Luiz Antonio Simas
A História
que pesquiso, escrevo e me apaixona é ancorada em um princípio: malucos,
crianças, mulheres, bichas, sambistas, funkeiros, amantes desesperados,
fracassados em geral, a vizinha do lado, o fantasma, a iaô, a
prostituta, a beata, a minha mãe, a passista da Mangueira, a filha de
Deus e o filho do diabo, o pierrô, a colombina, o pirata de araque, o
bicheiro, o empurrador de carro alegórico, a assombração, o macumbeiro, o
portuga do botequim, o Rei Momo, o Menino Jesus do teatrinho da
quermesse e a rezadeira suburbana não são objetos da História. São
sujeitos dela.
Partindo desta premissa — e particularmente interessado em falar da cidade do Rio de Janeiro — me confesso fascinado pelo espírito do carnaval e do alcance que a festa tem para a nossa gente. O carnaval é perigoso. O controle dos corpos sempre foi parte do projeto de desqualificação das camadas historicamente subalternizadas como produtoras de cultura. Esse projeto de desqualificação da cultura é base da repressão aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres, dos descendentes dos escravizados e de tudo aquilo que resiste ao confinamento dos corpos e cria potência de vida. O corpo carnavalizado, sambado, disfarçado, revelado, suado, sapateado, sincopado, dono de si, é aquele que escapa, subindo no salto da passista, ao confinamento da existência como projeto de desencanto e mera espera da morte certa.
A relação aparentemente amorosa entre o Rio de Janeiro e o carnaval quase nunca foi aceita como um destino sentimental, como certo discurso identitário e falsamente consensual de invenção do carioca quer fazer crer. O carnaval, pelo contrário, se inscreve na história da cidade como um aguçador de tensões. Cariocas amam o carnaval e cariocas odeiam o carnaval. A ideia do que deve ser a festa sintetiza a disputa entre a cidade preta, rueira, subterrânea, pecadora, e a cidade que se quis europeia, civilizada, enquadrada nos ditames da ordem e da redenção pelas luzes, pelo cifrão, pelo terno e pela cruz. A última, para seus defensores, deveria exterminar ou domesticar a primeira para existir. Esse embate entre o corpo em transe e o corpo em pecado está especialmente aguçado em 2018.
Um discurso fácil dos que detestam a folia é aquele que vincula o carnaval ao “Brasil dos vagabundos”, como se ninguém trabalhasse nos dias de Momo. Eu fico imaginando o que é que essa turma pensa dos vendedores ambulantes, dos funcionários dos barracões de escolas de samba, dos músicos, cantoras e cantores, garis, porteiros, motoristas de ônibus, trocadores, condutores de trens e metrôs, cozinheiros, garçons, jornalistas, arrumadeiras e faxineiras de hotéis, costureiras de fantasias, motoristas de carros de som etc. A festa, e aqui me perdoem por falar o óbvio, bota muito feijão na mesa da gente mais simples da aldeia.
A festa em tempos de crise é mais necessária que nunca. A gente não brinca, canso de repetir isso, e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura. Sem o repouso nas alegrias, cá pra nós, ninguém segura o rojão. Não dou a mínima para quem acha que não devemos ter carnaval e, ao mesmo tempo, não embarco nos discursos que justificam o carnaval exclusivamente pelo argumento de que a festa é lucrativa e vai gerar bilhões para a cidade. É ótimo que isso aconteça e que o dinheiro entre, mas vou botar água nesse chope: desde quando carnaval existe apenas para dar lucro? Desde quando isso é o critério fundamental para que tenhamos festa?
Do ponto de vista pessoal, encaro a rua no carnaval como um espaço para o esquecimento necessário. Por isso mesmo, acho que a tarefa carnavalesca dos próximos anos é das mais difíceis. É na rua que os amantes do carnaval andam tendo que driblar multidões coreografadas, materiais de propaganda de empresas que acham que o carnaval é apenas um momento da cultura do evento, celebridades duvidosas que usam a festa como forma de promoção e fortões compradores de abadás, péssimos bebedores, que serão usados em futuras sessões de musculação.
