June 3, 2023

Descriminalização das drogas: Seis por meia duzia

 

 


STF Sem uma regra clara para distinguir
usuários de traficantes, descriminalizar o
porte de drogas para o consumo é inócuo

MARIANA SERAFINI



Com mais de 830 mil presos,
o Brasil tem a terceira
maior população carcerá-
ria do mundo, atrás ape-
nas dos EUA e da China.
Um terço desse contingente foi conde-
nado ou aguarda julgamento por tráfi-
co de drogas. O mais grave é a seletivi-
dade no encarceramento. De acordo com
o Anuário Brasileiros de Segurança Pú-
blica de 2022, 67,4% dos detentos são ne-
gros. Não por acaso, Guilherme
Carnelós, presidente do Instituto de De-
fesa do Direito à Defesa, observa que o
fenômeno também é fruto do racismo
institucional. “Se um rapaz branco, num
bairro de classe média, for flagrado pe-
la polícia com uma pequena porção de
droga, certamente ele será tratado co-
mo usuário. Já um rapaz negro, num
bairro menos favorecido, pode até por-
tar uma quantidade menor de drogas,
mas tende a ser tratado como trafican-
te”, explica o advogado, de forma didáti-
ca. “Esse é o grande problema. Temos
uma legislação que pune severamente o
pequeno traficante, ainda que ele não
esteja exatamente traficando.”

 
Não é difícil encontrar casos reais
para comprovar o racismo envolvido
na aplicação da Lei de Drogas. Em 2017,
um homem de 37 anos foi preso com 130
quilos de maconha em Água Clara, Ma-
to Grosso do Sul. Além da droga, a polí-
cia encontrou uma pistola e 199 muni-
ções de fuzil. Branco e filho de uma de-
sembargadora, ele passou pouco tempo
preso. Colega da mãe, outro desembar-
gador concedeu um habeas corpus para
interná-lo em uma clínica psiquiátri-
ca. A defesa alegou que o acusado, pre-
so anteriormente por porte ilegal de ar-
mas, sofria de transtorno de borderline,
que, segundo especialistas, não chega a
comprometer a capacidade de discer-
nir o certo do errado. Outro caso teve
um tratamento radicalmente distinto.
Em 2022, um jovem negro de 28 anos,
preso por portar menos de 10 gramas de
maconha, morreu no cárcere, vítima do
Coronavírus, em Manhumirim, no inte-
rior de Minas Gerais. Em primeira ins-
tância, ele foi condenado a 5 anos e 4 me-
ses de reclusão. A defesa do rapaz apre-
sentou recursos ao Tribunal de Justiça,
mas todos foram negados.

 
“O que a gente vê é um determinis-
mo geográfico, onde se parte do pressu-
posto de que as pessoas que vivem em
determinados locais são criminosas, ou
potenciais criminosas, e, curiosamen-
te, essas pessoas são, quase na totalida-
de dos casos, negras”, afirma Carnelós.
Ao criminalizar o usuário, a Lei de Dro-
gas também cria obstáculos para o tra-
tamento dos dependentes, acrescenta o
advogado. “A descriminalização de qual-
quer conduta que envolva a saúde públi-
ca propicia um diálogo mais aberto. Se a
pessoa teme punição do Estado, ela não
vai buscar tratamento.”

 
O Supremo Tribunal Federal agora
tem a chance de modificar essa realida-
de. Na quinta-feira 1º, após o fechamento
desta edição, a Corte deve retomar o jul-
gamento sobre a possível descriminali-
zação do porte de drogas para consumo
pessoal. O debate foi retomado pela mi-
nistra Rosa Weber em meados de maio,

após oito anos de espera. Relator da pro-
posta, Gilmar Mendes defende o fim da
punição aos usuários de todas as drogas.
Hoje, segundo o artigo 8 da Lei 11.343/06,
as penas previstas incluem “advertên-
cia sobre os efeitos das drogas”, “presta-
ção de serviços à comunidade” e “medi-
da educativa de comparecimento a pro-
grama ou curso educativo”. Luís Roberto
Barroso e Edson Fachin acompanharam
o voto do relator, mas apresentaram al-
gumas ressalvas. Para o primeiro, o STF
deveria liberar apenas a maconha. Já o
segundo sugeriu um limite de 25 gramas
ou de seis plantas cultivadas para não ser
considerado traficante.

 
O grande nó a ser desatado é justamen-
te o critério para distinguir usuários de
traficantes. Modificada em 2006, no pri-

deixando à avaliação subjetiva do delega-
do a decisão de quem deve ou não ser pre-
so em flagrante. Para José Henrique Ro-
drigues Torres, desembargador do Tribu-
nal de Justiça de São Paulo, sem a defini-
ção de uma quantidade mínima de dro-
ga para caracterizar o narcotráfico, “se-
ria mais eficiente a proibição dos flagran-
tes”, que empurram dezenas de milhares
de réus primários para as cadeias sem ha-
ver sequer a análise de um juiz.

