Luiz Antonio Simas
Uma cena de
Ano Novo inesquecível para mim é a da vizinha católica que na noite da
virada tomava uns biricoticos a mais, virava na Dona Maria Padilha e
saía gargalhando com uma garrafa de sidra de macieira pelas escadas do
prédio em que eu morava. Depois de aprontar, a Padilha dava passagem
para o caboclo da dona, que metia esporro em todo mundo e lançava
flechas imaginárias pra tudo quanto é lado, garantindo matar as coisas
ruins do ano que findava. É o tipo de coisa que moldou a minha
personalidade e o meu assombro com o mundo.
Final de ciclo é tempo de todos os tipos de crendices e superstições. Do jeito que foi 2017, acho que vale tudo pra afastar a uruca: saltar sete ondas; vestir cuecas e calcinhas novas; tomar banho de arruda; andar feito Saci-Pererê repetindo a oração da cabra preta do livro de São Cipriano; vestir a cor do orixá regente; comer duzentas uvas fazendo pedidos; beber champanhe de cabeça pra baixo; imitar índio do velho Oeste; cantar o pirulito que bate-bate em chinês; tomar passe espírita de caboclo mais fajuto que nota de três reais e outros babados.
Ouço dizer aqui e ali que o réveillon vai ser minguado na praia, em virtude da crise. Eu tenho uma sugestão melhor, que evidentemente vai ser ignorada, sobre o que o poder público e os gestores do turismo deveriam fazer nas praias na última noite do ano: nada. Apenas não atrapalhem e deixem, por exemplo, que os terreiros de umbanda voltem a fazer uma comemoração que foram eles, os terreiros, que inventaram. A festa é garantida.
A iniciativa de fazer a festa na Praia de Copacabana partiu da turma que acompanhava Tancredo da Silva Pinto, o Tata Tancredo, líder religioso, sambista e personagem fundamental da cultura do Rio de Janeiro. “Tata” é título de grande sacerdote em cultos de origem angolo-congoleses (bantos). Nascentes e Nei Lopes, que manjam do babado, o vinculam ao termo multilinguístico “tata” (pai, no quimbundo e no quicongo).
Tata Tancredo nasceu em 1905, em Cantagalo. Foi parceiro e gravou com Moreira da Silva, Blecaute, Zé Kéti, Jorge Veiga e outros tantos. Conheceu a turma toda do Estácio de Sá, a geração de ouro que inventou o “samba de sambar” característico do Rio de Janeiro, e participou dos fuzuês que envolveram a criação da Deixa Falar. Sua música mais conhecida é “General da banda” — louvação a Ogum e evocação das rodas de pernada e batucadas —, gravada pelo Blecaute
Os poucos relatos existentes indicam que o avô de Tancredo Silva foi bamba do carnaval de Cantagalo, onde fundou os blocos Avança e Treme-Terra e o Cordão Místico, uma mistura de carnaval, festa de caboclo e ritual africano, conforme relatado, em 1976, na “Revista da Congregação Espírita Umbandista do Brasil”. A tia de Tancredo, Olga da Mata (que foi mãe de santo com casa aberta em Caxias), saía no cordão vestida de Rainha Ginga.
Pois foi a turma do Tata Tancredo que resolveu difundir a ideia do fim de ano na praia, em um furdunço que não excluía ninguém. Ateus, católicas, crentes, budistas, flamenguistas, tricolores, bacalhaus e botafoguenses, por via das dúvidas, garantiam o ano bom recebendo passes de caboclos e pretas velhas nas areias, com direito a cocares, charutos e sidra de macieira. Quem não quisesse curtir uma curimba montava a farofada na areia, e a festa comia solta da mesma forma.
A confraternização nas areias de Copacabana virou atração turística bacana, atrai gente de tudo quanto é canto, gera divisas e garante a ocupação da rede hoteleira. Em contrapartida, os atabaques foram silenciados e os terreiros buscaram alternativas para continuar batendo em praias fora da centralidade turística, driblando ainda a intolerância e o fanatismo de uma turma. A festa, que era um potente evento da cultura, andou nos últimos tempos sucumbindo aos ditames da cultura do evento, aquela que espetaculariza tudo como simulacro. Tem até pacote turístico que já inclui o barquinho de Iemanjá e revista de celebridade que monta cercadinho com jogo de búzios fashion. A elitização do furdunço é evidente nos espaços reservados nas areias, controlados por grupos privados, hotéis, quiosques e similares.
