por Kevin Sieff, Do ‘Washington Post’
Presença. Homem passa por uma das estátuas em homenagem a Francisco Félix de Souza (abaixo), na Praça do Chachá: brasileiro se tornou um mercador de escravos ao chegar em Uidá, Benim. Praça agora pode mudar de nome - Jane Hahn / Jane Hahn/The Washington Post
UIDÁ, BENIM - A menos de um quilômetro de onde já funcionou o maior porto de embarque de escravos do Oeste africano, de onde mais de 1 milhão de pessoas partiram acorrentadas, encontra-se uma estátua de Francisco Félix de Souza, considerado "o pai" da cidade.
POPULAÇÃO DIVIDIDA
Em Benim, o governo pretende construir dois museus sobre a escravidão em parceria com o Smithsonian Institute. O tema é, no entanto, polêmico: minimizado por parentes dos traficantes e criticado por descendentes dos escravos.
Benim e outras nações africanas discutem seu papel nas antigas práticas escravagistas. Por mais de 200 anos, reis locais capturaram e venderam escravos a mercadores portugueses, franceses e britânicos. Eram, na maioria, homens, mulheres e crianças de tribos rivais - amordaçados e levados a Brasil, Haiti e Estados Unidos em navios lotados.
No fim do século XIX, o tráfico de escravos chegou ao fim, mas Benim nunca refletiu profundamente sobre o assunto. Os reinos que capturavam e comercializavam ainda existem como comunidades tribais, assim como os grupos aprisionados. Os descendentes dos mercadores estão entre as pessoas mais influentes do país.
- As tensões ainda existem. No passado, o país teve dificuldades em contar a história das vítimas do tráfico. Muitas ações enalteceram aqueles que escravizaram - contou Ana Lúcia Araújo, brasileira que leciona no Departamento de História da Universidade de Howard, em Washington, e passou anos pesquisando o papel de Benim.
Diferentemente de outros países africanos, Benim reconheceu publicamente o seu papel. Em 1992, foi palco de uma conferência promovida pela Unesco sobre os locais e a forma como os escravos eram comercializados. Em 1999, o então presidente Mathieu Kérékou, chefe de governo por quase 30 anos, visitou uma igreja em Baltimore, nos EUA, e pediu perdão durante uma cerimônia em homenagem aos americanos de origem africana.
Porém, faltou uma conscientização sobre as divisões internas. O arrependimento de Kérekou não foi o suficiente para os cidadãos que ainda se deparam com monumentos em homenagem a Francisco espalhados por Uidá.
- As pessoas não conhecem a História. Francisco era uma pessoa terrível e é tratado como se fosse um herói - ressalta Remi Segonlou, gerente de uma empresa de turismo local.
Em 2016, durante as eleições, um dos candidatos, Lionel Zinsou, acusou o adversário Patrice Talon, atual presidente, de ser descendente de mercadores de escravos.
- A raiva que temos das famílias responsáveis por comercializar os nossos ancestrais só passará quando o mundo acabar - admitiu Placide Ogoutade, empresário na cidade de Ketou (onde milhares de pessoas foram vendidas nos séculos XVIII e XIX), que proibiu os filhos de se casarem com descendentes dos mercadores.
FAMÍLIA TEME POR REPUTAÇÃO
- Este ainda é um país dividido. A elite não quer discutir o que ocorreu - diz Olabiyi Babalola Joseph Yai, professor de História e Linguística, que lecionou na Universidade da Flórida e trabalhou na Unesco.
O governo indicou especialistas para garantir a credibilidade do que virá a ser exibido nos museus. Ainda assim, Yai questiona o quanto as autoridades estariam dispostas a mostrar os fatos.
Há diversas razões para que a história da escravidão em Benim tenha sido má representada. Após a independência em 1960, líderes da ex-colônia francesa incentivaram uma identidade nacional. Desde 1991, quando o país deixou de ser uma ditadura, a escravidão tem sido utilizada como um meio de atrair turistas.
