December 13, 2017

Espantando a miséria


Luiz Antonio Simas

Meu avô era um pernambucano sem papas na língua. O velho tinha uma tirada clássica para responder aos que desciam o malho em um costume que a minha família sempre cultivou; o de festejar qualquer coisa nas situações mais complicadas. Bastava surgir alguém reclamando da irresponsabilidade de se fazer a festa sem razão aparente e ele mandava na lata: “A gente aqui não faz festa porque a vida é boa, mas porque tá tudo uma porcaria”.

Na onda do meu velho, o sambista Laudemir Casemiro, mais conhecido nas quebradas do Rato Molhado, da Vila Isabel e da Serrinha como Beto Sem Braço, é autor de uma sentença definitiva; um aforismo cheio dos borogodós e profundamente carioca sobre o mesmo tema: o que espanta a miséria é festa. Matutando sobre as frases, concluo que a festa foi de fato a maneira mais potente que a turma da banda de cá encontrou para estar no mundo e driblar os perrengues cotidianos. Ritualizamos em folguedos e festejos diversos, nascimentos, espantos da fé, amenidades corriqueiras, carnavais, conquistas, desacertos, amores e perdas.

Não custa recordar que, ao longo dos tempos, o poder instituído no Brasil articulou ações em relação às ditas “classes perigosas” (expressão comum em arquivos policiais da Primeira República) a partir de uma lógica de controle social fundamentada em estratégias de disciplina dos corpos, com inúmeras variantes: corpos amansados pela catequese, pelo trabalho bruto, pela chibata, e pelo confinamento em espaços precários; entre porões, senzalas, canaviais, linhas de montagem e cadeias.

O fim da escravidão exigiu redefinições nas estratégias de controle dos corpos e coincidiu com a montagem de projetos modernizadores que buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados. Ao lado do controle dos corpos, vigorou a desqualificação completa das camadas subalternizadas como agentes incessantes de invenção de modos de vida. A ordem no terreiro carioca era criminalizar os batuques, sambas, macumbas, capoeiras, carnavais e demais elementos lúdicos do cotidiano dos pretos e pobres (penso no jogo do bicho, reprimido por ser, no início do século XX, uma loteria dos mais humildes). Tudo, enfim, que resistisse ao confinamento dos corpos deveria se escafeder em nome da nostalgia de uma Europa que nunca fomos.

A prevenção contra os perigosos manifestou-se também no campo do discurso em que atua a História como espaço de produção de conhecimento. Apenas elementos externos aos subalternizados — a ciência, o cristianismo, o consumo de bens, a escola ocidental etc. — poderiam inseri-los precariamente, e ainda como subalternos, naquilo que imaginamos ser a trajetória da Humanidade. As festas — penso especialmente nos furdunços de rua — nadam contra esta corrente. Elas legitimam-se muitas vezes como terreiros de produção de conhecimentos não normativos, viabilizando modos de vida e estratégias de sobrevivência surpreendentes. Zabumbar no fio da navalha, no meio da tempestade, foi a saída mais potente para se driblar a tormenta da noite grande. A cultura do samba veio de um aparente paradoxo: não se samba porque a vida é mole; mas porque é dura pra dedéu.

Cada um que elabore os sentidos que forem convenientes para as festas. A ideia de felicidade sempre me pareceu conformista. Minha onda, por isso mesmo, é a de mandar a felicidade para a casa do chapéu e desejar, dando nó no rabo da tirana, que a cidade batuque cada vez mais alto, dispute cada vez mais as esquinas, encante cada vez mais os espaços com os clarins da banda, o bumbo do Zé Pereira, os fogos da alvorada de São Jorge, os doces de Cosme e Damião, os cantos de torcida, as palmas do partido alto, as rimas do rap, a flauta no choro, o chora cavaco e os saravás de Ogunhê. O sarapatel carioca é feito de uma receita apimentada.

Nós estamos em um momento especialmente propenso ao sucesso dos que desqualificam e demonizam o hábito de festejar e praticar as ruas. Artimanhas do demônio, coisa de gentinha, herança maldita ou sintoma de alienação, a festa — e não o evento meramente mercantil — é vista como acintosa em um contexto que parece mais propício às imolações raivosas no chão especulado e esvaziado de sentido. A terra destroçada necessita das giras de reencanto. A disputa está aberta e eu tenho lado: jogo no time do Beto Sem Braço, do meu avô, dos caciques, bolas e bafos. É no arrepiado das arrelias e na plenitude dos corpos em transe de liberdade que o mais subversivo dos enigmas há de nos salvar de todas as misérias: a capacidade criadora de alegria nos infernos.

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