November 25, 2023

Morrer pela pátria e viver sem razão

 

 


IDEIAS Os soldados das Forças Armadas
são, desde a Independência, treinados
para combater um suposto inimigo interno

 GILBERTO MARINGONI

Um preocupante consenso
de elites ronda a democra-
cia brasileira: o de que as
Forças Armadas nada tive-
ram a ver com a escalada
golpista dos últimos quatro anos, cujo
ponto culminante foi o terror de 8 de ja-
neiro, em Brasília.

 
Governo, Judiciário e a maioria do Le-
gislativo irmanados com boa parte da
mídia apressam-se em construir orações
sem sujeito diante de um histórico de or-
dens do dia, acampamentos em frente a
quartéis e participação de altos oficiais
em articulações para desacreditar urnas,
instituições e organizações da sociedade.
Trata-se de um “passar o pano” amplo
e irrestrito, na tentativa de convencer a
opinião pública de que, sem os fardados,
a legalidade teria ido à breca.

 
Inúmeras vozes se insurgem contra
esse acordão. Uma das mais qualifica-
das é a de Manuel Domingos Neto, em O
Que Fazer com o Militar – Anotações pa-
ra Uma Nova Defesa Nacional. Profes-
sor aposentado da Universidade Federal
do Ceará e ex-deputado federal, o autor
apresenta uma espécie de síntese de qua-
se meio século de pesquisas, incontáveis
contatos com oficiais e refinada análise
do passado recente.

 
Domingos Neto não faz rodeios em seu
raciocínio: “Escrevi este livro para os que
acham possível apaziguar o quartel com
atendimento às demandas corporativas.
Lula acreditou nisso e foi preso. Voltou ao
governo contingenciado pelo fuzil. Dilma
também acreditou e perdeu o cargo”.
Para o pesquisador, o problema essen-
cial é aquilo que ele chama de transtor-

 
no de personalidade funcional do militar.
Toda a pregação dos comandos superio-
res exalta a defesa da soberania e de um
difuso conceito de pátria. Contudo, des-
de a Independência, os soldados são ma-
joritariamente treinados para outra ati-
vidade, o combate ao “inimigo interno”.
Isso teria se concretizado na manu-
tenção do sistema colonial-escravista,
na repressão a movimentos separatis-
tas no Império e a qualquer tipo de re-
belião popular na República. Na Guerra
Fria, a partir de 1945, a missão foi em-
balada pelas teorias de contrainsurgên-
cia e no combate à chamada subversão.

 
Sob tal contexto, escreve o autor, o sol-
dado se percebe como “político, policial,
empresário, assistente social, adminis-
trador público, construtor de estradas,
perfurador de poços no Semiárido, guar-
da florestal, vigia de fronteira, entendido
em Segurança Pública, controlador dos
tráfegos aéreo, costeiro e fluvial, supre-
mo avaliador da moralidade e planeja-
dor do destino nacional”. Incapazes de
desempenhar sua função essencial, a de-
fesa contra a agressão externa, as Forças
arrogaram-se o papel de interventoras
frequentes na vida política.

 
Domingos Neto avalia que o Brasil
possui um arremedo de Defesa – nesse
campo, a República teria fracassado. “Pa-
ra a afirmação da soberania brasileira,
precisamos de uma nova Defesa, que re-
vise as funções, a organização e a cultu-
ra das Forças Armadas. Chamo essa re-
visão de reforma militar”, diz.

 
A partir daí o livro esboça bases de
uma profunda mudança na organização
e nos objetivos da caserna. O passo ini-
cial seria o rompimento das Forças Ar-
madas com a grande indústria transna-
cional de armas e com os desígnios das
potências hegemônicas.

 
A reforma proposta deveria rever o nú-
mero excessivo de generais sem função e
a distribuição das tropas pelo País, além
de abrir caminho para que mulheres e
negros tenham ascensão hierárquica.

O trabalho exalta a necessidade de
maior investimento estatal em ciência
e tecnologia, para dotar o setor de ca-
pacidade operacional diante das novas
características da guerra. Por fim, de-
ve-se abrir um grande debate nacional
sobre Defesa. Trata-se de articulação
eminentemente política, que não po-
de se restringir aos muros da caserna.

 
“Comandantes precisam ser consulta-
dos sobre a Defesa, mas a sua concep-
ção e condução cabem ao político”, su-
blinha Domingos Neto.

ois pontos buscam amarrar o con-
junto de proposições feitas no livro. O
primeiro é acabar com a ideia de que as
Forças Armadas seriam um poder mo-
derador, com capacidade de intervir na
vida política do País, como estabelece
o artigo 142 da Constituição. O segun-
do aponta para uma política abrangen-
te de Defesa, que precisa incluir a coesão
social e cidadã do País. Isso implicaria
redução da pobreza e da desigualdade,
na mitigação dos preconceitos e dispa-
ridades regionais e na consolidação do
regime democrático.

 
O Que Fazer com o Militar é obra de
intervenção e quase um libelo pela mu-
dança do lugar das Armas nas políticas de

stado. O apelo é enfático: “Hoje, os gene-
rais tentam administrar perdas e danos
por seu envolvimento direto e indireto na
baderna golpista. Lula persiste no apazi-
guamento: comemora o Dia do Exército,
ritual enaltecedor da índole colonial da
corporação e exalta o Exército de Caxias,
expressão que legitima as intervenções
domésticas da Força Terrestre”.

 
Tudo indica haver uma oportunidade
histórica para se promover uma grande
reestruturação nas forças de Defesa e se-
gurança. O livro de Manuel Domingos
Neto é um alerta de que essa oportuni-
dade não dura para sempre.

CARTA CAPITAL

  

 

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