- As pessoas aqui tentam encontrar emprego, ter o que comer. Ficam surpresas ao verem turistas interessados em sua cultura - argumenta José Pliya, conselheiro presidencial de Turismo, que monitora a instalação dos dois museus.
Uma dessas instituições deve ser inaugurada em 2019 com foco na história de Uidá. Já a outra funcionará em Allada, sobre o papel do país na escravidão, e deve abrir as portas em 2020. Devem custar US$ 24 milhões (cerca de R$ 75 milhões) ao todo.
Em Uidá, o governo também planeja reconstruir os fortes onde os mercadores viviam, além das celas nas quais mantinham os escravos. Conselheiros do presidente afirmam que ele planeja renomear a Praça do Chachá, em Uidá, onde os escravos eram leiloados e que hoje abriga a estátua de Souza.
- Ele ajudou a modernizar a nossa nação - afirmou Judicael de Souza, descendente de Chachá, sobre o papel que ele teria tido na expansão agrícola.
A guia turística Martine de Souza apela para a família refletir sobre a própria história.
- Está na hora de aceitarmos a realidade - comentou.
No ano passado, a família escolheu como mais novo patriarca, o Chachá, Moise de Souza, um engenheiro civil de pele mais clara - motivo de orgulho da família que cita sua ligação com os colonizadores.
- Sabemos que é doloroso, e tudo que posso fazer é me desculpar - disse o atual patriarca, oposto à ideia de que Francisco seja retratado como um comerciante de escravos no novo museu. - É a reputação da nossa família. Não queremos ficar conhecidos por essa atrocidade.
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Alberto da Costa e Silva relata como Francisco Félix de Souza construiu seu império
por Renato Grandelle
Na biografia “Francisco Félix de Souza, mercador de escravos”, o acadêmico Alberto da Costa e Silva relata a vida do brasileiro que se tornou mercador de escravos de Benim e entrou para a História do país africano. O pesquisador explica que a sua poderosa figura dividiu opiniões no século XIX. Leia a sua entrevista ao GLOBO.
Como Francisco Félix de Souza se tornou tão importante para a História de Benim?
Desde sua chegada à África, Francisco quis tornar-se uma lenda. Ainda não se sabe o que o levou ao continente. Há quem diga que ele viajou como um funcionário real para proteger um forte português. Outros afirmam que ele era um foragido da polícia. Independentemente de qual história é verdadeira, sabemos que ele queria ser um milionário negociando mão de obra forçada, e conseguiu tornar-se o maior mercador de escravos da História contemporânea.
Foi, então, um personagem odiado?
Ele dividiu opiniões. Curiosamente, além de levar escravos para o Brasil, também recebeu aqueles que haviam sido libertos e queriam retornar ao continente de origem. Eram conhecidos como “agudás”. Muitos não sabiam onde ficava sua terra natal, porque o nome das aldeias era conhecido somente em regiões vizinhas. Francisco os ajudou a se restabelecer em uma grande porção da costa africana, que se estendia de Gana até a fronteira da Nigéria com Camarões. O tamanho dessa comunidade aumentou sua influência política no reino de Daomé, onde agora é Benim.
De que forma ele usava seu capital político?
Francisco tinha um poder incontestável — nem sequer precisava assinar ordens para vê-las cumpridas. Em 1818, forneceu armas que proporcionaram um golpe de Estado no reino, dando o trono ao seu amigo, o príncipe Gapê, que adotou o nome Guezo. Em troca, ele conseguiu o monopólio do comércio de escravos.
Muitos “agudás” devem ter ido para o Brasil por meios orquestrados por Francisco. Eles não se ressentiam disso?
Não. A escravidão era um fenômeno natural e aceito na comunidade. Quando era liberto, a primeira medida de um ex-escravo era comprar o seu próprio escravo. Não é de se surpreender que hoje Francisco seja homenageado com uma estátua e tenha sua trajetória explicada em museus.
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