O economista grego Yanis Varoufakis vê surgir, no lugar do capitalismo, o feudalismo comandado pelas big techs
Carole Cadwalladr
O que poderia ser mais agra-
dável do que uma viagem à
Grécia para conhecer
Yanis Varoufakis, o caris-
mático agitador de esquer-
da que tentou resistir ao Fundo Monetá-
rio Internacional (FMI), à União Euro-
peia e a toda a ordem financeira global?
Minhas imagens mentais antes da visi-
ta são compostas de céu azul, mar azul e
um prato sendo quebrado em uma alegre
taverna. Mas o que me espera, à saída do
aeroporto, é um muro de chamas ondulan-
do por uma encosta junto à rodovia e uma
nuvem de fumaça preta rolando pela pista.
Hoje, mesmo uma villa modernista
num morro da ilha de Egina, refúgio de ve-
rão dos atenienses chiques – à qual se che-
ga por um rápido percurso de ferry a par-
tir do porto de Pireus – está longe de ser o
santuário que talvez tenha sido outrora.
Ao final de um verão com ondas de ca-
lor e condições climáticas extremas em
todo o mundo, a casa onde Varoufakis e
sua mulher, a paisagista Danae Stratou,
vivem desde a pandemia, parece um pou-
co apocalíptica. Quando estou lá, o sol é
uma esfera laranja fraca lutando para bri-
lhar através de uma névoa de fumaça. Um
mês depois, a chuva equivalente à média
de dois anos cairia num único dia no nor-
te da Grécia, causando um dilúvio bíblico.
Não deve ser mera coincidência que o
novo livro de Varoufakis,Technofeudalism:
What KilledCapitalism (Tecnofeudalismo:
O QueMatou o Capitalismo), tenha sido es-
crito nesse lugar em que o fim do mundo
parece um pouco mais próximo do que em
outros. E nem que Varoufakis conclua, no
livro, que o capitalismo foi substituído por
algo ainda pior.
Vivemos, argumenta ele, a servidão aos
feudos dos nossos novos senhores globais:
lorde Zuckerberg, da Facelândia, e sir
Musk, do burgo podre X – letra que, do dia
para a noite, passou a dar nome ao Twitter.
Quando chego de táxi ao final do ca-
minho de terra até sua casa, o carismáti-
co agitador me recebe em um compacto
Mini vermelho. “Normalmente estou na
minha moto”, diz, descrevendo seu “des-
locamento impecável”, em pouco mais de
uma hora, até o Parlamento grego.
A motocicleta e a jaqueta de couro
nunca prejudicaram sua imagem de bad
boy esquerdista a enfrentar os homens
cinzentos do capitalismo global. Lem-
bremo-nos: em 2015, no auge da crise
da dívida grega, Varoufakis foi catapul-
tado da obscuridade acadêmica a minis-
tro das Finanças.
Ele disse – em tom alto e repetidamen-
te – que os termos punitivos que os bancos
queriam impor à Grécia levariam a uma
austeridade catastrófica. A maioria dos
gregos votou a favor dele e, durante um
curto período, sua estratégia de discordar
dos termos do FMI e da União Europeia
levou a um impasse tenso. Mas esse im-
passe durou até o momento em que o pri-
meiro-ministro Aléxis Tsípras, o homem
que o nomeou, aceitou os tais termos.
O Financial Times rotulou-o como
“o homem mais irritante na sala” du-
rante as negociações e, por isso, não é
exatamente uma surpresa constatar
que o tecnofeudalismo é uma aborda-
gem controversa, de um polemista. E,
embora em 2023 não haja nada de par-
ticularmente novo ou especial no ódio à
tecnologia – odiar Elon Musk é a única
reação racional à situação em que nos
encontramos –, Technofeudalism parece
um livro importante.
Ele traz uma hipótese abrangente, en-
raizada em um relato histórico de como o
capitalismo surgiu, e descreve uma mu-
dança de época que ocorre uma vez por
milênio. De certa forma, é um alívio que
um político esteja falando sobre isso.
Porque, segundo Varoufakis, o mundo
não está se debatendo diante uma nova
tecnologia apenas, e sim de um sistema
econômico totalmente novo – e, portan-
to, também de um poder político.
“Imagine a seguinte cena tirada de
um livro de histórias de ficção científi-
ca”, escreve ele. “Você é transportado pa-
ra uma cidade cheia de pessoas que cui-
dam de seus negócios, vendendo boba-
gens, roupas, sapatos, livros, músicas, jo-
gos e filmes. No início, tudo parece nor-
mal. Até que você começa a notar algo es-
tranho. Acontece que todas as lojas, na
verdade todos os edifícios, pertencem a
um sujeito chamado Jeff. Além do mais,
todo mundo anda por ruas diferentes e vê
lojas diferentes porque tudo é interme-
diado por seu algoritmo... um algoritmo
que dança ao ritmo de Jeff.”
Pode parecer um mercado, mas
Varoufakis diz ser tudo menos is-
so. Jeff (Bezos, dono da Amazon) não
produz capital: ele cobra aluguel. E is-
so não é capitalismo, mas feudalis-
mo. E nós? Somos, segundo ele, “ser-
vos da nuvem”, tão desprovidos de cons-
ciência de classe que nem perceb
mos que nossos tuítes e publicações es-
tão adicionando valor a essas empresas.
Estamos em sua sala de estar areja-
da, onde sua mulher aparece de vez em
quando e oferece água, café e salgadi-
nhos, e espanta um labrador entusiasti-
camente afetuoso. Stratou e Varoufakis
formam um casal tão glamouroso quan-
to a casa em que vivem: um espaço fresco
e luminoso de concreto armado e gran-
des janelas de vidro com vista para o re-
tângulo perfeito da piscina azul.