 
“Para acabar com as injustiças, o ideal
seria descriminalizar totalmente a ques-
tão das drogas, e passá-la para o âmbito
do sistema preventivo”, avalia Torres. Isso
significa acabar com a persecução penal e
focar em políticas públicas de saúde e edu-
cação, por exemplo. A liberação irrestri-
ta, acrescenta o magistrado, também pode
favorecer o desenvolvimento de pesquisas
científicas e o uso medicinal das drogas.

 
Ainda que essa discussão esteja dis-
tante do Executivo neste momento, o mi-
nistro dos Direitos Humanos e da Cida-
dania, Silvio Almeida, já expressou sua
opinião pessoal favorável à descrimina-
lização para desafogar os presídios. “Te-
mos de tratar isso como uma questão de
saúde pública, como uma questão que
não se resolve por meio do encarcera-
mento, com prisão e com punição”, disse,
em recente entrevista à BBC Brasil. “Te-
mos de pensar seriamente nisso com res-
ponsabilidade, com cuidado. Mas eu acho
que a guerra às drogas, a forma com que
se combatem as drogas, causa um prejuí-
zo irreparável na sociedade brasileira.”

 
Na avaliação de Simone Nacif, juíza ti-
tular da 1ª Vara Criminal de Nova Fri-
burgo, no Rio de Janeiro, o principal ga-
nho seria o acolhimento dos dependen-
tes. “Na verdade, o usuário está pratican-
do uma autolesão, que pode equivaler ao
uso de cigarro ou de álcool. São substân-
cias nocivas à saúde, mas que não são cri-
minalizadas”, sustenta. “Quem consome
drogas não pode suportar nos ombros o
ônus criminal de uma conduta que não

 fere a saúde pública, atinge somente a sua
saúde pessoal.”

 
Integrante da Associação Juízas e
Juízes para a Democracia, Nacif acredi-
ta que o STF tem uma “excelente opor-
tunidade de contribuir para o fim do en-
carceramento em massa no Brasil”, des-
de que sejam definidos os critérios para
distinguir usuários de traficantes. “Nas
audiências, vemos diariamente pessoas
pobres sendo processadas por tráfico de
drogas, devido à posse de um único cigar-
ro de maconha ou de uma trouxinha de
cocaína. Com o estabelecimento de uma
quantidade mínima de droga apreendi-
da para configurar o narcotráfico, po-

 
mos perfeitamente tratar essas condutas
de menor lesividade no âmbito da saúde
pública, e não do direito penal.”

 
Na avaliação de Camilo Onoda Caldas,
diretor do Instituto Luiz Gama, a decisão
do STF, caso seja pela descriminalização,
pode colaborar para que “essa lógica de
encarceramento contínuo não permane-
ça como está”. E poderia afetar, inclusi-
ve, de forma retroativa pessoas que fo-
ram punidas como traficantes devido ao
porte de pequenas quantidades de dro-
gas. Mas o advogado diz ser fundamen-
tal a Corte estabelecer critérios objetivos
para distinção de usuários e traficantes.
Caso isso não aconteça, o efeito pode ser
parecido ao da mudança da lei em 2006,
que pretendia reduzir a população car-
cerária, mas produziu o efeito contrário.
“As nuances de cada caso podem levar os
juízes a encontrar fundamentos que fa-
çam com que preconceitos com relação
à população negra aflorem.”

 
A advogada Carolina Diniz, da ONG
Conectas, alerta, porém, para o risco de
haver uma onda de flagrantes forjados
caso o STF diferencie usuários de trafi-
cantes apenas pela quantidade de droga
apreendida. “O trabalho de investigação
precisa ser exigido por parte do Ministé-
rio Público, que tem a atribuição de fa-
zer o controle externo da atividade po-
licial.” A avaliação é compartilhada por
Cristiano Maronna, secretário-execu-
tivo da Plataforma Brasileira de Política
de Drogas e autor do livro Lei de Drogas
Interpretada na Perspectiva da Liberda-
de (Contracorrente). “O STF precisa de-
finir um standard probatório necessá-
rio para condenação por tráfico de dro-
gas que respeite a presunção de inocên-
cia e a regra do ônus da prova. Para con-
denar alguém por tráfico, é preciso pro-
var que a droga se destinava à finalidade
mercantil, e não ao uso pessoal.”

CARTA CAPITAL

 

 

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