança de que o discurso de Bolsonaro em Davos, que “será escrito a várias mãos”, seja uma inflexão na péssima imagem que vem sendo construída do Brasil no exterior, principalmente em editoriais de grandes publicações, como o jornal The New York Times e a revista The Economist .
Quando se despedia, ele deu uma sugestão de chamada de capa para a reportagem de ÉPOCA. Segundo disse, a pergunta era o que todo mundo gostaria de saber — o que atrairia muitos leitores. “Acho que uma boa seria: ‘Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?’. Porque ele não falou o que pretende fazer”, disse Mourão. “Vai todo mundo virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de qualquer jeito?”, indagou em tom de troça. Depois, emendou, sério. “A diplomacia são métodos e objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos de outros países. E ainda não está claro”, disse.
A desenvoltura com que Filipe Martins se movimenta no Planalto parece confirmar essa avaliação. Natural de Sorocaba, no interior de São Paulo, Martins estudava relações internacionais na Universidade Federal de Pelotas em 2011. Em 2013, pediu transferência para a UnB e no ano seguinte foi levado por amigos ao gabinete de Eduardo Bolsonaro quando ele se preparava para estrear como deputado. Nessa época, Martins era estagiário no Tribunal Superior Eleitoral. Na UnB, produziu uma monografia com título O papel do forecasting nas relações internacionais, um estudo sobre previsões. Não entregou, porém, o trabalho quando se graduou. Amigos dizem que ele guardou para um mestrado.
Mesmo sem currículo expressivo, ele teorizava bastante. Virou assessor internacional do PSL e agora ganhou o apelido de Sorocabannon, por ser comparado a Steve Bannon, estrategista de Trump. Confrontado com as críticas na imprensa à pouca idade e experiência, Martins se compara a gigantes do passado da diplomacia. Ele lembra a interlocutores que, com sua idade, o barão do Rio Branco era cônsul-geral em Londres, Oswaldo Aranha era ministro da Justiça e Santiago Dantas representava o Brasil no exterior. Nada menos do que isso.
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