O livro Technofeudalism assume
a forma de uma carta dirigida ao
recém-falecido pai de Varoufakis,
Georgios. Grego-egípcio comunista, ele
emigrou para a Grécia na década de 1940,
durante a guerra civil do país, e foi conde-
nado a cinco anos de “reeducação políti-
ca” por se recusar a criticar o comunismo.
Tornou-se presidente da maior empresa
siderúrgica da Grécia. O que Varoufakis
mais valorizava no pai era sua capacidade
de ver a “natureza dupla” das coisas
Technofeudalism também é, em par-
te, uma continuação de seu livro an-
terior, Talking to My Daughter About
the Economy (Falando com Minha Fi-
lha Sobre Economia), dirigido à sua fi-
lha Xenia, então com 11 anos. Na obra,
ele tentou responder à pergunta de por
que há tanta desigualdade. Mas, en-
quanto o escrevia, diz, sentia os re-
ceios do fim de uma era em relação às
perspectivas futuras do capitalismo.
“Mesmo antes de publicá-lo, em 2017,
me sentia inquieto”, diz ele no primeiro
capítulo de Technofeudalism. “Entre ter-
minar o manuscrito e ter nas mãos o li-
vro publicado, parecia que estávamos na
década de 1840 e eu prestes a publicar um
livro sobre feudalismo.” Ele se perguntou
então se o conceito de capitalismo não es-
tava desatualizado.
Na estante da sala, vejo um exem-
plar de Zucked, do empresário Roger
McNamee, um dos primeiros inves-
tidores do Facebook, responsável por
apresentar Mark Zuckerberg a Sheryl
Sandberg. “É um excelente livro”, diz
Varoufakis. Digo-lhe que McNamee con-
corda amplamente com suas novas ideias.
Senhores. Zuckerberg, da Facelândia,
Musk, do burgo podre X, e o onipresente
Bezos estão no coração do novo poder
Mandei uma mensagem para várias pes-
soas indagando o que perguntariam a
Varoufakis. Entre elas estava McNamee.
Nas mensagens, eu dizia que o livro de-
fendia a ideia de que dois eventos cruciais
transformaram a economia global: 1. A
privatização da internet pelas grandes
empresas tecnológicas dos Estados Uni-
dos e da China. 2. As reações dos governos
ocidentais e dos bancos centrais à gran-
de crise financeira de 2008, quando libe-
raram uma onda gigantesca de dinheiro.
Li para ele a resposta de McNamee:
“Eu compro a tese básica. Os Estados
Unidos mantiveram as taxas de juro per-
to de zero entre 2009 e 2022. Isso enco-
rajou modelos de negócios que prome-
tiam resultados que mudariam o mun-
do, mesmo que fossem completamente
irreais e/ou hostis ao interesse público
(por exemplo, economia gig, carros autô-
nomos, criptografia, metaverso, IA). Is-
to ocorreu numa altura em que não ha-
via regulamentação da tecnologia e nu-
ma cultura segundo a qual os executivos
deviam maximizar o valor das ações não
importa a que preço (democracia, saúde
pública, segurança pública etc.)”.
É bastante notável, saliento, que
um marxista e um capitalista de risco
tenham chegado às mesmas conclusões
econômicas. Mas há cada vez mais
pessoas – fora da política – que tentam
compreender essas novas estruturas de
poder. Shoshana Zuboff me disse que
“rejeita explicitamente rótulos como
tecnofeudalismo porque a tecnologia
não é a variável independente, nem so-
mos servos feudais”.
Shoshana também diz, no entanto,
que o argumento se assemelha a um de
seus últimos artigos: “Com as big techs,
enfrentamos um poder totalizante que,
em aspectos fundamentais, se desquali-
fica para ser entendido como capitalismo.
Trata-se de uma forma totalmente nova
de governança de poucos sobre muitos”.
Quando envio uma mensagem a
Mariana Mazzucato, outra economis-
ta carismática e influente, mas que, ao
contrário de Varoufakis, foi abraçada
por governos e instituições financeiras,
sua resposta sugere que algumas ideias
de Varoufakis não são assim tão novas.
Ela própria publicou, em 2018, um con-
ceito adjacente, o de “rendas algorítmi-
cas”, segundo o qual as empresas de tec-
nologia captam a atenção e a revendem,
em vez de criarem valor em longo prazo.
Mas, talvez, as distinções tradicio-
nais entre esquerda e direita não façam
mais sentido. A direita, diz Varoufakis,
“pensa o capitalismo como um sistema
natural, um pouco como a atmosfera”.
Enquanto a esquerda “pensa em si mes-
ma como pessoas criadas pelo universo
para trazer o socialismo sobre o capita-
lismo. Estou lhes dizendo: querem saber,
vocês erraram. Vocês erraram. Alguém
matou o capitalismo. Temos algo pior”.
Os primórdios da internet, diz, deram
lugar a uma paisagem digital privatizada
em que os guardas na porta “cobram alu-
guel... As pessoas que consideramos capi-
talistas são agora apenas uma classe vas-
sala. Se você está produzindo coisas ago-
ra, está acabado. Você terminou. Não po-
de mais se tornar o senhor do mundo”.
Em Technofeudalism, Varoufakis re-
conta a história do Minotauro. É um mito
ao qual ele retorna com frequência. Na sua
versão, o Minotauro é o sistema financeiro
global. No mito, a besta acaba sendo morta
por um príncipe ateniense. Esse príncipe
não conseguiu derrubar o capitalismo.
Mas, enquanto ele e Stratou me acompa-
nham até o táxi sob um pôr do sol alaran-
jado, ocorre-me que a fera pode ter se feri-
do mortalmente por conta própriia
CARTA CAPITAL
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