
No fundo, a narrativa é a história de um evento de especiação e suas consequências. “Especiação”, devo esclarecer, é o termo que os biólogos usam para designar o que acontece quando duas populações do mesmo tipo de animal/planta/micróbio/etc. se separam e acabam dando origem, na plenitude do tempo, a novas espécies.
Esse isolamento é enfim rompido pela chegada de um enviado da civilização galáctica, um nativo da Terra, que quer reintegrar Gethen aos demais descendentes do Homo sapiens espalhados pelo Cosmos. O enviado apresenta a ideia ao monarca de uma das nações do planeta, o qual, intrigado, pergunta: para quê?
Eis a resposta (a tradução é minha).
“Lucro material. Aumento do conhecimento. O incremento da complexidade e intensidade do campo da vida inteligente. O enriquecimento da harmonia e a maior glória de Deus. Curiosidade. Aventura. Deleite.”
Assim que responde, nosso diplomata estelar percebe que, justamente por dizer a verdade, colocou sua missão em risco. “Eu não estava falando a língua falada por aqueles que governam os homens”, pensa consigo, “os reis, conquistadores, ditadores, generais; nessa língua, não havia resposta para a pergunta dele.”
A força das narrativas de Le Guin brota precisamente do casamento amoroso entre conhecimento científico e imaginação —vale dizer, entre a capacidade racional para escrutinar os fatos do Universo e a possibilidade de usá-los para sonhar com outros mundos. Ademais, a resposta corajosa —ou temerária— do enviado deixa claro que não precisamos escolher entre “curiosidade, aventura, deleite” e “a maior glória de Deus”. Ambos podem fazer parte da “intensidade do campo da vida inteligente”, o que alguns de nós ainda chamamos de dignidade humana.
Não é à toa que, como temos visto nos últimos tempos no mundo e no Brasil, o poder escolheu a ciência e os cientistas como alvo.
Que o leitor não se deixe enganar: a ciência está sob fogo porque se recusa a falar a língua do poder. Está sob fogo porque é seu papel olhar
o
Universo e o ser humano de frente e dar às coisas os nomes que elas
realmente têm, e não os que nós, em nossa insensatez e nossa soberba,
gostaríamos que eles tivessem.
Reis e generais sempre ansiaram por dominar a arte de dar às trevas o nome de luz, pela licença para rachar cada crânio dos que, discordando deles, insistem que o céu ainda é azul, e não verde, como proclama o poder.
Reis e generais podem triunfar por uma estação do ano, ou por décadas, mas é justamente por sua incapacidade de falar a única língua realmente universal —a da curiosidade, da aventura e do deleite— é que não triunfarão para sempre.
Reis e generais sempre ansiaram por dominar a arte de dar às trevas o nome de luz, pela licença para rachar cada crânio dos que, discordando deles, insistem que o céu ainda é azul, e não verde, como proclama o poder.
Reis e generais podem triunfar por uma estação do ano, ou por décadas, mas é justamente por sua incapacidade de falar a única língua realmente universal —a da curiosidade, da aventura e do deleite— é que não triunfarão para sempre.
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