Entre a repressão e a grana, prefiro a quizomba de Momo que, dentre outras coisas, guarda sentidos bem mais profundos, como aqueles que se situam no campo da cultura e são como o feixe de luz que entra pela brecha da porta que alguém tenta fechar, desnorteando o breu. O carnaval é uma experiência de invenção constante, precária e sublime, da vida dos brasileiros. O Brasil, afinal, é a minha circunstância bonita, heroica, fracassada, maldita, amorosa, desgraçada, desesperadora e, feito o baticum do samba que me arrebata, incontornáve
Partindo desta premissa — e particularmente interessado em falar da cidade do Rio de Janeiro — me confesso fascinado pelo espírito do carnaval e do alcance que a festa tem para a nossa gente. O carnaval é perigoso. O controle dos corpos sempre foi parte do projeto de desqualificação das camadas historicamente subalternizadas como produtoras de cultura. Esse projeto de desqualificação da cultura é base da repressão aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres, dos descendentes dos escravizados e de tudo aquilo que resiste ao confinamento dos corpos e cria potência de vida. O corpo carnavalizado, sambado, disfarçado, revelado, suado, sapateado, sincopado, dono de si, é aquele que escapa, subindo no salto da passista, ao confinamento da existência como projeto de desencanto e mera espera da morte certa.
A relação aparentemente amorosa entre o Rio de Janeiro e o carnaval quase nunca foi aceita como um destino sentimental, como certo discurso identitário e falsamente consensual de invenção do carioca quer fazer crer. O carnaval, pelo contrário, se inscreve na história da cidade como um aguçador de tensões. Cariocas amam o carnaval e cariocas odeiam o carnaval. A ideia do que deve ser a festa sintetiza a disputa entre a cidade preta, rueira, subterrânea, pecadora, e a cidade que se quis europeia, civilizada, enquadrada nos ditames da ordem e da redenção pelas luzes, pelo cifrão, pelo terno e pela cruz. A última, para seus defensores, deveria exterminar ou domesticar a primeira para existir. Esse embate entre o corpo em transe e o corpo em pecado está especialmente aguçado em 2018.
Um discurso fácil dos que detestam a folia é aquele que vincula o carnaval ao “Brasil dos vagabundos”, como se ninguém trabalhasse nos dias de Momo. Eu fico imaginando o que é que essa turma pensa dos vendedores ambulantes, dos funcionários dos barracões de escolas de samba, dos músicos, cantoras e cantores, garis, porteiros, motoristas de ônibus, trocadores, condutores de trens e metrôs, cozinheiros, garçons, jornalistas, arrumadeiras e faxineiras de hotéis, costureiras de fantasias, motoristas de carros de som etc. A festa, e aqui me perdoem por falar o óbvio, bota muito feijão na mesa da gente mais simples da aldeia.
A festa em tempos de crise é mais necessária que nunca. A gente não brinca, canso de repetir isso, e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura. Sem o repouso nas alegrias, cá pra nós, ninguém segura o rojão. Não dou a mínima para quem acha que não devemos ter carnaval e, ao mesmo tempo, não embarco nos discursos que justificam o carnaval exclusivamente pelo argumento de que a festa é lucrativa e vai gerar bilhões para a cidade. É ótimo que isso aconteça e que o dinheiro entre, mas vou botar água nesse chope: desde quando carnaval existe apenas para dar lucro? Desde quando isso é o critério fundamental para que tenhamos festa?
Do ponto de vista pessoal, encaro a rua no carnaval como um espaço para o esquecimento necessário. Por isso mesmo, acho que a tarefa carnavalesca dos próximos anos é das mais difíceis. É na rua que os amantes do carnaval andam tendo que driblar multidões coreografadas, materiais de propaganda de empresas que acham que o carnaval é apenas um momento da cultura do evento, celebridades duvidosas que usam a festa como forma de promoção e fortões compradores de abadás, péssimos bebedores, que serão usados em futuras sessões de musculação.
Entre a repressão e a grana, prefiro a quizomba de Momo que, dentre outras coisas, guarda sentidos bem mais profundos, como aqueles que se situam no campo da cultura e são como o feixe de luz que entra pela brecha da porta que alguém tenta fechar, desnorteando o breu. O carnaval é uma experiência de invenção constante, precária e sublime, da vida dos brasileiros. O Brasil, afinal, é a minha circunstância bonita, heroica, fracassada, maldita, amorosa, desgraçada, desesperadora e, feito o baticum do samba que me arrebata, incontornáve
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