Eu me agarro, em tempos difíceis, no exemplo do Tata Tancredo Silva para ainda acreditar na cidade do Rio de Janeiro e na capacidade que temos de inventar a vida no perrengue, dando nó no rabo da tinhosa e fazendo a festa. Não se faz festa, afinal, porque a vida é boa. A razão é exatamente a inversa. No fim das contas, sou ainda o menino que acredita nas flechas invisíveis dos caboclos. Que elas atinjam os alvos certos no ano que vem. Um bom 2018 para todos nós!
Final de ciclo é tempo de todos os tipos de crendices e superstições. Do jeito que foi 2017, acho que vale tudo pra afastar a uruca: saltar sete ondas; vestir cuecas e calcinhas novas; tomar banho de arruda; andar feito Saci-Pererê repetindo a oração da cabra preta do livro de São Cipriano; vestir a cor do orixá regente; comer duzentas uvas fazendo pedidos; beber champanhe de cabeça pra baixo; imitar índio do velho Oeste; cantar o pirulito que bate-bate em chinês; tomar passe espírita de caboclo mais fajuto que nota de três reais e outros babados.
Ouço dizer aqui e ali que o réveillon vai ser minguado na praia, em virtude da crise. Eu tenho uma sugestão melhor, que evidentemente vai ser ignorada, sobre o que o poder público e os gestores do turismo deveriam fazer nas praias na última noite do ano: nada. Apenas não atrapalhem e deixem, por exemplo, que os terreiros de umbanda voltem a fazer uma comemoração que foram eles, os terreiros, que inventaram. A festa é garantida.
A iniciativa de fazer a festa na Praia de Copacabana partiu da turma que acompanhava Tancredo da Silva Pinto, o Tata Tancredo, líder religioso, sambista e personagem fundamental da cultura do Rio de Janeiro. “Tata” é título de grande sacerdote em cultos de origem angolo-congoleses (bantos). Nascentes e Nei Lopes, que manjam do babado, o vinculam ao termo multilinguístico “tata” (pai, no quimbundo e no quicongo).
Tata Tancredo nasceu em 1905, em Cantagalo. Foi parceiro e gravou com Moreira da Silva, Blecaute, Zé Kéti, Jorge Veiga e outros tantos. Conheceu a turma toda do Estácio de Sá, a geração de ouro que inventou o “samba de sambar” característico do Rio de Janeiro, e participou dos fuzuês que envolveram a criação da Deixa Falar. Sua música mais conhecida é “General da banda” — louvação a Ogum e evocação das rodas de pernada e batucadas —, gravada pelo Blecaute
Os poucos relatos existentes indicam que o avô de Tancredo Silva foi bamba do carnaval de Cantagalo, onde fundou os blocos Avança e Treme-Terra e o Cordão Místico, uma mistura de carnaval, festa de caboclo e ritual africano, conforme relatado, em 1976, na “Revista da Congregação Espírita Umbandista do Brasil”. A tia de Tancredo, Olga da Mata (que foi mãe de santo com casa aberta em Caxias), saía no cordão vestida de Rainha Ginga.
Pois foi a turma do Tata Tancredo que resolveu difundir a ideia do fim de ano na praia, em um furdunço que não excluía ninguém. Ateus, católicas, crentes, budistas, flamenguistas, tricolores, bacalhaus e botafoguenses, por via das dúvidas, garantiam o ano bom recebendo passes de caboclos e pretas velhas nas areias, com direito a cocares, charutos e sidra de macieira. Quem não quisesse curtir uma curimba montava a farofada na areia, e a festa comia solta da mesma forma.
A confraternização nas areias de Copacabana virou atração turística bacana, atrai gente de tudo quanto é canto, gera divisas e garante a ocupação da rede hoteleira. Em contrapartida, os atabaques foram silenciados e os terreiros buscaram alternativas para continuar batendo em praias fora da centralidade turística, driblando ainda a intolerância e o fanatismo de uma turma. A festa, que era um potente evento da cultura, andou nos últimos tempos sucumbindo aos ditames da cultura do evento, aquela que espetaculariza tudo como simulacro. Tem até pacote turístico que já inclui o barquinho de Iemanjá e revista de celebridade que monta cercadinho com jogo de búzios fashion. A elitização do furdunço é evidente nos espaços reservados nas areias, controlados por grupos privados, hotéis, quiosques e similares.
Eu me agarro, em tempos difíceis, no exemplo do Tata Tancredo Silva para ainda acreditar na cidade do Rio de Janeiro e na capacidade que temos de inventar a vida no perrengue, dando nó no rabo da tinhosa e fazendo a festa. Não se faz festa, afinal, porque a vida é boa. A razão é exatamente a inversa. No fim das contas, sou ainda o menino que acredita nas flechas invisíveis dos caboclos. Que elas atinjam os alvos certos no ano que vem. Um bom 2018 para todos nós!