December 20, 2017

Quem são os vândalos do Maracanã




Cacá Diegues

Quem quiser que acredite na visão convencional de que o brasileiro é um povo ordeiro e pacífico, incapaz de qualquer violência. Essa fake news histórica está na maioria dos livros didáticos sobre nós mesmos e, ainda, em ensaios dignos de respeito pela assinatura de seus autores. Assim como nosso povo não é tão bonzinho assim, as elites do país não deixam também de ser, muitas vezes, assombrosamente injustas e selvagens.

Na História do Brasil, a reação das elites a movimentos de iniciativa popular nos ajuda a compreender como elas consideram quem afirmam representar. Peguem, por exemplo, sem ordem cronológica, Canudos, os Malês, as Revoltas da Vacina e da Chibata, a Guerra do Contestado, a Revolução de 32, os Mascates, Cabanagem, Balaiada, Palmares, a Revolução Federalista de 1894, os Farrapos, Confederação do Equador e muito mais (ufa!). Todas essas revoltas foram encerradas com muita cadeia, tortura e morte.

Os movimentos de alguma grandeza e importância, que não sofreram reação armada de quem estava no poder, foram aqueles em que as elites se entenderam muito bem entre elas mesmas, num acordo de cúpula em que as partes garantiram suas vantagens. Como a Independência (sob proteção da Inglaterra e aquiescência de Portugal) ou a República (proclamada pelos cafeicultores senhores de terras, irritados com a Abolição da Escravatura).

Nossa história é contada em séculos de conflitos sangrentos, resistências heroicas, lutas contra o trabalho escravo a serviço dos senhores das múltiplas riquezas do país. E com muita porrada das oligarquias que sempre mandaram, sobre aqueles que, em algum momento, se negaram a obedecer. Não é à toa que o Brasil foi o país ocidental que mais escravos importou da África negra, sendo o último a acabar formalmente com a escravidão.

Na minha modesta e inculta opinião, a revolta do povo rubro-negro, na noite da final contra o Independiente da Argentina, não foi uma simples reação ao empate do time e sua consequente perda da Copa Sul Americana. Tem mais do que futebol por trás disso.

Em primeiro lugar, chega de cinismo em relação à natureza dos descontentes. Eles não eram “vândalos” que nada tinham a ver com a torcida do Flamengo, como certos observadores tentam nos convencer. Eles eram, antes de tudo, torcedores do Flamengo. Segundo a empresa Maracanã S.A., que administra o estádio, cerca de oito mil pessoas entraram à força para ver o jogo sem pagar ingresso. Ora, qualquer grupo de vândalos com oito mil membros é capaz de fazer muito mais do que simplesmente acabar com um jogo de futebol. E ninguém garante que só esses oito mil é que fizeram arruaça.

Quem atuou antes e depois do jogo, na porta dos hotéis, nos portões do Maracanã, nas arquibancadas do estádio, foram mesmo alguns autênticos torcedores do Flamengo, uma parte da torcida insatisfeita com alguma coisa que, pela cronologia dos fatos, não pode ser apenas o infeliz empate no campo.

Antes da Copa do Mundo de 2014, todo mundo cabia no Maracanã. Quem não tinha dinheiro para comprar um ingresso na democrática arquibancada, ia para a bem-humorada geral que, como lembra o rubro-negro Leo Jaime em belo artigo no GLOBO, se divertia e divertia o público. Com a Copa no Brasil, a Fifa exigiu que o velho estádio fosse transformado em moderna arena. Mesmo que isso significasse uma diminuição de espaço e representasse, como é a lógica do comércio, uma subida geral nos preços, acompanhada do fim de “ingressos populares”.


Além de palco principal de nosso futebol, o Maraca sempre foi um monumento nacional. Transformá-lo em “arena” e “embelezá-lo” foi como se, da noite para o dia, o governo decidisse levar a estátua do Cristo para um morro mais baixinho que o Corcovado, por ela estar um pouco alta demais e ser mais elegante desse novo jeito. Hoje, depois de tanta esclarecedora Lava-Jato, podemos supor que as obras do Maracanã foram ditadas pelo interesse das empreiteiras, com o apoio de políticos beneficiados. E o povo não é cego, nem besta.

O “vandalismo” aconteceu no Rio de Janeiro, estado onde mais se achou desgoverno e corrupção nesses anos de passagem a limpo da política nacional. A selvageria daquela noite não era por ser a torcida do Flamengo; mas por ser a torcida mais popular do Brasil, aquela que estava dizendo não aguentar mais a selvageria que vem de cima, o exemplo do descalabro das elites que nos governam. E que tem consequências no comportamento da população.

Cabe à polícia impedir a desordem nas ruas, é esse o seu papel. Mas é preciso também dar-se um fim à desordem protegida pelo poder, o vandalismo das elites. Se o governante pratica conosco a barbárie do roubo, do desprezo às nossas necessidades, do desinteresse por nossa saúde, educação, segurança, por que não podemos responder com nossa própria barbárie, dizer a eles que, se é esta a regra, também sabemos praticá-la? Essa é uma escolha da população, só dela, diante de seu futuro.

O GLOBO, DEZEMBRO 2017 

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